Tovacuçu-xodó é espécie extremamente arisca e habita partes da Amazônia brasileira e peruana. Espécie foi descrita em 1969, porém nunca havia sido fotografada e filmada. Brasileiro faz primeiras imagens do mundo de ave rara da Amazônia
Depois de enfrentar uma ‘odisseia’ de dez anos com caminhos repletos de obstáculos e desafios com sucuris, onças, carrapatos, bugios, tempestades e inúmeras tentativas frustradas, o biólogo Ricardo Plácido conseguiu o que pesquisadores e observadores de aves do mundo todo sonhavam em conquistar: o registro da ave tovacuçu-xodó (Grallaria eluden).
Na última quinta-feira, 9 de janeiro, em uma região do Parque Estadual Chandless, no Acre, ele fez, depois de três dias consecutivos de tentativas, as primeiras imagens com foco da espécie, que é uma ave enigmática e pouco conhecida da família Grallariidae, encontrada na Amazônia do leste do Peru e no oeste acreano.
Desde que a ave foi descrita, em 1969, pelos pesquisadores George Lowery e John O’Neill, através da captura de um indivíduo da espécie no Peru, o animal nunca tinha sido fotografado ou filmado por ninguém na natureza. O que se sabia sobre essa ave terrestre era apenas a vocalização e também alguns avistamentos, principalmente em terras peruanas.
Ilustração a espécie quando foi descrita em 1969
John O’Neill
As dificuldades para encontrar a espécie arisca são inúmeras, devido à baixa densidade populacional, e localização de difícil acesso, habita em emaranhados de mata, em meio a depressões, pirambeiras e igarapés.
“É uma ave extremamente inconspícua e uma das mais raras do mundo, pouco conhecida e bem complicada de encontrar. Às vezes você até ouve o canto, mas para ver é complicado. É um bicho furtivo, sorrateiro…. em outras palavras, um ninja das sombras”, conta Plácido.
O nome científico, inclusive, Grallaria eluden, faz alusão a este comportamento. De acordo com o biólogo, eludens, do latim, significa fugir, evadir.
Registros
Após 20 anos da descrição do tovacuçu-xodó, pesquisadores relataram ter ouvido a espécie em 1993 e posteriormente em 2001 e 2003, sempre no Peru.
No começo dos anos 2000, dois estrangeiros, Andrew Whittaker e o David oren, disseram que ouviram a ave em território brasileiro, no Rio Juruá e no rio Moa, no Acre, durante levantamentos da avifauna local. Anos depois, o ornitólogo Mário Cohn-Haft escutou o canto da espécie no Vale do Javari, no Amazonas, e outros brasileiros conseguiram gravar a vocalização da ave em partes diferentes da Amazônia do nosso país.
Já em 2015, o pesquisador Fernando Igor Godoy gravou o som do tovacuçu-xodó em outra região brasileira, no município de Manoel Urbano, quase na fronteira com o Peru.
Canto da ave tovacuçu-xodó
Ele conta que, antes de viajar para o Acre a trabalho, pesquisou as espécies que poderiam ocorrer na região que estaria e se deparou com o tal tovacuçu. Nisso, entrou em sites peruanos para ouvir a vocalização e guardou o som na memória.
“Certo dia entrei muito cedo em uma floresta de bambu e aí logo amanhecendo eu escutei o canto da espécie, que são duas notas bem fortes, bem singulares. Na hora me deu uma emoção muito forte, porque que eu sabia que era uma das primeiras documentações da espécie para o Brasil. Eu ouvi e gravei, tentei tocar o playback, mas não consegui ver a ave”, relembra Godoy.
Já o colega de profissão Ricardo Plácido, embora soubesse da presença da espécie no Acre desde 2013, começou de fato a embarcar na saga de procura em 2015, já que começou a trabalhar no Parque Estadual Chandless – onde se sabia da ocorrência da ave rara.
Ricardo imaginava que a missão não seria nada fácil, pois se tratava de uma espécie pequena e arisca em um território de 695.303 hectares, nos quais muitos nem conseguem se ter acesso. Enquanto percorria as trilhas na realização de diversos trabalhos, o biólogo sempre ficava atento aos cantos, na espera de um milagre de ouvir a tão sonhada ave.
O 1º encontro
“Foi em 2018 que eu vi a ave pela primeira vez. A gente estava fazendo um levantamento de espécies atrativas à observação de aves e nos deparamos com um igarapezinho. A equipe estava cansada e ensopada depois de uma chuva forte, mas quando, de repente, ouvi a espécie cantando, foi um alvoroço, eu não acreditava”, relembra.
Ricardo passava horas e horas camuflado na floresta atrás da espécie
Ricardo Plácido
Ricardo improvisou uma camuflagem e começou a tocar o canto da ave para ver se conseguia atraí-la para perto. E o tovacuçu-xodó finalmente se aproximou.
“Esse comportamento era o mesmo relatado em outras descrições, então fazia muito sentido. A gente viu a ave por segundos quando viramos, mas ele tomou um susto e desapareceu, sem deixar chances para nenhum tipo de registro”, conta.
