Thereza Leyte e Escholástica Pinta da Silva foram rés em um processo da inquisição portuguesa em 1.754, acusadas de causar a morte do marido de Escholástica. Pesquisadora da USP traduziu manuscritos que revelam o que motivou as acusações e as condenações do processo. Pessoas acusadas de bruxaria na Inglaterra eram executadas na forca, e não em fogueiras, como no restante da Europa
GETTY IMAGES/BBC
Comemorar o Halloween virou tendência no Brasil há alguns anos, embora a festa tenha surgido na Irlanda e seja tradicionalmente americana. E é impossível não relacionar a data, celebrada em 31 de outubro, às bruxas, que são frequentemente escolhidas como opção de figurino de quem decide curtir a festa “à caráter”.
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Mas o que nós sabemos sobre as bruxas? Ou bruxos? O que existe por trás do estereótipo do feiticeiro que praticava magias maléficas? Afinal, no Brasil, pessoas foram perseguidas, condenadas e queimadas na fogueira?
A pesquisadora e filóloga Narayan Porto publicou um estudo pela Universidade de São Paulo (USP), em 2019, que resgata documentos históricos que revelam a acusação feita pelo Tribunal do Santo Ofício contra Thereza Leyte e Escholástica Pinta da Silva, mãe e filha que, na época, moravam na “Villa da Nossa Senhora do Desterro de Iundiahy”, hoje, município de Jundiaí, no interior de São Paulo.
Em 1754, mãe e filha eram investigadas por um suposto “pacto com o demônio”, que teria matado o primeiro marido de Escholástica, Manoel Garcia, utilizando feitiçarias. Narayan analisou os manuscritos originais encontrados na Cúria Metropolitana de São Paulo.
Thereza e Escholástica, mãe e filha, foram acusadas de causar feridas em Manoel Garcia, marido de Escholástica
Reprodução/Jornal da USP
Segundo a pesquisadora, os estudos mostraram que a acusação de que elas teriam matado Manoel usando feitiçaria saiu apenas após a morte do homem. Escholástica, mulher de Manoel, teria causado feridas nas pernas do marido apenas ao tocar nele, e o deixado cego ao tocar os olhos dele. O homem morreu em 1746.
A pesquisa analisou documentos antigos sob a ótica da filologia e revelou a história das supostas feiticeiras no interior de SP
Reprodução/Jornal da USP
Conforme os documentos, há testemunhos de que os parentes de Manoel não gostavam das rés e que, além disso, estavam em conflito com elas por conta de “administrados”, que seriam escravos indígenas. Tudo indica que família do morto foi a responsável por articular toda a acusação.
“Existia uma disputa de propriedades entre as mulheres e os parentes do Manoel, já que ele morreu sem deixar testamento. O homem tinha muitos escravos, que eram tratados como objetos de herança, chamados de administrados”, explica.
Narayan Porto, pesquisadora e filóloga, autora do estudo
Reprodução/Jornal da USP
Para isso, os parentes de Manoel teriam contratado Francisco, um escravo de origem africana, considerado um feiticeiro.
“O Francisco foi chamado por parentes do Manoel para curar o homem da lepra. Mas principalmente, foi chamado para espalhar boatos contra as mulheres, acusando elas de feitiçaria”, explica Narayan.
Parte de manuscrito mostra como foi feito a contratação de Francisco pelos parentes de Manoel Garcia: ‘Um negro por nome Francisco, já defunto, escravo que foi de Antonio Pedrozo desta villa’, diz documento
Reprodução/Jornal da USP
Ao contratar o escravo Francisco, os parentes de Manoel desejavam eliminar a “concorrência”, pois, se as rés fossem condenadas por feitiçaria, eles obteriam a posse dos administrados, aponta a pesquisa de Narayan.
“As denúncias de feitiçaria se tornaram, assim, um modo de eliminar inimigos e resolver problemas internos à comunidade”, aponta.
Trecho de manuscrito diz que ‘Thereza Leyte é acostumada a fazer feitiços’ e que com eles teria causado a morte de Manoel Garcia. Também cita que os moradores da vila temiam a mulher
Reprodução/Jornal da USP
Intolerância religiosa
Francisco já havia morrido em 1754, quando o processo foi aberto pelo Tribunal do Santo Ofício, mas os documentos não citam a data de sua morte.
Narayan cita na pesquisa que testemunhas diziam que, além da fama de feiticeiro, o escravo era conhecido por ser enganador. Algumas das testemunhas também descreveram o tipo do suposto feitiço praticado pelo homem.
