26 de dezembro de 2024

Mulher leva tiro na perna em ação da polícia em Santos e um mês depois o filho é morto pela PM, mostra relatório da Defensoria Pública

José Marcelo Neves dos Santos, de 31 anos, foi morto pela polícia no litoral de São Paulo. Segundo a família, ele saiu de bicicleta para comprar gasolina e não voltou mais. Mortes por intervenção policial quadruplicam na Baixada Santista, SP
Aos 31 anos, José Marcelo Neves dos Santos, foi morto pela polícia. Na manhã daquele dia 11 de fevereiro, ele tinha saído de bicicleta para comprar gasolina e não voltou mais, segundo a família.
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Sem saber seu paradeiro, a família o procurou no hospital, na delegacia, no IML, até que descobriram o que tinha acontecido.
Ele havia sido abordado pela polícia. “Tinha mais gente e mandaram os outros embora. Não sabemos como ele morreu, só que tomou tiros”, conta a mãe, sem se identificar, afirmando que o filho nunca pegou em uma arma e não tinha como ter trocado tiros com os agentes, como na versão apresentada pelos policiais no Boletim de Ocorrência.
Segundo a família, ele teve uma passagem pela polícia por tráfico há mais de 10 anos e, desde então, trabalhava e não tinha nenhum tipo de envolvimento com o crime.
“Queria ver os policiais e perguntar porque mataram seu filho. Eles sabem que é mentira que ele era criminoso. Desde a morte dos filho, tô muito abalada. Penso toda hora que ele vai vir, vai chegar”, diz ela.
Um mês antes da morte do filho, a própria mãe havia sido vítima das ações policiais no litoral, que até esta terça-feira (5) já deixou 39 mortos.
Ela estava em casa, por volta das 22h30 da noite, no dia 9 de janeiro, quando começou uma operação na comunidade. Quando se deu conta, a polícia havia entrado na casa “como se fosse um terremoto”.
Mulher leva tiro na perna em ação da polícia em Santos e, um mês depois, o filho é morto pela PM
Reprodução/GloboNews
Ela ficou preocupada com seu irmão que estava na sala de casa e é cadeirante, e só depois se deu conta que havia ela mesma sido atingida com um tiro na perna.
Este é um dos casos que estão relatados em um relatório da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, obtido com exclusividade pela GloboNews.
O documento foi elaborado pelo Núcleo Especializado de Direitos Humanos da Defensoria, que realizou escutas de 24 moradores de três comunidades da Baixada Santista –Vila Teimosa/Vila Sonia, em Praia Grande,Vila dos Pescadores, em Cubatão e Vila dos Criadores, em Santos– no dia 22 de fevereiro. Nenhum dos moradores foi identificado.
Neste caso de Santos, há um procedimento instaurado na Corregedoria da Polícia para investigar as circunstâncias do crime.
‘Estou com muito medo’, diz criança de 10 anos
Outro relato que está no relatório, na Vila dos Pescadores, em Cubatão, onde ocorreram três casos de morte pela polícia este ano, as incursões policiais tem sido diárias. Segundo relatos, elas acontecem, principalmente, nos horários de entrada e saída das escolas, afetando a rotina de crianças e jovens. No dia da visita da Defensoria, o Choque havia entrado na comunidade às 11h.
“As crianças não têm mais liberdade de ficar na rua ou brincar no parquinho. Não sabemos qual momento eles vão entrar e é perigoso. Eles não respeitam crianças. Tenho um filho de 12 anos com paralisia cerebral. Faz duas semanas, estava voltando da escola com meu filho quando iniciou um tiroteio. Na sequência, eu estava passando por uma rampa, um policial da ROTA impediu que eu continuasse a passar pela rampa. Ele me disse que ‘se eu quisesse eu que esperasse passar o tiroteio ou que me deitasse no chão'”, contou uma moradora.
