20 de outubro de 2024

Pastor trans que teve câncer relata renascimento após retirada da segunda mama: ‘Hoje sou quem sempre quis ser’

Heliano tirou um dos seios ao descobrir a doença, mas levou dois anos para conseguir retirar o segundo. Nesse período, enfrentou dificuldade para aceitar a própria imagem e vivenciou depressão. Pastor trans que teve câncer relata renascimento após retirada da segunda mama
Heliano Ferreira da Silva tinha 38 anos quando iniciou a transição de gênero. Nascido em um corpo feminino, decidiu em 2018 que era hora de viver sua verdadeira identidade enquanto homem transexual: queria sentir a barba ao tocar o rosto, se ver e ser reconhecido como uma figura masculina.
No entanto, o sonho foi interrompido em 2020 ao ser diagnosticado com um câncer de mama. Além da perda dos pelos faciais, consequência da quimioterapia, o pastor evangélico da Igreja Apostólica Kaléo Chamados em Cristo, em Ribeirão Preto (SP), passou dois anos com apenas um dos seios e conta que enfrentou disforia por não aceitar o que via no espelho.
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Dores que normalmente são compartilhadas entre mulheres cis – que se identificam com o gênero atribuído ao nascer – trazem outros desafios sob a ótica de um homem trans. Para Heliano, o preconceito e a crise de identidade que afetam essa população doem ainda mais diante da doença
Apesar disso, com uma trajetória marcada pela discriminação e cinco meses depois de retirar a segunda mama, aos 44 anos, ele fala em renascimento. “Tenho fotos da época do câncer que eu olho e falo assim: ‘meu Deus, eu passei por isso’. Caramba, parece que eu renasci das cinzas mesmo’”.
“Amo aquela coisa do homem que faz a barba, se arruma todo cheiroso. Hoje [sem as duas mamas] eu posso ser esse homem, hoje eu posso colocar uma camisa mais colada, sem preocupação se eu vou colocar ou não uma meia pra encher um peito”.
No Dia Mundial de Combate ao Câncer de Mama, data celebrada neste sábado (19) e que dá origem à campanha Outubro Rosa, o g1 destaca o relato e, nesta outra reportagem, alerta para os riscos que pessoas transexuais têm em relação à doença.
Sem as duas mamas, Heliano diz que “a autoestima foi a mil”.
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Da descoberta da doença à crise de identidade
Era janeiro. Depois de um autoexame com ajuda da esposa, que é enfermeira, Heliano descobriu um nódulo do tamanho de um grão de arroz. “Já frequentava a igreja e falei que Deus ia me curar. Não procurei ajuda. Em setembro, o carocinho já estava um limão. Só então fui ao médico”.
Heliano já havia iniciado o tratamento de afirmação de gênero para ter uma aparência que correspondesse a sua identidade. Morando em Campinas (SP), era acompanhado pelo Ambulatório Transcender e tomava hormônios masculinos, mas precisou interromper por recomendação médica.
Com 16 ciclos de quimioterapia, se deparou com um novo patamar da luta pela própria identificação. Primeiro, viu cair os pelos do rosto. “A barba era minha paixão, então eu fiquei naquele desespero, mas depois começou a voltar. Com a [químioterapia] branca caiu tudo de novo, mas voltou um pouco”.
Depois, em 2021, veio a retirada da mama. Era uma necessidade médica, mas manter apenas um seio gerou um conflito interno. Ele queria tirar os dois, mas os médicos optaram por não mexer no órgão saudável e liberar o paciente para casa, evitando a longa estadia hospitalar diante do risco da Covid-19.
“De lá para cá, foram os dois anos mais tristes da minha vida. Porque você se olhar no espelho… Você tira uma mama e fica com a outra pendurada. Imagina isso para um homem trans? Eu não tinha mais intimidade. Eu começo a falar e choro, porque foi muito tenso”, conta emocionado
Heliano descobriu câncer de mama com ajuda da esposa, que é enfermeira
Arquivo pessoal
Discriminação
O apoio psicológico foi fundamental. Após um longo período de espera, frustração e terapia, ele conseguiu a autorização para a cirurgia que tanto desejava: finalmente tiraria o outro seio pela rede pública. Porém, se deparou com o preconceito. Heliano afirma que um médico se recusou a realizar a operação, alegando que o paciente queria se “mutilar”.
Vale lembrar: apesar do caráter estético, a mastectomia masculinizadora – retirada dos seios por pessoas transmasculinas – é garantida pelo Sistema Único de Saúde (SUS) por ser entendida como uma questão de saúde e bem-estar dessa população, assim como o tratamento hormonal e a mudança do timbre de voz, por exemplo.
“Olhou na minha cara, viu que eu era um homem trans e disse: ‘Eu não te opero. Você quer se mutilar. Eu sou um conservador e não arranco órgão saudável’. Começou a falar um monte”, relembra. A jornada seguiu até encontrar uma equipe mais acolhedora, formada por residentes que decidiram abraçar a causa.
“Eu levantei a camiseta pra elas [médicas residentes] e falei: ‘Isso aqui não é digno, nem pra homem, nem pra mulher. Se a pessoa não quer ficar com uma mama só e não quer reconstruir, tem que tirar a outra’. Eu tenho consciência que era um órgão saudável, mas minha situação agora era outra. Eu não sou aquela pessoa. Foi muito cruel o que fizeram. Foi um dano muito grande na minha cabeça”.
Muito mais do que fazer as pazes com o espelho
Entre muitos pacientes diagnosticados com câncer, a ideia de renascimento vem com a cura. Para Heliano, a volta à vida veio em maio deste ano com a segunda mastectomia. “Agora eu consigo me olhar no espelho. Agora eu tô bem, me sentindo, realmente, um homem trans. Se você olhar na camiseta, o peitoral tá aqui, não tem mais uma mama. Consigo usar uma camiseta mais colada, mais cavada, também cuido da barba. Autoestima foi a mil”.
Ele diz que não pode mais usar hormônios, nem masculinos, nem femininos – o que poderia ser recomendado quando chegar a menopausa –, mas afirma que a barba voltou a crescer. Pastor da Igreja Apostólica Kaléo Chamados em Cristo, que acolhe pessoas da comunidade LGBTQIAP+ em Ribeirão Preto (SP), acredita que a fé teve papel importante no processo, mas alerta que ela deve ser uma aliada dos cuidados médicos.
“A minha vida hoje é explicar pras pessoas: ‘apareceu, vai se cuidar, vai na hora se cuidar’. Porque assim, do mesmo jeito que eu sobrevivi, sei que teve muitas pessoas com câncer que morreram”.
Pastor evangélico, Heliano hoje usa a igreja para acolher pessoas trans e conscientizar para cuidados com a saúde
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