“Diziam que ele via, dentro de um copo com aguardente e dinheiro, a sombra de quem havia feito algum malefício ou feitiço”.
Documento mostra relato de pessoas que diziam que Francisco fazia adivinhações usando risco em um pano, aguardente e dinheiro
Reprodução/Jornal da USP
Conforme Narayan, a prática de se fazer adivinhações foi muito difundida pelo ocidente cristão. Porém, também foi, muitas vezes, associada à figura diabólica.
“O tipo de feitiço praticado pelo ‘negro feiticeiro’ Francisco reflete a cultura e religiões africanas trazidas pelos escravos para o Brasil Colônia. Logo, o cristianismo se misturou às religiões africanas e dos nativos.” comenta Narayan em sua tese.
Condenação e absolvição
Segundo Narayan, o pai da Escholástica, marido da Thereza, era juiz ordinário da Vila de Jundiaí e ordenou a prisão de Francisco por levantar os boatos contra as mulheres. Francisco foi açoitado em praça pública e, depois, devolvido ao seu dono. Segundo testemunhas, ele chegou a pedir desculpas publicamente às rés.
“Ou seja, a família era muito influente e conhecida na cidade. Existia uma estrutura de poder. Fica claro que ele foi punido por ter mexido com elas, com uma família poderosa. Ele foi muito usado e não teve voz nenhuma no processo”, pontuou.
O processo foi concluído em maio de 1755. Thereza e Escholastica foram absolvidas das acusações de feitiçaria. Além disso, foi determinado que quem processou as duas pagasse um valor de reembolso pelos gastos que as mulheres tiveram com a defesa.
“Portanto, Thereza e Escholastica, não foram condenadas e nem encaminhadas para Portugal, onde geralmente eram executadas as penas contra pessoas condenadas pela Inquisição.”
Manucristo diz que ‘se acharam enterrados uns sapatos do dito marido da ré, cheios de pedaços de sua camisa’
Reprodução/Jornal da USP
Embora os documentos não citem a cor das mulheres acusadas, Narayan acredita que o contexto familiar em que estavam inseridas reforça a ideia de que eram mulheres brancas. Para a pesquisadora, o desfecho da história seria outro se elas fossem negras ou indígenas.
“Têm pessoas que foram enviadas para Lisboa por nada. Que iam parar na mesa de interrogatório por fazer uma oração diferente, misturar orações, falar o nome de um santo. Tinha a ver sim com uma estrutura de poder”.
A pesquisadora analisa que os documentos da história das “bruxas paulistas” também mostram como eram tratadas as pessoas negras e indígenas na época.
“O tecido social colonial é muito complexo e esse processo condensa muito isso. Na época, transcrevendo os documentos, eu tinha noção dessa complexidade, mas o foco ainda eram as duas mulheres processadas por bruxaria. Depois, eu fui pensando e refletindo ‘tinha uma pessoa escravizada diretamente envolvida nisso e ele sofreu mais do que elas’. Não sabemos quantos indígenas estavam envolvidos, que também sofreram mais do que as duas, e eles não têm voz nenhuma. Eles estavam no meio de um conflito familiar, eram tratados como objetos de herança”, explica.
Escravos em terreiro de uma fazenda de café. Vale do Paraíba, c. 1882.
Marc Ferrez/Coleção Gilberto Ferrez/Acervo Instituto Moreira Salles
Feitiçaria feminina e masculina
Para a pesquisadora, os documentos da época revelam também que a feitiçaria era vista de duas formas opostas e até contraditórias.
“Geralmente, as mulheres são associadas à prática do feitiço para prejudicar, para matar, para adoecer. E o homem, ele é tratado mais como uma figura de curandeiro, digamos assim. O estereótipo feminino é negativo,” analisa a filóloga.
Mulheres vestindo fantasias improvisadas de bruxas fazem fila para uma fotografia nos EUA em 1910.
Transcendental Graphics/Getty Images
“Se as rés do processo foram acusadas de matar Manoel, por meio de feitiços, o escravo Francisco foi solicitado para que o curasse também por meio de feitiços. Logo, a feitiçaria tinha ação positiva, mas também negativa”, completa Narayan.
A pesquisa completa da filóloga Narayan Porto pode ser conferida no site da USP.
