Mulher teria chamado a profissional de ‘urubu preto’ na frente de pacientes, acompanhantes e funcionários. Polícia Civil investiga o caso. Técnica de enfermagem denuncia injúria racial em Poços de Caldas
Uma técnica de enfermagem de Poços de Caldas (MG) registrou um boletim de ocorrência de injúria racial após ser ofendida por uma paciente.
Najila Passos da Silva contou que estava trabalhando em um hospital, no domingo (2), quando uma paciente pediu que ela acelerasse a aplicação do soro e se irritou quando teve o pedido negado.
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“Seria uma medicação que não poderia ser corrido rápido, tinha que correr lento por conta da prescrição médica e eu sigo aquilo que está prescrito. Por conta dela querer ir embora logo para casa, ela queria que eu acelerasse o medicamento, só que eu falei que eu não poderia e, simplesmente, ela falou que eu era um urubu preto.”
A injúria teria ocorrido na frente de outros pacientes, acompanhantes e da enfermeira chefe.
“Ela falou várias e várias vezes, repetiu, falando que isso que eu estava na profissão errada. Foi muito triste. Na hora em que ela me chamou na primeira vez, eu parei, pensei bem e fingi que não ouvi, só que ela continuou repetindo várias e várias vezes. É muita humilhação. Eu sou preta sim, mas eu sou uma urubu preta que sempre cuidou dela, que levantei às 6h para dar toda a assistência e cuidado a ela. Eu sou uma urubu preta sim, que dava até remédio na boca dela, que auxiliava ela no banho e no final disso sou chamada de urubu preto”, lamenta Najila, muito emocionada.
Najila Passos da Silva registrou B.O. de injúria racial após ser ofendida por paciente de hospital em Poços de Caldas
Reprodução EPTV
A técnica de enfermagem disse que pensou muito na sua reação às ofensas e se iria denunciar.
“Se eu tivesse partido para a agressão, ia rolar mídia. Porque eu sou de carne e osso e, se eu tivesse ido para cima dela, eu ia perder o meu emprego, ia sujar meu nome, ia sujar minha imagem. A primeira coisa que eu pensei [antes de denunciar], eu fiquei com medo de expor o hospital, mas eu acho que a minha coragem foi muito, eu continuei com meu plantão, chorei muito, muito, muito.”
Najila está muito abalada. Ela contou que sempre que relembra desse caso, ela fica emocionada.
” Quando toca no assunto, quando eu fico sozinha, eu choro. Esse negócio desse preconceito dói, machuca. Eu sou preta, mas eu sou preta que cuida de vidas, cuido do amor de alguém. O mínimo era ter respeito por mim”.
Najila Passos da Silva com o diploma de técnica de enfermagem
Reprodução redes sociais
A técnica de enfermagem disse que irá lutar por Justiça. “Isso não pode acontecer, eu estava preparada para tudo. Eu quando eu entrei nessa área da enfermagem, eu estava preparada para tudo, mas ser preparada para esse chamado de urubu preto, pela mesma paciente que eu tive os cuidados, isso para mim foi muito triste, muito triste, e eu quero justiça.”
A Polícia Civil aqui de Poços de Caldas informou que está apurando o caso, mas ninguém ainda foi conduzido à delegacia.
A direção do hospital Santa Lúcia disse que se sente desconfortável com o comportamento da paciente, que deu apoio a Najila e que espera a investigação das autoridades.
Repercussão
Técnica de enfermagem registra Boletim de Ocorrência após ser chamada de ‘urubu preto’ em Poços de Caldas
Reprodução redes sociais
Várias entidades ligadas à luta racial divulgaram nota de repúdio sobre o caso.
O líder religioso Babalorixá Macurs Ty Odé, pai de santo na umbanda há 30 anos, reconhecido nacionalmente pela luta de respeito às religiões de matriz africana e contra as violações à população negra e indígena lamentou o episódio.
O coletivo negro Dona Laudelina Campos Melo disse que tem profundo repúdio ao ato criminoso, que acolhe a vítima e reforçou a urgêncua de um letramento racial em Poços de Caldas e que “é imprescindível que a cidade avance na construção de uma sociedade antiracista, onde profissionais negros possam excercer suas funções com respeito e segurança”.
A Escola Estadual Dr. João Eugênio e a professoa Cíntia Terezinha Lemes, integrante do Centro Afrobrasileiro Chico Rei, chamaram o ato de “abominável” e exigiu rigor na investigação e punição dos responsáveis pela agressão. “Tais atos configuram uma violência moral e psicológica que causa anos irreparáveis às vítimas”, afirmou nota.
De acordo com a coordenadora da divisão de políticas de promoção da igualdade social e étnica, da secretaria municipal de Assistência Social, Nancy Moraes, reforçou a importância de denunciar casos de injúria racial.
“A injúria racial é crime e ela tem que ser denunciada, sim. É necessário que a gente brigue pelos nossos direitos. Mesmo que às vezes nos dê insatisfação que depois que se faz a denúncia, às vezes não acontece o que a gente está esperando, mas é preciso denunciar sim. Hoje a injúria racial como racismo são crimes e a pessoa tem que ser conduzida e tem que pagar por isso. A pessoa tem que ser responsabilizada”, afirmou.
O cime de injúria racial é imprescritível e desde 2023 é equiparado ao crime de racismo, com pena de 2 a 5 anos de prisão.
“É impossível que em pleno século XXI a gente tenha que passar por essa indignação. Nós todos estamos indignados. Hoje, toda população preta de Poços de Caldas é Najila. E toda pessoa anti-racista também é Najila. Nós não podemos deixar que isso passe, como se nada tivesse acontecido, normalizando coisas que não são normais. O respeito é necessário. A gente vai trabalhar e vai estar com a Najila, exigindo que a lei seja cumprida”, disse Nancy.
Crime na região
Denúncias de racismo e injúria racial aumentaram no Sul de Minas
Arquivo/Divulgação/Prefeitura de Santos
De acordo com dados da Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública (Sejusp), Minas Gerais registrou 1.126 denúncias de injúria racial em 2024.
As quatro cidades mais populosas do Sul de Minas tiveram aumento deste tipo de denúncia no período de janeiro a agosto de 2024, comparado com o mesmo período de 2023:
Em Poços de Caldas, foram 22 casos nos oito primeiros meses do ano passado, dez a mais do que no mesmo período de 2023.
Já em Passos, os registros passaram de 3, em 2023, para 5 em 2024.
Em Pouso Alegre, os casos dobraram: em 2023 foram 7 e, em 2024, foram 15.
Em Varginha, o aumento foi de 267%, passando de três em 2023 para 11 em 2024.
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