22 de setembro de 2024

Ex-detentas detalham denúncias de estupros que dizem ter sofrido de policial penal em presídio de Uberlândia

Em liberdade, mulheres falaram da dinâmica dos três episódios de violência sexual vividos entre novembro e dezembro de 2021. Policial penal está afastado e defesa nega crime. Penitenciária Professor João Pimenta da Veiga
TV Integração/ Reprodução
“Tenho medo de só ter minha voz ouvida depois que for silenciada de vez”. Esse é desabafo de Camila dos Santos, uma ex-detenta que há três anos denunciou, junto de uma colega de cela, ter sido estuprada por um agente penal dentro da Penitenciária Professor João Pimenta da Veiga, em Uberlândia.
Agora, Camila e Maria da Silva, a outra denunciante, contaram detalhes da violência que, segundo elas, teria sido cometida pelo policial penal Wendel de Souza. De acordo com a Secretaria de Justiça e Segurança Pública de Minas Gerais (Sejusp-MG) ele está afastado da função. O processo corre em segredo de justiça, mas segundo o advogado de Camila, Gregório Andrade, o suspeito já foi indiciado pela Polícia Civil e denunciado pelo Ministério Público de Minas Gerais.
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As ex-detentas afirmam que, além de Souza, outros policiais penais teriam torturado, agredido, humilhado e tentado suborná-las para que as queixas fossem retiradas. Entre eles, estaria o enteado do suspeito, que trabalhava no mesmo lugar e hoje ocuparia a mesma função que o padrasto ocupava antes de ser afastado.
A Sejusp-MG informou que além de não estar trabalhando na presídio, Wendel Souza está proibido de acessar qualquer unidade prisional de Uberlândia, por decisão judicial. A reportagem também fez contato com a defesa do suspeito, que alegou que “as acusações são vazias, sem nenhum conteúdo probatório”. Leia as notas completas mais abaixo.
Ex-detentas falam de estupros que dizem ter sofrido de policial em presídio de Uberlândia
A violência sexual
Segundo Camila, os abusos teria começado em novembro de 2021, quando ela e Maria, sua colega de cela, foram levadas para o setor de enfermaria da Penitenciária Professor João Pimenta da Veiga.
Camila conta que foi encaminhada à enfermaria após realizar uma videochamada com o filho, de 23 anos, que estava detido no Presídio Professor Jacy de Assis e tinha câncer no cérebro.
“Quando falei com ele estava com a cabeça inchada por ter sido agredido. Depois disso, fiquei preocupada com ele e me levaram para a enfermaria, para que eu não fizesse nada contra a minha própria vida. A minha colega também tinha sido encaminhada para a cela da enfermaria e ficamos juntas. Quando me deixaram na sala de enfermagem, foi a primeira investida dele”.
“Perguntei quem ele era, ele falou que era o coronel, que mandava no presídio todo.”
Alegando necessidade de levar mais presas para o local, no mesmo dia que chegaram à enfermaria as duas já foram transferidas para a cela “Beta 03”, distante do espaço onde ficam as demais detentas.
“Nós pensamos que eles levariam a gente de volta para a enfermaria quando não precisassem mais daquela cela. Mas não, ficamos lá. Era um lugar muito pequeno, mal cabia meu colchão e o da Camila”, contou Maria.
“A Beta 03 é chamada de cela da gueixa por ser uma cela suja, com sangue em parede. Era o lugar para presos serem torturados, passar castigo. Já suicidaram lá dentro. Então, lá era uma cela bem afastada de todos os pavilhões. Só quem tinha acesso seria os agentes penitenciários. E é uma cela escura, sem ventilação, sem nada. Chegamos na cela e limpamos tudo. Tinha sangue e fezes nas paredes, uma situação muito difícil.”, disse Camila.
Já no local mais isolado, Maria disse que no início Wendel se apresentou como alguém que poderia ajudá-las. “Ele começou a conversar com a gente. Era muita conversa. Ele dizia que achava injusto terem colocado a gente lá, que nenhum ser humano devia viver daquele jeito. Se apresentava como um bom agente, que tinha dó de nós. Que queria ajudar a gente”.
Camila e Maria então pediram para que Wendel verificasse se parentes delas estavam entre a nova leva de presos que chegaram à penitenciária. À noite, ele teria retornado com a resposta. “Ele chegou e nos falou que tinha uma notícia boa e uma ruim, que nossos parentes não tinham sido transferidos, mas que ele podia nos ajudar a transferir eles, por ter muita influência, por ter anos de casa”, relembrou Camila.
“Ele colocou a mão no peito dela pela grade, e ela se assustou e recuou. Perguntou o que estava acontecendo e então ele disse que ele nos ajudaria, mas tudo teria um preço”, falou Maria sobre o que, segundo ela, teria sido o primeiro contato físico de Wendel com Camila.
