25 de setembro de 2024

A escritora que publicou o primeiro romance de literatura fantástica do Brasil e até hoje não tem rosto conhecido

Emília Freitas nasceu em Aracati (CE) e foi escritora, professora, jornalista e desafiou os padrões de gênero na literatura. Teve seu romance mais famoso, “A Rainha do Ignoto”, publicado em 1899. Até hoje, a autora não tem rosto conhecido por não existir foto oficial dela. Capa da 1° edição de A Rainha do Ignoto, publicado em 1889, por Emília Freitas.
Arquivo pessoal/Ana Cristina
Imagine uma sala de aula. O professor ou a professora lança a seguinte pergunta: ‘Quem aqui já ouviu falar no escritor José de Alencar?’.
Provavelmente, boa parte dos estudantes irão levantar a mão. Alencar é um nome conhecido no Ceará e no Brasil não só pela escrita. Ele também é homenageado em Fortaleza, dando nome a praças e ruas.
Agora, imagine a mesma sala respondendo a esta pergunta: ‘Quem aqui conhece a escritora Emília Freitas?’. Provavelmente, parte dos alunos não saberão responder.
Emília Freitas foi uma escritora cearense pioneira na Literatura Fantástica (abaixo, entenda mais sobre o gênero). A obra mais famosa, “A rainha do Ignoto”, foi lançada em 1899 e é considerada o primeiro romance de literatura fantástica do Brasil. Infelizmente, não há foto oficial da autora, que até hoje não tem rosto conhecido.
Imagem da 1° edição de A Rainha do Ignoto, publicado em 1899.
Arquivo pessoal/Ana Cristina
O exercício proposto por Ana Cristina, doutoranda no Programa de Pós graduação em Letras da Universidade Federal do Ceará (UFC), é didático e mostra o apagamento que mulheres sofrem ao longo dos anos em diversas profissões.
Além de escritora, Emília era professora, jornalista, abolicionista, republicana, feminista e espírita.
“Emília foi uma das poucas autoras, ainda mais mulher, que escreveu algo voltado para essa linha de Literatura Fantástica. Ela defendia muitas bandeiras: a questão do feminismo e direito das mulheres, a questão abolicionista, o direito à educação. Ela escrevia artigos falando sobre a importância de se educar, de propiciar o estudo a todos os jovens”, explicou Cristina ao g1.
Os desafios de ser mulher e escrever
Recorte da Revista da Academia Cearense (CE) que fala sobre Emília Freitas. A imagem faz parte da pesquisa de Ana Cristina.
Revista da Academia Cearense (CE), 1900/ Imagem cedida
Emília era filha do tenente-coronel José de Freitas e de Maria de Jesus Freitas. Nasceu em 15 de janeiro de 1855 na cidade de Aracati, Região Metropolitana de Fortaleza (RMF), e morreu em 1908.
Veio para Fortaleza estudar língua inglesa e francesa e também geografia. Colaborou com diversos jornais, como o Libertador, Cearense, O Lírio e A Brisa. Morou na cidade de Manaus, onde também se dedicava às produções literárias. Lá, conheceu o marido, com quem fundou o primeiro jornal espírita do Ceará (doutrina que os dois seguiam).
As informações constam na Revista da Academia Cearense (veja o recorte acima). A professora Ana Cristina ajudou o g1 a localizar os dados e explicou sua pesquisa em torno da vida da escritora cearense.
“Emília tem quatro obras, fora as contribuições que dava para os jornais: Canção do lar (livro de poemas), O Renegado (romance que ninguém encontrou), A Rainha do Ignoto e uma peça do teatro: Nossa Senhora da Penha, que ela escreveu. O principal é a Rainha do Ignoto, que tem sido objeto de vários estudos críticos”, complementou Cristina.
Apesar de nascer em bom berço, enfrentou os desafios de ser mulher e encarar um cenário literário tomado por homens. Naquela época, pouquíssimas mulheres conseguiam publicar suas produções:
“A Emília veio em um período em que à mulher eram reservados os afazeres domésticos. As ocupações deviam ser restritas ao lar e à família. A mulher não era estimulada aos estudos, ao trabalho fora de casa. Até mesmo para sair de casa era de bom tom que saísse acompanhada. Sem falar em direitos políticos, que não tinham. Mulher escrever e publicar era uma coisa muito rara. As pessoas valorizavam mais a literatura masculina”, apontou a especialista.
