Prevalência foi revelada em estudo conduzido por psiquiatras da Unicamp a partir da análise de 1,1 mil prontuários de vítimas de violência sexual atendidas no hospital da universidade. Adolescentes são considerados nativos digitais
Foto de mikoto.raw Photographer
Uma pesquisa conduzida por psiquiatras revelou que, para parte das adolescentes vítimas de abuso sexual atendidas no Hospital da Mulher da Unicamp (Caism), em Campinas (SP), as redes sociais deixaram de ser um passatempo e se tornaram facilitadoras da violência.
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Isso porque meninas de até 17 anos apresentaram relatos três vezes mais frequentes de estupro facilitado pela tecnologia do que mulheres adultas. Vale ressaltar que os números consideram o período de 2011 a 2018, e a tendência é que sejam ainda maiores na atualidade, segundo as pesquisadoras.
📱 E o que isso significa? Segundo a psiquiatra Maria Teresa Ferreira Côrtes, o termo “estupro facilitado pela tecnologia” abarca uma série de violências sexuais que ocorrem por meio das mídias digitais, como o stalking e o compartilhamento de material íntimo.
“No nosso caso, em específico, a gente olhou para um dado que era quando a violência sexual começou num ambiente digital. Então, quando o uso de um aplicativo começou e deu início ao contato entre o agressor e a vítima, e esse contato depois acabou resultando em um estupro”, explica.
Com base na pesquisa de mestrado de Côrtes, orientada pela professora Renata Cruz Soares de Azevedo, o g1 publicou nesta semana três reportagens sobre as características sociodemográficas e psicológicas da violência sexual, além do impacto das redes sociais para as vítimas adolescentes.
O estudo analisou 1.133 prontuários de mulheres vítimas de violência sexual atendidas pelo serviço de saúde no período. Os dados mostraram, por exemplo, que quatro em cada 10 pacientes tinham até 17 anos, e 20% das vítimas relataram ter sofrido abuso anteriormente.
Álcool e psicoativos
A professora Renata Azevedo detalha que as violências relacionadas à vida digital são consideradas novas e, por isso, os dados ainda eram escassos no período analisado. A vivência das médicas no ambulatório indica que cerca de 20% das adolescentes atendidas relatam interferências da tecnologia atualmente.
“Os estupros que começaram por aplicativo, pelo amigo do amigo que conheceu digitalmente, aquela ideia de que, como eu já estou conversando há uma semana, parece que eu já conheço essa pessoa, e aí no primeiro encontro isso se transforma. Isso é uma coisa muito moderna, a gente não tinha esses registros há um tempo, e estamos começando a olhar agora”, diz.
Outro ponto que chamou a atenção das pesquisadoras foi a relação entre o uso de álcool e de psicoativos ilícitos e as violências sexuais. “Nos surpreendeu a ausência de diferença na taxa de uso de substâncias entre as adolescentes e as adultas. A gente esperaria que nas adolescentes fosse muito menor”.
No período estudado, 17,9% das meninas de até 17 anos atendidas relataram ter consumido álcool antes do estupro, contra 22,1% das mulheres adultas. Já em relação às substâncias psicoativas, o uso foi informado por 6,3% das adolescentes, e 5,9% das vítimas adultas.
“A gente se preocupa muito com as violências sob efeito de substância. A vulnerabilidade que as mulheres ficam quando estão intoxicadas, a possibilidade de alguém pôr alguma coisa na bebida, que, em geral, o álcool é o veículo. Mas a gente não quer, em nenhum momento, que a leitura seja ‘foi estuprada porque bebeu’. Toda mulher tem o direito de beber, usar e fazer o que ela quiser. O que a gente quer é que isso não represente uma vulnerabilidade”, destaca Azevedo.
Nativos digitais
Para Tanila Savoy, vice-presidente da Associação Nacional das Vítimas de Internet (Anvint) e advogada de direito digital, os dados levantados pelas pesquisadoras em relação às adolescentes refletem um cenário presente no dia a dia e ligado a características geracionais.
“A vida desses jovens está na internet. Dos adolescentes, dos menores de idade, está lá. Eles não conhecem outro mundo. Eles já nasceram com este mundo. […] Segundo dados da Unicef, há 175 mil novas crianças usuárias de internet ao dia. A cada 30 segundos, um menor se torna um usuário de internet”, detalha.
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Além de tornar as redes sociais mais seguras, a advogada ressalta que existe também uma necessidade “urgente” de educação tecnológica – ou seja, orientar os usuários, o mais cedo possível, sobre os riscos e cuidados necessários.
“Precisamos, enquanto sociedade, também agir. Não podemos deixar que apenas o Congresso, apenas as leis venham. Precisamos também, enquanto sociedade, conseguir agir, identificar que isso é um crime e ter mecanismos de punição e de prevenção. E precisamos que essas crianças e adolescentes falem. Procurem os responsáveis, procurem alguém na escola. Se informem, se conscientizem”, alerta.
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Controle, silenciamento e intimidação
Ao mesmo tempo em que especialistas e autoridades monitoram com preocupação as manifestações de violência de gênero pela internet, a tecnologia avança e traz novas preocupações. Uma delas é a difusão da inteligência artificial e dos deep fakes.
“Essa violência está se amplificando através do compartilhamento dos deep nudes, que são essas manipulações de fotos e vídeos por inteligência artificial para produzir conteúdo de nudez e sexo com a imagem de uma pessoa que não autorizou essa manipulação e divulgação dessa imagem”, explica Bianca Orrico, psicóloga que atua em projetos de Educação e no serviço de ajuda da ONG SaferNet.
Criada em 2005, a ONG atua na defesa de direitos na internet no Brasil. Em fevereiro deste ano, um levantamento da instituição revelou que o número de denúncias de imagens de abuso e exploração sexual infantil online, em 2023, foi o maior já registrado em 18 anos.
“A gente ainda vive numa sociedade que lida com desigualdade de gênero que ainda é muito enraizada, e essas ideias também se manifestam na internet. As mulheres e meninas também são frequentemente alvos de assédio, ameaça, perseguição e abuso online. Isso pode ser motivado por vários fatores, dentre eles o desejo de silenciar, controlar e intimidar as mulheres”, destaca Orrico.
Segundo a psicóloga, o enfrentamento da violência sexual online contra adolescentes e jovens exige uma abordagem multidimensional e integrada, envolvendo profissionais de saúde, psicólogos, educadores e elaboração de políticas públicas.
“Que essa atuação seja realizada de forma conjunta entre essas diferentes áreas, oferecendo um suporte para as vítimas de uma forma mais efetiva e que possa acolhê-las em relação à violência que elas sofreram. Educadores têm um papel muito importante porque podem promover essa cultura e conscientização para um uso mais seguro e responsável da internet e também promover um alerta em relação a como se proteger de possíveis riscos”, explica.
Como pedir ajuda?
Vítimas de crimes e violações de direitos humanos na internet podem pedir ajuda à SaferNet Brasil de forma anônima e sigilosa. É possível entrar em contato com um profissional especializado pelo e-mail ou por meio do chat, ambos disponíveis no canal de ajuda da ONG.
Já a Anvint oferece consultoria e orientações jurídicas às vítimas de crimes virtuais por meio de um formulário disponível no site.
As vítimas de violência sexual podem buscar o pronto atendimento do Caism na Rua Alexander Fleming, 101, Cidade Universitária Zeferino Vaz, no distrito de Barão Geraldo, em Campinas. O serviço funciona 24 horas por dia, sem necessidade de encaminhamento médico ou registro policial.
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