Camila e Maria contam que as ameaças teriam começado quando elas não aceitaram a proposta de fazerem “favores sexuais” para o agente.
“Ele começou a me ameaçar, falando que ia fazer meu filho ir para uma cela de estupradores para ele ser ‘bonequinha’ na cela, se eu não deixasse ele me ver pelada”, afirmou Camila.
“Pelos meus filhos eu me submeto a tudo. Foi assim que tudo começou.”
Neste dia, conta Maria, o suspeito Wendel Souza teria obrigado as duas colegas a ficarem nuas e, enquanto estuprava Camila, obrigava Maria a fingir que estava sentindo prazer em ver a cena. “Claro que não consegui, comecei a chorar e ele ficou muito bravo”.
Maria contou ainda que em outra situação, o agente teria se aproximado da cela Beta 03 e entregado um celular obrigando ela a fotografar Camila nua e em poses sensuais.
As vítimas contam que os estupros se repetiram mais duas vezes, sendo que da última vez, Souza teria falado que faria uma “festinha” ao entregar lâminas para que elas se depilassem.
“Ele não entrava na cela, ele abusava da gente pela grade; na vez em que ele ameaçou de entrar e mostrou a chave da cela, eu tomei os remédios para dormir, meus e da Maria.”, disse Camila.
Maria lembra que, quando voltou à cela neste dia, encontrou Camila quase inconsciente e gelada. “Ela passou muito mal, então comecei a gritar para os agentes me ajudarem. Ela estava gelando já. E os agentes me mandavam dar um banho nela para que ela melhorasse. Um agente ficou com dó e deixou ela colocar o braço pra fora pra ver os batimentos, e só então mandaram ela pro hospital”.
Segundo Camila, durante o período de um mês em que os abusos ocorreram, Wendel teria sido visto várias vezes próximo à cela e repreendido por apagar as luzes do local, ação que não era permitida.
“Outros agentes penitenciários passaram perto da nossa cela e viram ele deitado lá perto. Ele sempre dormia por lá. Um dos agentes até viu e reprimiu ele, falando que tinha vergonha de dividir a farda com ele.”
Fim dos abusos, início das ameaças
Camila e Maria narram que os abusos pararam próximos ao Natal de 2021, quando supostamente Wendel Souza teria deixado uma carta com um presente na cela.
“Do dia 24 para o dia 25 de dezembro de 2021, foi a última vez que ele chegou perto da gente. Foi quando ele jogou a carta e a corrente de ouro, eles já estavam de olho nas câmeras e viram ele passando perto da cela e viram a sombra dele passando. As agentes acharam a carta, jogada perto da cela e fomos levadas para o hospital e para a inteligência.”
Camila afirma que não leu a carta antes de ser encontrada pelas policiais penais, mas soube do conteúdo depois.
Depois do afastamento de Wendel, que Maria afirma ter ocorrido após as policiais penais encontrarem a carta supostamente escrita por ele, Camila e Maria dizem ter recebido ameaças de outros policiais penais para retirarem a queixa, inclusive ameaças do enteado de Wendel.
“O enteado dele começou a brigar comigo [durante plantões dele, após o afastamento do padrasto]. Uma vez ele apagou as luzes do andar, e é muito escuro de noite, eu estava com medo depois do estupro. Aí eu comecei a xingar ele, falando; Você vai fazer a mesma coisa que seu pai fez? E foi nesse momento que ele começou a agredir a gente. Não teve estupro, mas ele nos agrediu fisicamente.”
Ainda de acordo com Camila, mesmo após o afastamento de Wendel, durante um ano e quatro meses, em determinados turnos de trabalho do enteado dele, elas teriam sido privadas de banho de sol, água, comida e remédio. Elas também teriam recebido uma proposta de suborno de R$ 2.000 de uma policial para que retirassem a queixa, mas não aceitaram.
Por medo de represálias, em outubro de 2023, Camila pediu e foi transferida para o presídio de Presidente Olegário e, um mês depois, Maria também foi.
“Eu fui torturada lá no mês que eu fiquei depois da Camila ser transferida. Eu fiquei 15 dias em uma cela que não tinha como eu tomar banho. Eles regravam a minha alimentação, jogaram spray de pimenta em mim, eu ficava em uma cela escura que não tinha energia”, contou Maria. Ambas deixaram a prisão no fim de 2023.
“Eu temo pela minha vida, tenho medida protetiva contra policiais, não deixo que ninguém saiba meu endereço. Tenho medo de só ter minha voz ouvida depois que for silenciada de vez. Eu paguei pelo meu crime, quero que ele pague pelo dele também.”, finalizou Camila.
