26 de dezembro de 2024

Salvador 475 anos: histórias de mulheres se misturam com a de bairros em uma cidade feminina

Figuras femininas estão nas ruas, ocupando o espaço físico, mas também nos nomes dos logradouros. São mão de obra, força, inspiração, e têm histórias pessoais que se misturam com a de bairros da cidade. Cidade feminina: histórias de mulheres se misturam com a de bairros de Salvador
Arquivo pessoal/Redes sociais/g1 Bahia
De educadoras a trancista, o g1 traz neste 8 de março, Dia Internacional da Mulher, baianas com histórias inspiradoras que se misturam com a de alguns bairros de Salvador, cidade que também é celebrada neste mês de março – quando completa 475 anos – e a segunda mais feminina do país. [Clique aqui e veja dados]
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Em Roma, na Cidade Baixa, Maria José Simões Santana Barreto Costa virou a “Professora Lia”. Aos 80 anos, ela mora há 60 no bairro onde criou 5 filhos e teve outros tantos “do coração”.
Entre as memórias que tem do local em que fincou raízes, está a de uma freira “teimosa” que passava quase diariamente na Escola Santa Rita, que pertence à educadora, pedindo ajuda financeira para cuidar de pessoas carentes.
A religiosa em questão, à época irmã Dulce, décadas depois seria canonizada e se tornaria Santa Dulce dos Pobres, a primeira santa brasileira.
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Arquivo pessoal
Uma das lembranças da octagenária é de uma Irmã Dulce de personalidade forte e determinada.
“Todos os dias ela passava na escola e perguntava se tinha algo para doar, assim a gente fez amizade”, se recorda professora Lia, que usou da influência que tinha como dona de escola para mobilizar pessoas e os veículos de comunicação para ajudarem na ampliação do Hospital Santo Antônio, obra da religiosa baiana.
“Pedi autorização das mães, peguei meus alunos todos, e levei em procissão, cada um carregando um tijolo. Isso chamou a atenção do público, das pessoas. Até a imprensa veio e fez reportagem”, recorda professora Lia.
Lia Costa pediu autorização dos pais e levou crianças com tijolos na cabeça para chamar atenção e pedir ajuda para construção do Hospital Santo Antônio, em Roma, na Cidade Baixa.
Arquivo pessoal
Distante alguns quilômetros de Roma, em outro bairro icônico e de nome feminino de Salvador, a também professora Nilza Barbosa, 72 anos, tem seu legado com endereço no bairro da Liberdade.
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A Biblioteca Comunitária Troca Livros, na Estrada na Liberdade, nº 14, é muito mais do que um ponto de referência do bairro tradicional da capital baiana, e tem história que merece estar em um livro um dia.
Professora, Nilza montou um reforço escolar para complementar a renda e criar, junto com o marido Florisvaldo, os sete filhos. Ela lembra que naquela época, meados de 1992, o acesso aos livros didáticos era difícil para os alunos da rede pública.
Realidade diferente da vivenciada pelo público do reforço, formado em sua maioria por estudantes de escolas particulares, e que, ao final do ano, deixavam os livros por lá. Ela se deu conta que tinha então a faca e o queijo na mão, e criou o “Troca Livros”.
“Sobravam muitos livros dos [alunos] de [escola] particular dentro do meu reforço, que seriam úteis para os de escola pública. Tinha um livro, se o aluno não tivesse nada para trocar, pagava metade do valor de comércio”, explicou a professora.
Nilza foi professora da rede pública por 35 anos.
Jade Coelho/g1 Bahia
A iniciativa se popularizou, cresceu e foi replicada Salvador a fora. Hoje em dia, passados 22 anos, o espaço virou uma biblioteca e funciona com a mesma política: a pessoa leva um livro, escolhe outro e pega uma taxa simbólica.
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Quem é da comunidade leva qualquer livro emprestado, sem prazo para devolver, e sem a necessidade de cadastro. “Cada um tem seu tempo, se eu coloco prazo, limito e posso perder um leitor”, defendeu. E assim a educadora Nilza Barbosa acabou conhecida e referência na Liberdade.
“Qualquer esquina da Liberdade que você perguntar o povo me conhece. Eu fui professora 35 anos, a maioria das pessoas dessa comunidade passou por mim, não só pela troca de livro, mas mais pela troca de livros”.
Não muito longe dali, no Pelourinho, outra mulher escolheu Salvador como lar, criou raízes, fez e virou história em um bairro da cidade.
Na Rua Frei Vicente, nº 4, a turbancista e trancista Negra Jho fez a vida e se tornou referência na arte de trançar cabelos, além de colocar turbantes.
Aprendeu o ofício sozinha, ainda criança, tendo como modelos as irmãs, no Quilombo da Muribeca, na Região Metropolitana de Salvador.