Apagamento ainda em vida
A Rainha do Ignoto 2° edição de 1980 e 3° edição de 2003.
Imagens cedidas/ Ana Cristina
A historiadora Alcilene Cavalcante é uma das especialistas brasileiras que mais se dedica a estudar Emília Freitas.
Mestra em História pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e doutora em Letras pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), ela transformou sua tese de doutorado em livro. O título “Uma Escritora na Periferia do Império – Vida e Obra de Emilia Freitas (1855-1908)” foi lançado em 2008 em Fortaleza.
Apesar de ser paulista, o interesse pela escritora cearense surgiu pela proximidade com o estado: ela tem pais cearenses, já morou aqui e tem conexões de amizades e intelectuais na capital.
“O romance ‘A Rainha do Ignoto’ é imperdível. É aquela coisa: a gente sempre acha que está descobrindo a roda, que somos modernos. Mas, quando você lê as mulheres do século XIX, é incrível. Ela (Emília) já chamava atenção para a questão da violência contra as mulheres. Para mim, ela é uma feminista”, disse Alcilene ao g1.
Emília era, conforme as fontes consultadas pela reportagem, uma mulher à frente de seu tempo, uma figura interessante. Seu talento não se resume somente à “Rainha do Ignoto” e, como aconteceu com outras escritoras da época, sofreu um processo de apagamento sistemático e projetado – ainda em vida, inclusive.
“O contexto cultural brasileiro se modificou significativamente nos últimos 20 anos. Falar de mulher e literatura nos anos 2000 é diferente de falar de mulher e literatura nos anos 80/90. Comecei a pesquisar Emília em 2002. Na época, nós ainda não tínhamos essa centralidade que o feminino passou a ter no cenário político do país”, comentou Alcilene.
A professora Alcilene Cavalcante estuda Emília Freitas desde 2002.
Arquivo pessoal
Conforme a professora, as pesquisadoras literárias dos anos 1980 tiveram um papel fundamental na recuperação das escritoras brasileiras.
“Ainda nos anos 2000, nos currículos de Letras das principais universidades brasileiras, falava-se de Cecília Meireles, Clarice Lispector e, no máximo, Júlia de Almeida, que é do final do século XIX. Com o trabalho das pesquisadoras de mulheres, levantou-se que havia no Brasil 52 escritoras no século XIX”.
Essas mulheres também escreviam para jornais, publicavam ensaios, contos. No Ceará, um outro exemplo é Francisca Clotilde, de Tauá. Ela era educadora, jornalista, e importante figura defensora do abolicionismo e da libertação das mulheres.
“O Ceará concentrou um número de escritoras bastante significativo no século XIX. Nós temos, no mínimo, seis em destaque”, completou Alcilene.
Para a pesquisadora, resgatar Emília Freitas é relevante para a literatura porque amplia a compreensão de produção intelectual literária das mulheres do Brasil e mostra que as mulheres, diferentemente do que era divulgado, estavam escrevendo naquela época também.
“A Emília era uma leitora da literatura nacional e estrangeira. Ela era abolicionista, republicana, estava atenta à crônica política do seu período, tinha críticas aos rumos da modernização. Ela já estava atinada para a inclusão social dos libertos e libertas, estava atenta à violência contra as mulheres. E levava tudo isso para a ficção”, disse Alcilene ao g1.
‘Não existiam escritoras no Ceará?’
Jornalista escreveu livro sobre Emília Freitas e outras cearenses escritoras.
No romance a “Rainha do Ignoto” a personagem principal comanda uma sociedade onde as mulheres são médicas, engenheiras, políticas, professoras, cientistas – em contraste ao que era imposto naquele período comandado por homens.
De acordo com Alcilene Cavalcante, somente foi possível conhecer Emília porque outras mulheres pesquisadoras também se desafiaram a ir mais fundo na área.
É um efeito cascata: uma descobre a outra e passa a palavra adiante. Nesse processo, a jornalista e escritora Heloísa Vasconcelos se encaixa bem.