Outra mãe conta como conseguiu impedir seu filho de ser morto: “Estava saindo de casa com meu filho de 23 anos, quando entraram vários policiais no beco. Iam atirar no meu filho e entrei na frente. Mandaram eu sair e falaram que iriam atirar porque ele tinha corrido da polícia. Não saí e eles foram embora”, contou ela.
Operação Verão havia deixado 39 mortos até a última terça-feira (29).
Carlos Nogueira/TV Tribuna e Carlos Abelha/TV Tribuna
Agora, as mães da comunidade têm um grupo de Whatsapp para se comunicar e saber quando tem operação da polícia, para impedir os filhos de saíram de casa.
No mesmo local, uma criança de 10 anos contou o que tem visto nos últimos meses: “Os policiais militares entraram na comunidade e mataram. Estou com muito medo”, disse para as defensoras.
Os relatos colhidos também mostram que policiais têm feito buscas domiciliares generalizadas, em que não há situação de flagrante delito ou determinação judicial, como prevê a lei.
Uma das moradoras conta que há três semanas, os policiais quebraram a porta e invadiram a casa dela, enquanto ela não estava.
“Não estava em casa porque estava com medo com a presença dos policiais no beco e fui para a casa de uma amiga/vizinha para me proteger. Mesmo assim entraram na casa da minha amiga sem autorização e apontaram armas para a gente. Depois que os policiais saíram sem prender ninguém, descobri que tinham entrado também na minha casa e quebrado tudo. Ainda pegaram um chocolate que estava na minha geladeira”, conta.
Outra mulher, de 33 anos, relatou que no dia 20 de fevereiro, estava em casa lavando roupas, quando os policiais entraram na sua casa e colocaram o fuzil no rosto da sua filha de 10 anos.
Já um jovem de 19 anos conta que, desde janeiro, já tinha sido abordado diversas vezes por policiais militares e do Choque. “Duas vezes eu levei soco no abdômen e na outra vez um tapa na cara. Nem na rua eu saio mais. Em janeiro, estava em casa por volta das 21h00, descansando. Foi quando escutei vários tiros. Sai na rua e vi um amigo morto e outro alvejado na perna”, disse.
Uma mulher de 37 anos, que vive na Vila Teimosa/Vila Sônia, em Praia Grande. Ela conta que na comunidade, um dia antes da ida da Defensoria ao local, a polícia fez revistas indiscriminadas e violentas e invadiu casas.
“Por volta das 16h, a Força Tática da Polícia Militar invadiu a comunidade e entrou em algumas casas. Os policiais todos estavam sem identificação, armados com fuzis e parando todos os moradores, inclusive crianças. Eu estava na frente da minha casa quando vi o momento em que abordaram uma moradora, pegaram ela pelas costas, sentaram ela no chão, na chuva, e começaram a humilhar ela com palavrões pedindo que ela informasse onde era o ponto do tráfico. Como ela falou que não sabia, pegaram o celular dela, tiraram os chips e quebraram o celular e depois jogaram gasolina no rosto dela e mandaram ela subir sem olhar para trás”, narra a mulher, que lá há cinco anos.
Mortes pela polícia quadruplicaram
O documento também mostra que as mortes pela polícia na Baixada Santista quadruplicaram em janeiro deste ano. Em 2022 e em 2023 foram apenas 4 mortes por ano por intervenção policial, praticadas por agentes em serviço, na região. Já este ano foram 16, de acordo com dados da Secretaria de Segurança Pública.
O número de mortos nas cidades do litoral esse ano corresponde a 34% do total de mortes de todo o estado, que registrou 47 ocorrências.
Das16 ocorrências de morte, em 13 casos as vítimas foram identificadas como pardas ou pretas, o que representa 81,3% dos registros
A Defensoria Pública teve acesso, até agora, a apenas sete Boletins de Ocorrência, referentes a 9 mortes ocorridas na região.
Quatro deles têm envolvimento de policiais da ROTA, que é um dos batalhões equipados com câmeras corporais, mas, apesar disso, em nenhum dos documentos há menção de que os policiais estariam com o item na farda durante as ações.
