23 de janeiro de 2025

Protecionismo e petróleo: como as primeiras ações de Trump podem mudar a indústria automotiva


Presidente dos EUA deve sobretaxar produtos estrangeiros e desfazer políticas de incentivo à eletrificação. Trump revoga ‘mandato do veículo elétrico’ e diz que vai ‘perfurar’
Trump revoga ‘mandato do veículo elétrico’ e diz que vai ‘perfurar’
De volta à Casa Branca, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, promete mudanças radicais nas políticas de incentivo à indústria automotiva em seu segundo mandato.
Em seu discurso de posse nesta segunda-feira (20), Trump criticou o “New Deal verde” e prometeu acabar com o “mandato do veículo elétrico”, um apelido que deu às políticas de descarbonização e eletrificação iniciadas pelo ex-presidente Joe Biden.
“Com as minhas ações de hoje, acabaremos com o New Deal verde e revogaremos o mandato dos veículos elétricos, salvando a nossa indústria de automóveis e mantendo os meus compromissos sagrados aos nossos grandes trabalhadores do setor automotivo americano”, disse Trump.
A iniciativa faz parte do discurso mais protecionista, que pretende favorecer a atividade doméstica e limitar a concorrência estrangeira. Trump pretende reverter políticas de incentivo a modelos mais sustentáveis de produção em toda a indústria americana.
O governo Biden havia previsto um subsídio de US$ 1,7 bilhão para adequar linhas de produção de veículos elétricos e híbridos, por exemplo. Também foram estabelecidas regras mais restritas para emissões de carros e caminhões, direcionando a produção para veículos menos poluentes.
Foram tentativas de direcionar a indústria americana para uma matriz mais limpa e ajudar as empresas a perseguir a inovação. Hoje, os chineses estão bem à frente das tradicionais montadoras americanas quando o assunto é eletrificação.
Trump, no entanto, planeja retomar o uso intenso de fontes de energia não renováveis, como gás natural e petróleo. Para ele, é importante manter baixos os custos de energia para a população — e se há abundância de petróleo nos EUA, esse potencial tem que ser usado.
“Temos algo que nenhuma outra nação industrial jamais terá: a maior quantidade de petróleo e gás de qualquer país da Terra. E vamos usá-la”, disse Trump na segunda.
Além disso, produzir carros com tecnologia mais antiga, apenas a combustão, dispensa o investimento em pesquisa e desenvolvimento. O presidente falou em “acabar com políticas de extremismo climático” do antecessor, um ataque ao esforço de priorizar a sustentabilidades nos negócios.
A mudança de posição dos EUA, a maior economia do mundo, não ficará restrita ao país. Especialistas consultados pelo g1 analisaram os desdobramentos do novo governo Trump para o mercado automotivo e suas consequências, inclusive para o Brasil.
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Trump discursa ao tomar posse nos EUA
SAUL LOEB / POOL / AFP
A fixação com o petróleo
No primeiro dia de governo, a Casa Branca divulgou uma nota com as prioridades do novo mandato. Uma seção é dedicada a “fazer a América acessível e dominante em energia novamente”.
“O presidente irá destravar a energia americana, encerrando as políticas climáticas extremistas de Biden, agilizando a concessão de permissões e revisando para revogar todas as regulamentações que impõem ônus indevidos à produção e uso de energia, incluindo mineração e processamento de minerais não combustíveis”, diz o documento.
Segundo o economista Gesner Oliveira, há três motivos para que Trump valorize tanto o petróleo como fonte de energia:
Independência energética e posicionamento geopolítico;
Fonte de empregos em sua base política;
Perseguir o baixo custo de energia;
“Trump argumenta que explorar os recursos de petróleo e gás dos EUA reduz a dependência de regiões instáveis, como o Oriente Médio. Essa independência seria, portanto, uma questão de segurança nacional e soberania econômica”, afirma Gesner Oliveira.
Para Trump, a indústria de petróleo e gás é uma importante fonte de emprego, e vital para a economia de estados-chave de sua base eleitoral, como Texas, Oklahoma e Dakota do Norte. Além disso, exportar petróleo e gás natural dá aos EUA relevância na geopolítica mundial.
Essas ações de Trump visam alcançar a autossuficiência energética, evitando a dependência de outros países e reduzindo custos.
“Ele é crítico de uma transição muito rápida para fontes renováveis de energia, apontando problemas relacionados aos custos e a alguns impactos ambientais que, segundo ele, nem sempre são considerados pelos defensores dessas energias”, prossegue Oliveira.
O presidente dos EUA é contra quaisquer restrições ambientais, e entende que elas prejudicam o avanço do país. De efetivo, Trump já assinou um decreto retirando os EUA do Acordo de Paris, um tratado global que visa manter o aquecimento global abaixo de 2°C até o final do século.
Como a maior economia do mundo e a segunda maior emissora de gases de efeito estufa, as decisões dos EUA terão impacto direto na luta contra as mudanças climáticas.
O que pode mudar para o brasileiro com Trump no poder?
O ‘mandato do carro elétrico’
A preferência pelo petróleo e a aversão às políticas de sustentabilidade deram origem ao termo “mandato do carro elétrico”.