Ela lançou neste ano o livro “Ipomeias”, que conta a história de Emília Freitas, Francisca Clotilde, Alba Valdez e Henriqueta Galeno – mulheres do século XIX que foram ativas na imprensa cearense.
“Fiquei com vontade de pesquisar sobre mulheres na imprensa cearense desde o segundo semestre da faculdade de Jornalismo. A gente tem uma cadeira falando sobre a História do Jornalismo Brasileiro e me incomodou muito o fato de a gente estar estudando muitos homens e não ter mulheres na lista (pelo menos falando do século XIX). Ficou essa pulga atrás da orelha: não tem mulheres escrevendo?”
A partir disso, Heloísa transformou a curiosidade em seu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) e, posteriormente, em livro. Segundo a pesquisadora, Emília Freitas chamou sua atenção por ter sido também a primeira mulher a publicar na imprensa cearense.
“Ela trouxe todo esse movimento. Ela tem textos muito interessantes, o estilo de escrita dela é interessante. Ela tem esse marco da Rainha do Ignoto, o primeiro romance da literatura fantástica. Tem algo muito marcante nisso”, explicou Heloísa.
‘Ipomeias’ é uma espécie de flor e não deu nome ao livro por simples coincidência:
“As mulheres são sempre colocadas para serem flores e, principalmente naquela época existia isso de a mulher ter que ser delicada, do lar, arrumada. Ipomeias é uma espécie de flor considerada erva daninha. Faço essa referência de mulheres que são flores, mas que não são como a sociedade deseja. Elas conseguem adentrar espaços que não eram delas, atravessam os muros, se espalham mesmo sem incentivos para isso”.
A jornalista também compartilha com as outras fontes a dificuldade de encontrar informações sobre Emília e demais escritoras cearenses. A isto, dá também o nome de apagamento.
“A Emília, por exemplo, tem poucas notícias de jornal de crítica a obra dela. É complicado encontrar conteúdo sobre esse assunto, quando é um assunto que não é valorizado nem na época em que elas estavam vivas e escrevendo”.
Heloísa no lançamento do livro ‘Ipomeias’, que conta histórias de escritoras cearenses.
Arquivo pessoal
Literatura Fantástica: a manifestação do sobrenatural
O livro de Monteiro Lobato ganhou uma adaptação para a televisão.
Renato Rocha Miranda/Globo
Em uma tentativa de resumir o que é a literatura fantástica, pode-se dizer que ela é o espaço em que ocorre uma possível manifestação do sobrenatural em uma realidade narrativa semelhante à nossa realidade.
O gênero vem da Europa, principalmente França, Alemanha e Inglaterra e chega no Brasil no século XIX de forma muito tímida.
De acordo com Ana Cristina, doutoranda no Programa de Pós graduação em Letras da Universidade Federal do Ceará (UFC), há alguns conceitos sobre o gênero que são consensos na academia. Para ser literatura fantástica é preciso ter, portanto:
A presença do elemento do sobrenatural
A a presença de um discurso racional que se contrapõe a esse elemento sobrenatural. Ou seja: o personagem não acredita no que está acontecendo e vai tentar racionalizar o que ele está vendo.
O espaço precisa ser realista, bem descrito. A realidade da narrativa deve ser semelhante à nossa realidade. Precisa de momentos em que o fantástico se aproxima. É um espaço híbrido.
Precisa de ambiguidade: vacilação que os personagens da narrativa sofrem quando estão diante do evento insólito. Eles titubeiam: ‘Será que isso que estou vendo é verdade?’.
Dois exemplos clássicos de literatura fantástica são Frankenstein e Alice no País das Maravilhas – ambas obras populares e que já ganharam novas versões. No Brasil, temos o Sítio do Picapau Amarelo, de Monteiro Lobato, e Macunaíma, de Mário de Andrade.
Em algumas dessas produções, a dose de ficção científica também pode ser notada. Assim como outros gêneros da literatura, a fantástica é também uma forma de tentar entender o mundo ou expressar a percepção que se tem dele.