A média de disparos de arma de fogo foi de 4,5 disparos, nos seis BOs em que esta informação está disponível.
Em uma das ocorrências registradas, cinco equipes da ROTA realizaram um cerco na região conhecida como Vila dos Pescadores em Cubatão, resultando na morte de três pessoas não identificadas. Não constam informações sobre o número de disparos de arma de fogo ou sobre o uso de câmeras corporais.
De acordo com o relatório, há ainda indícios da não preservação das cenas dos crimes. A ausência de corpos nas cenas de crimes impossibilita a perícia de coletar provas técnicas.
Em um dos BOs, a não preservação do local dos fatos é explicada por um suposto tumulto no local. “Em razão do tumulto causado nas imediações e com o eventual risco de novo confronto no local, ficou prejudicado para perícia, razão pela qual não é possível a preservação do sítio do evento”
Segundo a Defensoria, há também uma repetição da versão policial em todas as ocorrências com morte. “Os suspeitos portavam drogas, atiraram contra os policiais e que teriam sido socorridos ainda com vida”.
Violação sistemática de direitos
Segundo a Defensoria, o que acontece hoje na Baixada Santista é uma violência sistemática de direitos.
“Longe de constituir casos isolados de desvios de conduta individuais de policiais, ilustram o quadro contínuo e sistemático de violações de direitos fundamentais dos moradores das comunidades periféricas da Baixada Santista, fruto tanto da precariedade de planejamento nas ações policiais que levem em consideração a proteção de seus moradores, quanto de uma cultura permissiva de variadas violações de direitos humanos e desrespeito em relação a população residente de favelas e territórios periféricos”. afirma o texto.
A Defensoria oficiou duas vezes a Secretaria de Segurança Pública e o Comando Geral da Polícia Militar questionando sobre o planejamento das operações, o quantitativo de agentes envolvidos, a quais batalhões estão vinculados, o tempo previsto para Operação e área de abrangência, números de ocorrências de mortes por intervenção policial e uso de câmeras corporais portáteis pelos policiais envolvidos mas não obteve nenhuma resposta.
Nesta segunda-feira (4), o órgão enviou um novo ofício, onde pede o fornecimento de informações das operações como: o responsável pela ordem da operação; o comandante da execução e fiscalização e o objetivo da operação policial; a identificação das pessoas detidas e mortas (policiais ou não) no decorrer da operação (ainda que não conheça a autoria); a identificação de adolescentes detidos ou mortos após intervenção policial; a identificação dos registro materiais apreendidos em ocorrências; a indicação de número de buscas domiciliares realizadas, com ou sem mandado judicial; dados sobre o consumo individualizado de munição por parte dos policiais; a relação de policiais militares designados para Operação que fazem uso de câmeras operacionais portáteis (COPs), bem como o acesso às imagens das câmeras corporais em sua integralidade nas ocorrências que resultem em morte em decorrência de intervenção policial; a relação do armamento, das viaturas utilizadas e de todos os policiais participantes da operação.
SSP-SP
Em nota, a SSP-SP afirmou que os casos citados são investigados pelo Departamento Estadual de Investigações Criminais (DEIC) de Santos. A pasta acrescentou que, em 9 de janeiro, uma equipe da PM que atendia a um chamado sobre tráfico de drogas no bairro Alemoa, também na cidade, foi recebida a tiros por oito criminosos.
Ainda de acordo com a SSP-SP, houve a intervenção por parte dos agentes e, durante a troca de tiros, o estilhaço de um projétil atingiu a perna de uma mulher, que foi imediatamente socorrida.
A pasta alegou também que, em 11 de fevereiro, policiais faziam ronda pela região quando iniciaram o procedimento de abordagem a um homem em uma bicicleta. Ao perceber a aproximação policial, o homem sacou uma arma e atirou em direção aos agentes, acertando a viatura.
Os policiais intervieram e acertaram o homem, ainda segundo a SSP-SP, que foi socorrido à UPA da Zona Noroeste, onde morreu. Com ele foram encontradas porções de entorpecentes.
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