Grupo de mulheres faziam procedimentos em apartamentos, driblando a legislação. Na mesma época, surgiu o caso ‘Roe vs Wade’, que garantiu o direito ao aborto nos EUA por quase 50 anos. “Quando eu engravidei, estava vivendo com um cara com quem eu não deveria estar vivendo. Eu estava desempregada. Era inverno. Estava deprimida. Eu sabia que não poderia ter um bebê”, lembra Eileen Smith, uma norte-americana que vive em Chicago, nos Estados Unidos.
Esta reportagem faz parte da série “O Sonho Americano”. A equipe da TV Globo percorreu estados-chave nas eleições presidenciais dos EUA para descobrir o que está impactando os eleitores neste ano. O quarto capítulo é sobre aborto.
O SONHO AMERICANO
Episódio 1, Democracia: Crianças arrecadam US$ 1 milhão para construir parquinho e incluir alunos com deficiência em escola dos EUA
Episódio 2, Economia: ‘Cheeseheads’: Como o queijo virou símbolo de Wisconsin e o que isso revela sobre a economia americana
Episódio 3, Inflação: Das casas ao ‘tailgate’: como a inflação tem distanciado os jovens do sonho americano nos Estados Unidos
A mulher conta que viu uma saída em um anúncio de jornal que dizia: “Grávida? Não quer estar? Ligue para a Jane”. Ela resolveu discar o número que aparecia na publicidade e deixou uma mensagem na caixa eletrônica. Em seguida, ela recebeu uma ligação oferecendo ajuda.
O que Eileen não sabia ainda é que ela não estava ligando para uma mulher, mas sim para um grupo de mulheres que prestava serviços clandestinos em Chicago. Era uma rede que vivia no anonimato com pessoas que preferiam ser chamadas apenas de “Jane”.
O grupo ficou conhecido no fim da década de 1960. À época, mulheres eram forçadas a manterem a gravidez por não terem escolha. O que as Janes faziam eram mais do que aborto. Elas lançaram uma rede que uniu mulheres pelos direitos reprodutivos.
Os abortos feitos pelas Janes eram ilegais. No entanto, os procedimentos executados por elas eram considerados seguros. Para não serem pegas pela polícia, as mulheres alugavam apartamentos em prédios de Chicago e mudavam de endereço constantemente.
Martha Scott é uma das mulheres que se tornou uma Jane. Ela conta que ficou sabendo da rede enquanto estava com os filhos em um parquinho.
“Se você achasse que precisava de um aborto, faria coisas mais perigosas do que ter um bebê. Instrumentos inapropriados, beber veneno ou se jogar do alto de uma escada. Por isso entrei para o grupo”, conta.
Entre as Janes, Martha começou ajudando a segurar a mão das pacientes. Depois de alguns meses, foi questionada se queria fazer um aborto em outra mulher. Ela aceitou. Eileen foi uma das atendidas por Martha.
“Eu estava apavorada. Não conhecia ninguém ali naquela sala. A Martha foi muito gentil comigo”, diz. “Três dias depois do meu aborto, me ligaram para perguntar se estava tudo bem. Eu pensei: ‘quem faz um aborto ilegal e liga para saber se estou bem?’. Eu disse que queria fazer parte do grupo.”
As Janes eram motoristas, conselheiras e psicólogas. Algumas delas garantiam o aborto em comunidades com ainda menos acesso. Até que um dia foram descobertas pela polícia.
“Eles derrubaram a porta e prenderam todo mundo que estava lá”, conta Martha. Ela foi liberada mais tarde, mas precisou aguardar por julgamento.
‘Janes’ faziam abortos em apartamentos e driblavam legislação nos EUA
Alex Carvalho/TV Globo
Roe contra Wade
Coincidentemente, na mesma época, os Estados Unidos começavam a conhecer uma outra Jane: Jane Roe. Era o nome fictício de Norma Nelson McCorvey.
Ela tinha passagens pela polícia, problemas com drogas, brigas com família e acusações de negligência contra os filhos.
Quando engravidou pela terceira vez, Jane Roe resolveu que não queria ter outro filho. Ela acabou sendo contatada por advogados que procuravam por uma mulher que queria fazer um aborto no Texas. O procedimento era ilegal no estado.
Assim nasceu o famoso caso judicial “Roe contra Wade”. Wade era o nome do procurador do Texas naquela época. Já Jane Roe passou a representar o caso que processava o estado, dizendo que as leis antiaborto eram inconstitucionais.
O caso chegou à Suprema Corte, que entendeu que na Constituição dos Estados Unidos está escrito que todos têm o direito à privacidade. Portanto, que as mulheres poderiam fazer o aborto.
Foi uma revolução nos Estados Unidos, e deu ainda mais força para grupos contra o aborto.
Pró-vida
Ann Scheidler participa de movimento pró-vida, que é contra o aborto nos EUA
Alex Carvalho/TV Globo
“Eu fiquei muito chocada que meu país não reconhecia o valor do bebê que eu carregava na barriga”, disse Ann Scheidler. O marido dela criou uma organização não governamental para defender que o aborto fosse proibido no país inteiro.
Desde 1973, os manifestantes que se chamam de pró-vida — de grande maioria de grupos católicos — fazem pressão contra o procedimento.
Até que, em 2020, morreu a juíza da Suprema Corte Ruth Bader Ginsburg. Ela defendia o direito da mulher de escolher fazer o aborto, mas deixava claro que a lei Roe vs. Wade era problemática.
O então presidente Donald Trump prometeu substituí-la por alguém contra o aborto. Amy Coney Barret foi nomeada.
Em 2022, já com Joe Biden no poder, a Suprema Corte reverteu a decisão de 1973. Com isso, o direito ao aborto deixou de ser garantido nos Estados Unidos.
Deborah Stalberg, médica e pesquisadora pela Universidade de Havard, disse que o número de procedimentos para interromper a gravidez aumentou desde então, mesmo diante das restrições.
“Alguns estados proibiram totalmente. Mas, as mulheres que podem, viajam para outros estados. Há pílulas abortivas que são enviadas por correio mesmo para estados onde o aborto é ilegal”, explica.
“A melhor pessoa pra decidir o que acontece com uma gravidez é a pessoa que está grávida. Na minha prática diária, eu vejo que são vários os motivos que podem levar uma mulher a querer interromper uma gravidez.”
Nas eleições
Kamala Harris e Donald Trump
REUTERS via BBC
A questão do aborto se tornou importante nas eleições presidenciais dos Estados Unidos.
O apoio ao acesso ao aborto aumentou nos Estados Unidos desde 2022, quando a Suprema Corte revogou o direito. Isso colocou os republicanos em uma situação delicada.
A democrata Kamala Harris promete transformar o direito ao aborto em lei federal. Já Donald Trump quer que cada estado tenha uma legislação própria.
Além disso, estados como Flórida e Arizona farão referendos sobre o aborto no mesmo dia da eleição. Isso poderá ter algum impacto, principalmente no Arizona.
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