“A produção literária da Emília Freitas traz uma colaboração especial à literatura brasileira pela riqueza de aspectos que a obra dela (Rainha do Ignoto) apresenta. De modo simultâneo, a gente encontra a presença de aspectos regionalistas (ela descreve bem os costumes regionais do Ceará e Nordeste de uma forma geral), tem também traços do naturalismo, que era a escola literária da época, tem elementos da literatura fantástica e também críticas sociais envolvendo a inversão de valores ”, pontuou a especialista Ana Cristina.
À margem do Cânone
A escritora brasileira Clarice Lispector está no Cânone Literário.
Divulgação/Rocco
Assim como outras escritoras de sua época e de outros séculos, Emília Freitas também foi esquecida pelo Cânone Literário. O Cânone é uma ‘coleção’ de grandes obras da literatura. São produções usadas como referências e exemplos do que deve ser seguido.
A professora Alcilene Cavalcante tem uma definição bem crítica sobre o cânone. Ela disse que esse espaço, em geral, é bem masculinista e elitizado.
“Isso significa que, a despeito dos valores literários, as mulheres historicamente foram excluídas dos cânones. E em relação àquelas que conseguiram entrar, como Raquel de Queiroz, Cecília Meireles, Clarice Lispector, precisamos pensar na rede de sociabilidade delas. Clarice era casada com um diplomata, Raquel estava vinculada a grupos elitizados da sociedade, Cecília não é diferente. Não estou dizendo que a literatura delas não têm valor, muito pelo contrário”, explicou.
Soma-se a isso o marcador regional. De acordo com a análise da especialista, cidades que estavam mais afastadas da região sudestina sofriam (e ainda sofrem) com a falta de reconhecimento quanto à sua produção intelectual.
Um outro exemplo de escritora excluída pelo Cânone Literário é Maria Firmina dos Reis, a mulher negra maranhense que é a primeira escritora brasileira e ícone no movimento antiescravista.
“E quem é que define o que tem valor ou não? E define a partir de que paleta, de que escala, de quais critérios? O cânone brasileiro está se abrindo mais para as mulheres, mas quais mulheres? Brancas e de elite”, provocou Alcilene.
Maria foi a primeira mulher a ser aprovada em um concurso público no Maranhão para o cargo de professora primária.
Divulgação
História escrita por elas!
Conheça trecho da 1° edição de A Rainha do Ignoto, publicado em 1899.
Arquivo pessoal/Ana Cristina
O resgate das histórias de Emília e outras mulheres que tiveram suas vivências apagadas vem sendo feito, de acordo com as especialistas. Mas, o caminho é longo e precisa ser escrito por elas, as mulheres:
“As mulheres vêm batalhando. Agora, assim, ainda está em caminho, por exemplo, o resgate dessas autoras nas estudos de literatura: não só no meio acadêmico, como também nos colégios. Acho que isso tem que ser trabalhado. Se perguntar se já ouviu falar em José de Alencar, ele (o estudante) vai dizer que sim. Mas se perguntar de Emília Freitas, provavelmente vai dizer que não”, apontou Ana Cristina.
Já Heloísa Vasconcelos acredita que conhecer as obras de Emília e de outras mulheres ajuda a contar a história do Ceará.
“Ela foi uma personagem muito incrível. Conseguiu alcançar os lugares que não eram para as mulheres. O que me desperta interesse é que ela ainda é uma figura muito misteriosa. Tanto tempo se passou e hoje a gente não tem uma foto dela ainda. É um marco para a gente ter uma escritora que escreveu o primeiro romance de literatura fantástica”.
Como mulher escritora, acredita que os desafios enfrentados pelas mulheres no passado mudaram, mas pensa que ainda existem obstáculos – especialmente quando fazemos recortes sociais.
“A educação não chega para todo mundo. Ainda existe um recorte de mulheres que ficam longe desses espaços . É um recorte socioeconômico. Para as mulheres que escrevem, existe ainda o machismo em nossa sociedade. Acho que uma mulher escritora tem que fazer muito para ter o mesmo reconhecimento de um homem que escreve”, disse Heloísa.
Jornalista reflete sobre o apagamento de escritoras no Brasil.
Assista aos vídeos mais vistos do Ceará:

Mais Notícias