27 de fevereiro de 2025

Cegos em mutirão de catarata: Estado de SP quer que pacientes desistam de processos antes de propor indenização, diz advogada


Estado anunciou que faria proposta às vítimas em questão de dias, mas entrou em contato com pacientes sem indicar valores de indenização. Procuradoria-Geral confirma que ainda não há definição e que indenização administrativa pressupõe desistência de processos. , o que foi classificado por eles como anti-ético.
Liberata Fidelis Manjerão, de 74 anos, perdeu visão no olho direito após cirurgia de catarata no AME de Taquaritinga, SP
Reprodução/EPTV
Cinco dos treze pacientes que ficaram cegos ou com sequelas após um mutirão de cirurgias de catarata em Taquaritinga (SP) reclamam que o Estado tem condicionado o ajuizamento das indenizações administrativas à desistência de processos judiciais na esfera cível. Segundo a advogada que os representa, isso significa que as vítimas deveriam desistir de suas ações antes de saberem o valor proposto pela indenização administrativa.
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“Imaginamos que viria do Estado uma proposta formal sobre indenizações, mas não veio. A Defensoria gostaria de entrar com uma ação para aqueles que não estão representados por advogados, pleiteando o valor indenizatório. Mas ainda não há uma proposta concreta”, disse a advogada Marília Natália da Silva.
Em 8 de fevereiro, o governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) disse que o Estado estudava uma proposta de indenização às vítimas. No dia 13 do mesmo mês, a Secretaria de Estado da Saúde (SES-SP) informou, em nota, que a Procuradoria Geral do Estado (PGE) e a Defensoria Pública do Estado de São Paulo apresentariam uma proposta de indenização “nos próximos dias”. Pacientes e advogados ouvidos pelo g1, no entanto, afirmam que isso não foi feito.
Procurada, a Secretaria da Saúde informou que questões relacionadas à indenização deveriam ser tratadas diretamente com PGE e Defensoria Pública. A PGE confirmou que ainda não há valores definidos e que a indenização administrativa pressupõe a desistência de ações judiciais. A Defensoria informou que as tratativas estão em estudo. (leia mais abaixo).
Falta de informações e frustração
Segundo pacientes e advogados, a Defensoria Pública começou a entrar em contato para discutir as indenizações e inclusive realizou uma reunião realizada no dia 21, mas sem nenhuma proposta formal sobre quanto o Estado pretende pagar de indenização e de pensão vitalícia.
Marília avalia que não há vantagem em trocar um processo judicial por um administrativo, especialmente porque não há garantia de que os valores pedidos serão aprovados. Caso uma proposta com valores já estabelecidos fosse apresentada, de acordo com a advogada, seria mais fácil definir se valeria a pena seguir por vias administrativas ou judiciais.
“Há um risco muito grande porque não veio proposta de valores. O que eles falaram foi: ‘monte um processo via administrativa, faça os pedidos, e vamos analisar para ofertar um valor para cada um, dependendo da extensão do dano’. Então, o que esperávamos [uma proposta fechada] não veio”, explicou a advogada.
Outros advogados ouvidos pelo g1 também reclamaram que seus clientes foram contactados pela Defensoria sem o conhecimento da defesa, o que foi classificado por eles como antiético. “Uma vez representados por advogados, eles não poderiam falar diretamente com as pessoas nem falar sobre os supostos valores, formas de pagamento”, diz Marília.
Tarcísio de Freitas afirma que OS responsável pelas cirurgias do AME em Taquaritinga será responsabilizada
Reprodução/EPTV
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Maria de Fátima Garcia Chiari, de 67 anos, é uma das pacientes em estado mais grave. Ela corre o risco de perder todo o globo ocular e, desde que perdeu completamente a visão, está sem condições de trabalhar. Antes salgadeira, ela depende da indenização para se manter financeiramente.
Sem advogado contratado, a idosa aguardava uma proposta concreta para quitar dívidas e recuperar o padrão de vida que tinha antes da cirurgia. Sua rotina tem sido marcada por deslocamentos entre Araraquara (SP) e Ribeirão Preto (SP) para consultas médicas, com gastos de combustível que ela mesma arca, já que o transporte público não atende aos horários que precisa.
Na reunião com a Defensoria, Maria foi informada de que precisaria elaborar o pedido de indenização junto ao defensor e que não havia uma proposta pronta. Foi sugerido que ela pedisse R$ 100 mil e mais dois salários mínimos vitalícios, valor que considerou insuficiente.