Negra Jho é referência em tranças e penteados afro.
Arquivo pessoal
A terceira filha de sete, Negra Jho fala com orgulho que depois dela “em toda rua do Pelourinho tem uma moça trançando cabelos”, o fato faz com que ela se sinta homenageada. Ensinar o ofício fez com que muitas mulheres, assim como ela, tirassem dos cabelos o sustento para a casa e pudessem criar com dignidade os filhos.
“Nasci dentro de um quilombo, cheguei no Pelourinho em meados de 1980. O povo não estava na linha afro, só usava estética afro na Noite da Beleza Negra. E eu cheguei com turbante, sorriso no rosto, estética, valor e revolucionei”, conta.
Entre as capitais dos estados brasileiros, a da Bahia é a que tem maior proporção de mulheres (54,4%). Salvador também é o segundo município mais feminino do país, de acordo com dados do Censo 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Na gramática, Salvador até pode ser um adjetivo masculino, mas quando se amplia o olhar, e também se poetiza, a capital baiana poderia ser uma mulher. Por mais ousado que isso possa parecer.
Histórias como as de Lia, Nilza e Negra Jho contam Salvador e se misturam com outras tantas que todos os dias, há quase 475 anos, fazem a cidade funcionar.
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Pesquisadora do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher (Neim), da Universidade Federal da Bahia (Ufba), Francileide Araujo afirma que é impossível dissociar figuras femininas da história da cidade, mesmo sob diferentes perspectivas, sejam elas política, histórica ou cultural.
“Temos por exemplo, Joana Angélica, Irmã Dulce, que são duas mulheres que estão não somente na história de Salvador, mas também na história de toda a Bahia e do Brasil. Temos figuras reconhecidas por assegurarem a Independência do Brasil aqui na Bahia, mas também de personalidades que são atemporais como Alaíde do Feijão”, exemplificou Francileide, ao citar legados e a importância ancestral de figuras femininas baianas, ao tempo que problematiza a invisibilidade a que nomes femininos são expostos dentro da história.
Segundo a especialista, que também integra a ONU Mulheres, a invisibilidade das figuras femininas se dá principalmente pelo fato de que quem escreve essa história são os homens.
“É como se as mulheres não tivessem participado dos processos”, pontua Francileide.
Francileide Araújo faz parte do Programa de Pós Graduação em Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e Feminismos (PPGNEIM) na Universidade Federal da Bahia.
Arquivo pessoal
Direito à cidade
A pesquisadora do Neim problematiza ainda uma outra questão: o direito à cidade. Acontece que, na visão da especialista, mesmo sendo maioria em Salvador, as mulheres todos os dias precisam sobreviver em uma cidade que não é pensada para elas.
Francileide explica que quando se pensa em direito à cidade, um tema prioritário é a segurança e o valor constitucional de ir e vir. O assunto interessa e é importante para todos. Só que quando o gênero entra na equação, a perspectiva muda.
“Quando homens estão inseguros nas ruas, temem a perda de um objeto. Mas quando se trata de mulheres, a primeira preocupação é a de ser vítima de uma violência sexual”, pondera.
Negra Jho é o Pelourinho
Conheça Negra Jho, trancista que é referência no Pelourinho
Negra Jho nasceu Valdemira Telma de Jesus Sacramento. O nome artístico surgiu do bullying sofrido na infância. Os cabelos curtos faziam com que as crianças a chamassem de “João”, Jhon em inglês. Enquanto isso, uma prima a chamava de “negra”. Ela então decidiu se apresentar como “Negra Jho”.
Ela e os seis irmãos nasceram no Quilombo da Muribeca, localizado entre Madre de Deus e Candeias, na Região Metropolitana de Salvador.
A trancista sabe o ano que nasceu, mas não contabiliza a idade, segundo ela, o importante é como se sente. “Nem sei, me sinto tão jovem, menina e viril”, disse em tom de brincadeira ao revelar que nasceu em 14 de julho de 1960.
A ligação com o bairro do Centro Histórico de Salvador, com 2.253 habitantes, de acordo com o IBGE (dados de 2010), ela não sabe explicar.
“O Pelourinho é minha casa, meu palco, onde eu criei dois filhos, dois netos e uma bisneta. Foi no Pelourinho que eu ganhei o pão, levei pra casa, e para ele eu também dou o pão”.
Mulher preta, do Axé, filha de Ogum com Iansã, sabe de onde veio e onde quer chegar. “Minha história está plantada lá no Quilombo da Muribeca e no Pelourinho”, disse ao prever com propriedade de que um dia a história dela será contada em um filme.
“Sou um ícone. Vou morrer e continua viva”, disse Negra Jho sem falsa modéstia.