A espécie fica escondida na vegetação, por isso é tão difícil conseguir registros
Ricardo Plácido
A partir daí até o ano de 2023 foram incontáveis expedições até o mesmo local em busca de um reencontro. Às vezes sozinho, às vezes acompanhado de ornitólogos e até dos mais conhecidos observadores de aves, enfrentando todos os tipos de desafios em meio a aventuras dignas de um roteiro de filme. Mas nenhum outro encontro ocorreu.
Pouco depois, ele teve uma surpresa não muito agradável. Certa vez, enquanto guiava um grupo de ingleses, Ricardo, chegou no território onde havia encontrado a ave e se deparou com uma clareira no meio da floresta. Tinha acontecido um ‘blowdown’, que é um fenômeno natural de tempestades de vento convectivas que atravessam a região amazônica. Por conta disso, o único local que ele tinha observado a espécie estava destruído.
Ajuda dos ribeirinhos
Através de um programa do Governo Federal que estimula a participação de ribeirinhos nas unidades de conservação, Ricardo Plácido pediu para os moradores da região, que trabalhavam como monitores ambientais, saírem à procura do tovacuçu-xodó.
“Em 2023 um deles achou e conseguiu gravar a vocalização. Quando a gente chegou lá, meses depois que ele tinha visto, aconteceu a mesma coisa, um blowdown destruiu o ponto. Foi dureza, ninguém então tinha mais nenhum relato de onde estivesse”, explica Plácido que ficava cada vez mais frustrado.
O pesquisador contou com a ajuda de moradores locais para localizar a espécie
Ricardo Plácido
Meses se passaram e outro ribeirinho gravou, novamente, o canto da espécie, mas dessa vez em um local muito longe, a 120 km da sede do parque. Ricardo chegou a fazer uma expedição até a área e ouviu a espécie, mas, mais uma vez, não conseguiu avistá-la.
“Foi aí que em novembro do ano passado, o Pedro, que é zelador da sede da base do Parque, nos relatou que encontrou o tovacuçu naquela trilha onde tinha dado o segundo ‘blowdown’. Isso mostrou pra gente que o indivíduo conseguiu sobreviver ao desastre natural e as esperanças voltaram”, relembra Plácido.
O encontro final
O biólogo aproveitou uma brecha na agenda e foi atrás da ave fantasma. Ele conta que, no primeiro dia, passou seis horas tentando. Depois que se escuta o canto da espécie, é preciso cautela e muita paciência, já que o animal se aproxima aos poucos, muito lentamente, e está sempre pronto para fugir ao detectar qualquer movimento brusco.
“Em determinado momento, toquei o playback, ele se aproximou, e depois se calou por 30 minutos. Demorou mais meia hora para ele aparecer de novo e eu fiquei calado, até que finalmente consegui um registro, mas muito desfocado e borrado”, conta.
A espera era, literalmente angustiante, já que o biólogo estava cercado de centenas de muriçocas que picavam sem parar. Ele relembra que cobriu o rosto, desesperado, mas seguiu imóvel, esperando.
Algumas fotos do tovacuçu-xodó ficavam tremidas
Ricardo Plácido
A ave apareceu novamente, sorrateira pelo chão, e sumiu. Começou então, o jogo de esconde-esconde em que o biólogo ia atrás, lentamente, se embrenhando na mata, se arrastando pelo chão tentando uma aproximação, e o bicho dava as caras e logo desaparecia novamente. Apesar de quase não aparecer, o tovacuçu cantava sem parar. “Parecia que ele tinha ficado até rouco e decidi ir embora para não estressar o animal”, confessa o biólogo.
Só que desistir não era uma opção e no dia seguinte, Ricardo voltou. E o tovacuçu dessa vez, não apareceu nem por um segundo. No terceiro dia, no entanto, a sorte estava a seu favor.
“Logo que chegamos, a ave respondeu e aí eu fiquei mais ou menos quatro horas nesse tipo de xadrez, indo atrás. Você tenta enxergar e ele fica lá parado cantando sem parar, mas você não vê nada por conta da vegetação e aí fica tentando procurar uma janelinha, quando se mexe um pouquinho mais, ele percebe e vai para um lugar mais escondido ainda. É uma luta”.
Primeiro registro do mundo da espécie de ave tovacuçu-xodó
Ricardo Plácido
Quase na hora de ir embora, o pesquisador, ao escutar mais uma vez o canto do tovacuçu, pediu ajuda do Pedro, zelador que ouviu a espécie e relatou meses antes, para realizar um tipo de cerco em volta da ave. Dessa forma, quando ela se mexeu enquanto um estava de um lado, o outro já segurava a câmera e conseguiu realizar os cliques.
“Foi uma emoção indescritível e agora meu objetivo é mostrar para a humanidade que existem espécies no nosso planeta que a gente nem conhece. É como se diz na biologia da conservação: se a natureza é um livro aberto, você extinguir uma espécie é como rasgar a página desse livro sem nunca ter lido o conteúdo da página, né? Então é algo que a gente precisa refletir”, finaliza Plácido.
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