“Cem mil não é nada para quem perdeu um olho e sofreu tanto. Meu olho está aqui para quem quiser ver. Estou com tanta dor, sofrimento e sem condições”, desabafou.
A salgadeira Maria de Fátima Garcia Chiari ficou cega do olho direito após passar por cirurgia de catarata no AME de Taquaritinga, SP
Valdinei Malaguti/EPTV
Como funcionam as ações administrativas?
Thiago Marrara, professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e especialista em processo administrativo, explica que esse tipo de indenização é recente na legislação brasileira.
Ele destaca que, no processo de negociação entre a vítima e o Estado, é possível condicionar a indenização administrativa à desistência de ações judiciais, mas somente no momento da assinatura do acordo, e não durante as negociações.
“Esses acordos são completamente negociáveis. A administração pública pode colocar a desistência da ação judicial como condição, mas isso não é uma obrigatoriedade. A vítima pode seguir com o processo judicial até que o acordo seja assinado”, explicou Marrara.
Ele ressalta que a desistência da ação judicial só deve ocorrer no fim da negociação, quando o acordo já está escrito e a vítima sabe exatamente o valor que receberá. Após o acordo administrativo, dificilmente uma nova indenização seria concedida na esfera judicial.
Idosa está com depressão após perder o olho direito em cirurgia de catarata no AME de Taquaritinga
EPTV
Defensoria deve oferecer parâmetros claros
Marrara diz que é importante que a Defensoria forneça parâmetros claros para as propostas de indenização, como critérios baseados no número de filhos, renda e gravidade do caso. Ele também sugere que os pacientes não esperem indefinidamente por um acordo administrativo e, caso as negociações não avancem, busquem a Justiça.
No entanto, Maria de Fátima se diz “perdida” após o contato com a Defensoria. Ela afirma que ficou confusa com a abordagem remota e não entendeu quais são suas opções. A idosa teme até mesmo sofrer golpes ou ser assediada por outros advogados.
“Na verdade, o defensor queria montar o processo para mandar para o governo ainda. Aí eu fiquei meio em dúvida, pensei que já viria uma proposta pronta para ser aceita ou não aceita. Aí não, veio uma coisa crua, que é para gente mandar papéis. Eu não entendi. Independente de papel ou não o meu olho tá aqui para quem quiser ver. Eu tenho papéis aqui, mas eu, desse jeito, sem ver, com tanta dor, sofrimento, tenho condições de ficar tirando foto pelo celular?”, questiona.
O pintor Carlos Augusto Rinaldi perdeu a visão do olho esquerdo após passar por cirurgia de catarata no AME de Taquaritinga, SP
Valdinei Malaguti/EPTV
PGE e Defensoria Pública
Em nota, a PGE disse que o Estado está adotando as providências administrativas necessárias para viabilizar a indenização dos paciente, independentemente de ação judicial. Disse também que até o momento não há definição de valores, “dado que a sua fixação depende da análise individualizada de cada caso concreto (extensão do dano e situação pessoal dos pacientes).”
Por fim, a Procuradoria Geral do Estado confirmou que a “indenização administrativa pressupõe a desistência de eventuais ações judiciais que tenham por objeto a mesma pretensão”.
Já a Defensoria Pública comunicou que se colocou à disposição para apoiar os pacientes na interlocução com o Estado, mas que, no momento, “as tratativas seguem em estudo.”
Relembre o caso
O mutirão aconteceu no dia 21 de outubro de 2024. Ao todo, 23 pacientes foram submetidos às cirurgias. Após as cirurgias, 13 deles relataram perda parcial ou total da visão no olho operado, dor intensa, vermelhidão e, em alguns casos, infecções graves, com risco de perda do globo ocular.
Os procedimentos aconteceram no Ambulatório de Especialidades Médicas (AME), administrado pelo Grupo Santa Casa de Franca (SP), uma Organização Social de Saúde (OSS) contratada pelo governo estadual.
Nas consultas pós-operatório no dia seguinte, os pacientes relataram que a visão estava pior, mas alegam que foram orientados pelos profissionais de que a situação era normal e que estariam totalmente recuperados em até três meses.
A Santa Casa de Franca constatou que, na hora de fechar o corte da cirurgia, em vez de um soro de hidratação, os profissionais utilizaram uma substância que, na verdade, serve para assepsia superficial de pele e mãos, por exemplo, mas não pode entrar em contato com os olhos.
AME de Taquaritinga, SP
Valdinei Malaguti/EPTV
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