23 de setembro de 2024

Da violência à liberdade: como transformação do conceito de loucura moldou cuidado psiquiátrico no Brasil

Da Grécia Antiga à modernidade, condição do ‘louco’ já foi vista como divina, rejeitável e opositora à razão. Para especialistas, quebra do estigma foi essencial para reforma psiquiátrica dentro e fora do país. Como o conceito de ‘loucura’ se transformou ao longo do tempo
O que define um louco? A resposta para essa pergunta mudou – e muito – ao longo do tempo. Da Grécia Antiga à modernidade, a transformação do conceito de loucura moldou a forma como são tratados os pacientes que convivem com transtornos mentais no Brasil e no mundo.
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Segundo especialistas, a quebra do estigma sobre o conceito de “louco” ao longo dos anos foi essencial para descartar ideias que colocavam qualquer pessoa marginalizada na “caixinha” da insanidade, prejudicando tratamentos e fortalecendo preconceitos.
🧠 Até domingo (14), data que marca o aniversário de 100 anos do Serviço de Saúde Dr. Cândido Ferreira, em Campinas (SP), o g1 publica a série de reportagens “Eu sou um louco”, que aborda trajetória da loucura e o protagonismo da instituição na humanização do cuidado psiquiátrico no Brasil.
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ADRIANA TOFFETTI/ATO PRESS/ESTADÃO CONTEÚDO
Louco e divino
🏛️ Na Grécia Antiga, segundo o filósofo Michel Foucault, acreditava-se que a loucura poderia ser causada pelos deuses. Na tragédia As Bacantes, de Eurípides, isso é representado pelas seguidoras de Dionísio, o deus do vinho.
As mênades, como eram chamadas, entravam em um estado de êxtase e agiam sem se importar com as normas sociais, numa espécie de “loucura sagrada”.
Foi na Idade Média que a relação entre loucura e verdade divina tem uma mudança drástica, descrita por Foucault no livro “História da Loucura na Idade Clássica”, publicado em 1961.
Até a Idade Média, a ideia do conceito de loucura variava porque ela era orientada por uma questão muito mais ligada ao misticismo. A noção de ciência, de uma referência universal por meio da qual todos os seres humanos se orientam, não estava consolidada. Então todo conhecimento era particular, regional.
Naquela época, a exclusão social antes sofrida pelos pacientes diagnosticados com lepra passou a atingir também aqueles que fugiam do que era considerado normal. Essas pessoas começaram, então, a ser isoladas em asilos ou leprosários, locais com condições precárias e desumanas.
A desrazão
💡 Nos séculos 17 e 18, com o Renascentismo e o Iluminismo, a ciência ganha protagonismo e o conceito de loucura começa a tomar novas formas, saindo do campo sobrenatural e sendo tratado como o contraponto à razão, conforme descreve Foucault.
Ainda assim, eram considerados loucos todos os que fugiam da norma social, incluindo os inválidos, as mulheres na prostituição e até pessoas sem moradia. Com isso, as internações em manicômios se alastraram e ficaram cada vez mais comuns em toda a Europa.
Já no século 19, a psiquiatria se consolida como uma especialidade médica e a loucura passa a ser tratada como uma doença, que pode, portanto, ser curada.
“A modernidade trouxe uma diferenciação que até então não existia entre o normal e o patológico. O que a gente tinha eram simplesmente manifestações da existência humana, que variavam muito. O que a medicina e o conhecimento científico trazem? Eles dão uma solução universal para todos os problemas, padronizam e criam uma regra”, destaca Antunes.
O problema é que a medicina ainda engatinhava em questões de saúde mental e começou a usar técnicas hoje consideradas inadequadas ou restritas, como punições, eletrochoque e camisa de força.
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Centro Cultural do Ministério da Saúde
Luta antimanicomial
✊🏽 Com o fim da Segunda Guerra Mundial, ganham força os questionamentos sobre o modelo de hospitalização e a necessidade de reformulação de políticas públicas. No Brasil, a luta antimanicomial surge no fim dos anos 70 e início dos anos 80, em meio à ditadura militar.
“Esse tipo de ‘tratamento’, que significava simplesmente excluir as pessoas do convívio e trancá-las em um hospital fechado, é considerado mais uma forma de opressão e, por isso, se organiza todo um movimento dos trabalhadores [de saúde mental] e da luta antimanicomial”, diz a médica, professora da Unicamp e presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), Rosana Onocko-Campos.
Para os ativistas da luta antimanicomial, a loucura não era um “palavrão” e a palavra começou a ser usada como forma de descrever, para além da terminologia médica e dos diagnósticos, transtornos e sentimentos pelos quais qualquer pessoa poderia passar durante a vida.
Os seres humanos têm características singulares, afetos, temores, sonhos. Uns são mais esperançosos, outros mais pessimistas. A loucura serve como um guarda-chuva para uma série de sofrimentos, e às vezes não é um diagnóstico, é um momento da vida. Você pode enlouquecer por um momento da vida, por algo difícil que se passou, e superar isso. Nem sempre se trata de um transtorno prolongado, crônico, que vai durar a vida inteira.
As reivindicações resultaram, segundo a presidente da Abrasco, na lei federal 10.216/2001, também conhecida como Lei da Reforma Psiquiátrica. O texto instituiu um novo modelo assistencial em saúde mental no país, com o objetivo de garantir a proteção e os direitos de pacientes com transtornos mentais.
📄 A lei prevê, entre outros pontos:
garantia de direitos do pacientes, com acesso ao melhor tratamento e com o mínimo de intervenção possível;
responsabilização do Estado no desenvolvimento de políticas públicas em saúde mental;
priorização do tratamento ambulatorial, com indicação de internação somente quando todos os outros recursos forem insuficientes;
direitos na internação, como acompanhamento médico regular e contato com família e amigos.
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