Ela entende e exalta o trabalho e a trajetória, sem perder a humildade. “Todo dia que você ensina e transforma, também aprende”, completou.
Professora Lia é Roma
Professora, moradora da Cidade Baixa e amiga de Santa Dulce: conheça Maria José Simões
“Teimosa, desobediente, corajosa, mas não sou doida”, é como se define Maria José Costa, a “Professora Lia” de Roma.
Aos 80 anos, se mantém ativa, e, segundo ela, cria peixe, sobe em casa da árvore e até caça jacaré. O espírito de aventureira deixa os filhos preocupados, segundo ela, mas não a desestimula.
A Escola Santa Rita, fundada por Professora Lia há 56 anos, segue em atividade no bairro de Roma, com turmas da creche ao Fundamental II. Ela garante que todo mundo por lá a conhece e tem alguém na família que foi seu aluno.
Já até mudou de casa, mas não de bairro. É tão conhecida no bairro, que até a ida ao mercado acaba sendo mais longa do que o planejado.
“Um dos maiores problemas que enfrento, nem no mercado posso ir, as mães me conhecem e ficam conversando comigo, contam dos filhos formados, lembram histórias da época que estudavam”, conta.
A professora, devota de Santa Dulce dos Pobres, não é conhecida só pelos moradores da Cidade Baixa. Foi dela a ideia, há mais de três décadas, de fazer a cada Copa do Mundo de futebol uma bandeira quilométrica para apoiar a Seleção Brasileira. A iniciativa faz parte do projeto pedagógico da escola Santa Rita.
Para Lia, educação vai além da matéria que se aplica na sala de aula, é também exemplo e tem como base o amor.
“Quando menos se ama, mais piora o menino”, contatou ao lembrar de uma frase que era repetida por irmã Dulce: “Ela dizia e eu concordo: ‘se veio pra mim é pra cuidar, não vou abandonar'”. Segundo professora Lia, por isso o lema da escola é até hoje “menino bem criado vira personalidade”.
Nilza é a Liberdade
Conheça Nilza Barbosa, professora que criou biblioteca comunitária no bairro da Liberdade
Nilza é uma entre 18 filhos. Nascida em Candeias, na Região Metropolitana de Salvador, chegou ao bairro da Liberdade, na capital baiana, há 52 anos trazendo na mala só um ferro de passar e a vontade de estudar. Dedicou a vida à educação e segue acreditando nela como propósito.
“Se eu nascesse 10 vezes, queria voltar professora. Nessa profissão fui amada, respeitada, eu sorri, a profissão me deu isso”, afirma, ao reforçar que é filha da pobreza e da desigualdade social.
A aposentada se orgulha em dizer que criou sete filhos e hoje “são todos doutores”. Os filhos da professora e do pescador Florisvaldo Barbosa, foram criados na Liberdade e todos fizeram faculdade, fato que enche a mãe de orgulho.
A relação com o bairro que escolheu para viver é afetiva. Nilza fala que por lá fez bons vizinhos e bons amigos.
Ela compra briga para não sair da Liberdade. “Eu moro aqui porque quero, meus filhos já quiseram me dar casa em outros lugares, querem me tirar de qualquer jeito, mas eu não quero sair, não”, foi enfática.
As mulheres de Salvador em dados
De acordo com o Censo de 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Salvador é a capital mais feminina e o 2º município mais feminino do país. As mulheres são 54,4% da população.
Conheça o perfil da mulher que vive na capital baiana através de outros dados do Instituto:
Salvador é a capital mais feminina e o 2º município mais feminino do país. As mulheres são 54,4% da população.
Entre elas, as que têm entre 40 e 44 anos são as mais representativas.
As pardas predominam, são quase metade das mulheres. Somando com as pretas, chega-se a 8 em cada 10 mulheres soteropolitanas.
Entre as mulheres, predominam as que são responsáveis pelos domicílios onde moram (4 em cada 10 mulheres em Salvador estão nessa condição no domicílio. Em Salvador, 6 em cada 10 domicílios têm uma mulher como responsável).
A maioria, em 2010, eram católicas (2010).
6 em cada 10 mulheres de 10 anos ou mais de idade eram solteiras (2010).
55,1% das mulheres em Salvador tinham filhos em 2010. A taxa média de fecundidade era 2,0 filhos por mulher em idade fértil (15 a 49 anos).
Quase metade das 32.941 mulheres soteropolitanas que tiveram filhos em 2021 tinham entre 25 e 34 anos
Em SSA, mas mulheres que trabalham ganham em média R$ 2.465, -27,6% que os homens.
A maior parte das mulheres de Salvador têm o Ensino Médio concluído (4 em cada 10). Quase 3 em cada 10 têm Ensino Superior. Em média têm 11,3 anos de estudo.
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