A palavra ‘feiticeira’ era utilizada para denominar mulheres que praticavam superstições ou agissem de modo incomum
Reprodução/Jornal da USP
Inquisição
Foram 285 anos de atuação do Tribunal do Santo Ofício em Portugal e nos territórios que faziam parte do Império português.
Conforme o professor de história da Ufscar, Robson Pereira da Silva, a prática surgiu com a intenção de controlar atitudes que fugiam das regras da igreja católica.
“A inquisição tem seu início ainda na Idade Média, aproximadamente no século XII, quando existe uma preocupação da igreja católica em controlar as práticas religiosas que desvirtuavam um pouco das normativas da Igreja. Foi fundada para tentar solucionar os questionamentos, por exemplo, dos cátaros, que eram uma espécie de cristãos, mas que não seguiam a risca as interpretações e as normatizações da Igreja Católica.” explica.
O professor explica que, no primeiro momento, a inquisição ficou centralizada na Europa, mas depois o fenômeno se expandiu e se tornou mais violento.
“O segundo momento, que a gente vai chamar do momento radical da inquisição, acontece na Península Ibérica, sobretudo na Espanha, que produziu uma máquina de tortura para tentar cristianizar a Península Ibérica, que está com a presença de muçulmanos. Então é um processo de espécie de romanização da Península Ibérica. A máquina de inquisição, a produção do Santo Ofício no caso espanhol, instituí uma espécie de conversão ou expulsão dessas outras possibilidades religiosas e culturais dentro do território espanhol”, diz Robson.
Foram 285 anos de atuação do Tribunal do Santo Ofício em Portugal e nos territórios que faziam parte do Império português
Ilustração: Carlos Fonseca
Inquisição no Brasil
Já no Brasil, a inquisição chegou no século XVI, por volta de 1.536 e durou até 1.821, quando as Cortes Constituintes decretavam a extinção do Tribunal do Santo Ofício.
“Com isso, a inquisição e o Santo Ofício também passam a funcionar nas colônias portuguesas com o objetivo de fazer que a vida colonial seja disciplina pela ótica cristã católica. Foi uma prática colonial que ajudou a implementar a cultura portuguesa no Brasil”, explica o historiador.
O professor Robson considera a inquisição o primeiro registro histórico de intolerância religiosa, prática que existe até os dias atuais no mundo todo.
“Todo corpo indisciplinado, homossexuais, mulheres que davam alguma demonstração de não submissão à vida católica se tornaram alvo da inquisição. As práticas do Santo Ofício foram uma espécie de institucionalização da produção do medo no ocidente”
Milhares de pessoas foram perseguidas e condenadas pelo Tribunal do Santo Ofício em Portugal
Reprodução/Jornal da USP
Estudos mostram que pelo menos 400 brasileiros foram condenados pelo Santo Ofício por práticas, à época, consideradas contrárias à fé católica, como “judaizar”, homossexualidade, bigamia e feitiçaria. O número de denunciados, porém, é muito maior.
Aqueles considerados culpados pela Inquisição portuguesa podiam ser condenados a diversos tipos de penas. Prisão, confisco de bem e exílio. Havia aqueles condenados à morte por degola, enforcamento, estiramento e cremação, isto é, ser queimado vivo na fogueira.
“Aproximadamente, 21 brasileiros foram queimados em fogueiras em Lisboa. Já em números gerais da inquisição portuguesa, foram, aproximadamente, duas mil pessoas queimadas na fogueira e cerca de quatro mil condenadas.”
‘Minha antepassada foi queimada como bruxa, mas limpei seu nome 350 anos depois’
‘Bruxa moderna’ compartilha vivências e ressalta práticas do movimento
Sobre a prática de queimar pessoas na fogueira, o professor reforça: “A fogueira não era usada deliberadamente, existia alguns processos para chegar nesta condenação. Mas se a gente for pensar, a possibilidade da prática produzia mais medo, mesmo que não acontecesse com tanta frequência.”
Dezenas de milhares de mulheres foram queimadas na fogueira na Europa medieval sob acusação de bruxaria
Getty Images via BBC
‘Caça às bruxas’ modernas
Para Robson, atualmente, há outras formas de amedrontar e oprimir pessoas que não praticam a fé cristã e católica.
“Sobretudo, se a gente pensar em religiões de matriz afro-brasileiras que são condenadas a partir de critérios cristãos. Pensar nas mães de Santo, as ialorixás, têm sido vítimas, por exemplo, de ataque aos seus templos. Nós temos uma espécie de continuidade em outros formatos. As intenções e as violências reverberam as do passado”, finaliza.
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