As denúncias: ‘Penso que todo mundo sabia’
Camila afirma que denunciou a situação mais de uma vez. A primeira foi ao setor de Assessoria de Informação e Inteligência Prisional (AIIP) da Penitenciária Pimenta da Veiga em dezembro de 2021. Outra denúncia foi realizada em 2022, para uma equipe do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT) que visitou o local entre os dias 2 e 6 de maio.
Para Camila, a Inteligência da instituição, inicialmente, não “deu atenção” à denúncia e só deu prosseguimento à apuração do caso após a ida do MNPCT à penitenciária.
“Quando eu contei da primeira vez, ninguém acreditou por ele ter muito tempo de casa. Mas, teve um agente penitenciário que acreditou em mim, que escutou tudo e balançou a cabeça concordando. Desde então, ele começou a observar as câmeras e perceber que o agente passava muito tempo perto da cela”.
“Penso que todo mundo sabia, ele chegou pra mim, depois que eu denunciei, e disse ‘eu falei pra você não falar fiado e você foi na Inteligência falar o meu nome”.
Relatório do MNPCT
Foto da cela retiradas do relatório do MNPCT
MNPCT/Divulgação
No relatório divulgado pelo MNPCT à imprensa em agosto de 2022, há imagens da cela e relato sobre as violações que era feitas no local.
“Esta cela de triagem foi o local de sérias violações de direitos humanos no ano de 2021. A localização da cela, na entrada da unidade, sem controle de entrada e saída, como tem nas alas, cria uma situação especialmente vulnerável a práticas de tortura ou outros crimes. Mesmo após este grave fato, essa cela continua a ser usada de maneira totalmente irregular. O ocorrido também reforça a inadequação das unidades mistas, pois, além de outros fatores que serão vistos ao longo do relatório, essas têm um maior número de funcionários do sexo masculino circulando.”
O MNPCT faz parte do Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura e é composto por especialistas independentes, denominados peritos, que têm autorização para acessar diferentes tipos de instalações de privação de liberdade. Quando constatam violações, esses peritos elaboram relatórios contendo recomendações para as autoridades competentes, que podem utilizá-los para tomar as medidas.
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O que disse a defesa de Wendel Souza
A defesa de Wendel Alves de Souza enviou a seguinte nota ao g1:
“O escritório de advocacia Guimarães Borges – Advocacia e Consultoria Jurídica, representado pelo Dr Marcelo Guimarães de Oliveira Borges, vem à público repudiar a perseguição e o linchamento virtual que seu cliente vem sofrendo. Tais acusações são vazias, sem nenhum conteúdo probatório, sustentadas apenas pelo depoimento das supostas vítimas, que já apresentaram diversas divergências no curso da investigação.
As acusações infundadas representam uma afronta não apenas ao acusado, mas sim, a todo Sistema Público de Segurança do Estado de Minas Gerais, uma vez que a capacidade de garantir a segurança dos detentos é colocada em dúvida.
O citado policial é um homem íntegro e servidor público exemplar, em mais de uma década de serviço público jamais respondeu a qualquer processo administrativo e em toda sua vida jamais foi acusado de qualquer crime.
Quanto ao mérito, a defesa tem a certeza que sua inocência será comprovada ao final do processo. Em razão do sigilo processual, todos os detalhes processuais, nomes das partes e imagens devem ser preservados.
Por fim, a defesa esclarece que o acusado está a disposição da justiça, inclusive colaborando com a investigação e comparecendo a todos os atos processuais.”
O que disse a Sejusp
“Informamos que, à época do ocorrido (dezembro de 2021), a direção da unidade prisional instaurou um procedimento interno para apurar administrativamente a ocorrência. Este procedimento foi concluído e enviado para a Corregedoria da Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública (Sejusp) para as providências cabíveis, além de ser informado também ao Ministério Público.
O procedimento encontra-se em trâmite administrativo, já em fase final, na Corregedoria da Sejusp. O setor trabalha em conjunto com outros órgãos, como o Ministério Público de Minas Gerais.
As duas mulheres citadas na demanda não estão presas mais. Ambas receberam alvará de soltura, concedido pela Justiça. Ambas, à época das denúncias, receberam assistência médica e psicológica e ficaram em celas separadas das demais detentas.
O servidor está afastado das suas funções e proibido de acessar qualquer unidade prisional de Uberlândia, por decisão judicial. Sobre o enteado do acusado, esclarecemos que ele não foi afastado, por ora, pois a investigação das denúncias está em andamento.
Não compactuar com possíveis desvios de conduta de seus servidores é uma postura histórica da Sejusp. Ressaltamos que todas as denúncias formalizadas devidamente são alvo de apuração e, em caso de confirmação, medidas administrativas legais são prontamente realizadas, guardando sempre o direito à ampla defesa e ao contraditório.”
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