Embora sejam a casa da Tesla, uma das principais montadoras de elétricos do mundo, os EUA também abrigam GM e Ford, que não estão tão bem posicionadas em tecnologias de inovação quanto suas concorrentes, mas são enormes geradoras de emprego no país.
“Os EUA ainda produzem e vendem muitos veículos tradicionais no mercado local. A estratégia é privilegiar os veículos com propulsão convencional, porque são mais abrangentes do que a dos veículos elétricos”, afirma Ricardo Roa, sócio-líder do setor automotivo da KPMG no Brasil.
Junto com o cancelamento dos incentivos, Trump quer fortalecer o setor automotivo americano contra a concorrência internacional, sobretudo chinesa e mexicana. No início de fevereiro, espera-se que a Casa Branca anuncie tarifas às importações de ambos os países, dificultando a entrada de produtos estrangeiros.
“Ele prometeu trazer de volta os empregos industriais aos EUA, como parte de uma estratégia de reindustrialização. Isso pode realmente oferecer muitas oportunidades, mas não será possível abrir mão do comércio internacional”, diz Gesner Oliveira.
O economista acrescenta que pode não ser uma boa ideia os EUA deixarem de investir em carros elétricos, já que isso pode deixá-los atrasados na corrida por inovação no setor. Trata-se, inclusive, de um flanco em que a China vem se desenvolvendo com bastante velocidade.
“Essa decisão pode custar caro à competitividade dos Estados Unidos no médio prazo. Embora Trump seja cético em relação ao aquecimento global, essa é uma questão concreta e poderá gerar um desalinhamento na política industrial americana”, afirma Oliveira.
“A tendência global em direção à sustentabilidade continuará. Outros países avançarão em direção aos veículos elétricos, especialmente a China, que tem condições de produzir veículos em larga escala, acesso à matéria-prima e já conquistou a Europa. Esse processo não será revertido”, explica.
Trump conta com a Tesla para fazer frente aos chineses, já que é a única montadora relevante produzindo elétricos no país. Em termos de exportação, porém, a marca pode não contribuir tanto, pois também possui fábricas na China.
Davi Gonçalves, analista de macroeconomia da Tendências Consultoria, explica que os asiáticos levam vantagem estrutural nessa briga, pelos custos mais competitivos, ganhos de escala, e gerenciamento eficiente da cadeia de suprimentos e matérias-primas.
“Além disso, os estímulos do governo chinês à compra de automóveis elétricos contribuíram para que a China se tornasse o maior mercado desse tipo de veículo, fortalecendo ainda mais sua indústria automotiva”, diz o economista.
Resta a dúvida se as medidas de Trump serão suficientes para que a indústria americana possa competir fora de suas fronteiras. As medidas protecionistas podem prejudicar, em primeiro momento, as exportações de veículos mexicanos e fechar as portas para os chineses, mas ainda restam mercados enormes na Europa, Ásia e América para explorar.
Análise: a relação do Brasil com EUA após posse de Trump
Como fica o Brasil nessa história?
Se forem levadas à frente as medidas anunciadas por Trump, haverá um certo realinhamento no mercado automotivo brasileiro. De primeira, espera-se que os chineses e mexicanos olhem com mais atenção para a América do Sul, por exemplo.
O México opera com um regime de cotas de exportação para o Brasil, com imposto reduzido. Sem o mercado americano para explorar, haverá pressão para desovar a produção em mercados conhecidos. Pelo lado dos chineses, a invasão já começou antes mesmo de Trump.
No ano passado, houve alta de 33% dos emplacamentos de veículos importados no Brasil, para 466 mil unidades, segundo a Anfavea. Desses, 26% eram chineses, algo como 120 mil unidades emplacadas. Isso representa uma alta de 187% em relação ao ano anterior.
O consolo para indústria nacional é que as marcas chinesas vão se estabelecer por aqui para produzir.
“A instalação de fábricas de veículos chineses no Brasil é positiva, pois ajuda a impedir que as importações continuem avançando na participação geral das vendas, como aconteceu em 2024”, diz Davi Gonçalves, da Tendências.
A BYD, por exemplo, deve iniciar sua produção em Camaçari (BA) a partir de agosto, com capacidade de produzir até 300 mil veículos. O ponto servirá para fornecer os carros vendidos no Brasil e para exportações para a região.
A GWM também começará a produção nacional durante o primeiro semestre de 2025, em Iracemápolis (SP). A marca promete contratar 700 funcionários e produzir cerca de 20 mil veículos por ano. Uma ampliação e modernização já estão prometidas para os próximos três anos, passando para 50 mil carros fabricados.
GAC Motors, Omoda e Jaecoo, todas chinesas, também estão na lista das marcas com fabricação no Brasil prevista para 2025.
“Aqui já temos uma indústria madura, com infraestrutura instalada e um conhecimento importante sobre o mercado da América do Sul”, afirma Ricardo Roa, da KPMG.
Por fim, a indústria brasileira pode aproveitar o “tarifaço” imposto por Trump para se apresentar como substituto para produtos americanos. Sempre que tarifas são impostas, há o risco de uma retaliação do país taxado.
“À medida que as ações dos EUA provocam uma rivalidade comercial com a China, produtos que os EUA vendem para a China poderão ser substituídos por produtos brasileiros. Isso já aconteceu no passado com soja, milho e carne”, lembra Gesner Oliveira.

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