Larva do mosquito Aedes aegypti, vetor da dengue e da chikungunya
Rogério Capela/Divulgação
Fenômeno de notícias falsas observado durante pandemia de Covid-19 volta a se repetir com atual surto de dengue. Alvos são quase os mesmos e especialista alerta para risco de usar medicamento sem indicação médica. A dengue domina as atenções neste verão na América Latina, e, junto da doença, veio também uma forte onda de desinformação. Enquanto questões climáticas e de infectologia são apontadas como responsáveis pela explosão de casos, teorias conspiratórias se propagam nas redes sociais da região com informações falsas sobre a doença.
Um dos principais alvos de desinformação são os projetos de mosquitos modificados. Vários conteúdos culpam Bill Gates e a Fundação Bill e Melinda Gates pela soltura de espécimes que seriam supostamente responsáveis pelo aumento dos casos de dengue. O Brasil também é citado nessas notícias falsas.
No entanto, o principal projeto do gênero no país não tem ligação com a Fundação Bill e Melinda Gates. No Brasil, a empresa britânica Oxitec, que atua desde 2011 no país, atualmente aplica seu projeto conhecido como Aedes do Bem, em dez munícipios. A companhia tem sua principal fábrica no Brasil, e exporta a tecnologia para os Estados Unidos e o Panamá.
O Aedes aegypti, mosquito transmissor da dengue, tem uma grande capacidade de adaptação.
CDC
A Oxitec produz mosquitos machos modificados que cruzam com fêmeas selvagens. Por conta da alteração em um gene, as fêmeas que resultam da reprodução não conseguem atingir a fase adulta. Como apenas as fêmeas da espécie picam, o método tende a reduzir os casos de dengue.
A diretora-executiva da Oxitec no Brasil, Natália Ferreira, afirma que a medida é eficaz no controle da população dos mosquitos. Segundo ela, mais de 100 prefeituras estão em contato com a companhia neste momento para adquirir os Aedes do Bem. “A demanda aumentou” na atual crise, aponta. Sobre os resultados, a diretora afirma que a técnica reduz os espécimes em mais 90% nas regiões em que há soltura quando comparado com as que não aplicam o método.
Já o World Mosquito Program, apoiado pelo Instituto Gates, aplica na América Latina um método em que mosquitos são infectados com a bactéria Wolbachia, que reduz a capacidade do Aedes aegypti transmitir doenças.
Até 2023, em Medellín, a região em que houve maior liberação de mosquitos com este método, a técnica era celebrada como responsável pela queda de até 47% dos casos de dengue nos bairros em que houve a soltura. No Brasil, também houve aplicação do método com a Wolbachia, e os registros apontaram até 38% de queda nos casos de dengue.
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El Niño e a tempestade perfeita
No entanto, em 2024, o quadro se alterou brutalmente. Medellín, conhecida como “Cidade da Eterna Primavera” por seu clima ameno ao longo de todo o ano, enfrentou aumento de temperaturas, o que impulsionou a reprodução dos mosquitos. Junto, veio uma disparada nos casos de dengue. No departamento da Antioquia, cuja capital é Medellín, os casos subiram 292% neste ano.
“Desde o ano passado, temos o fenômeno do El Niño, que trouxe um inverno curto e mais quente. Com isso, as populações de Aedes não caíram, como é o ciclo natural”, afirma Willy Lescano, da Unidade de Investigação sobre Doenças Emergentes e Alterações Climáticas Universidade Peruana Cayetano Heredia. Ao longo do verão, o fenômeno seguiu trazendo temperaturas mais altas para grande parte da região. “Sabíamos que seria um período complicado, mas não nos preparamos para as consequências”, afirma Lescano.
O atual surto de dengue também trouxe um elemento extra que impulsionou o aumento de casos. Neste ano, há maior circulação do sorotipo DENV-3 da doença, que não vinha sendo transmitido com recorrência. “Quando ingressa um novo sorotipo, há maior probabilidade de se criar ondas da doença, inclusive em pessoas que tiveram outros tipos de dengue”, afirma o pesquisador.
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“Estamos em uma epidemia histórica neste momento, e é difícil parar isto. As ferramentas que temos no momento são pouco efetivas”, resume Lescano. No Peru, um estado de emergência foi decretado em virtude do quadro, a visita de agentes de saúde a moradias foi reforçada. Para o pesquisador, neste momento avançado da crise, em que os ciclos de reprodução do mosquito já estão avançados, tais ações não devem surtir grande efeito.
Lescano aponta que há ferramentas eficazes que poderão ser utilizadas para controlar a dengue nos próximos anos, quando os riscos devem ser ainda maiores com o avanço das mudanças climáticas, com destaque para a vacina produzida pelo Instituto Butantã. Por sua vez, ele teme que a desinformação também possa afetar estes instrumentos.
“Lamentavelmente, vivemos uma era de redução de confiança nas vacinas. Houve muitas publicações errôneas e conspiratórias, e isso piorou na pandemia. Será uma das poucas ferramentas que teremos para conter a dengue. Há que trabalhar para recuperar a confiança”, avalia. Teorias conspiratórias sobre as vacinas contra a dengue, incluindo supostos interesses escusos de Bill Gates, circulam com frequências nas redes.
No caso do uso de mosquitos infectados com a bactéria Wolbachia, o pesquisador afirma que as evidências da eficácia são “muito valiosas”, avaliando que a nova alta de casos não deveria servir para descartar ou tirar a credibilidade deste tipo de iniciativa.
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Polêmica com “super-mosquito” híbrido
No caso da Oxitec, a empresa passou por uma situação delicada em 2019, após a publicação de um artigo na revista Scientific Reports. O título sugeria que o projeto era responsável pelo surgimento de “super-mosquitos” híbridos, que seriam mais resistentes. Depois de disponível ao público, vários autores do estudo disseram que a conclusão divulgada estava deturpada e pediram para ter o nome retirado do texto. Hoje, em sua versão online, a publicação conta com uma nota que manifesta “preocupação editorial”, e cita os questionamentos às conclusões divulgadas.
“Tivemos de responder muitas perguntas na época. Mas o título não condizia com o estudo, não existe super-mosquito”, afirma Ferreira. Em 2020, a empresa passou a trabalhar com o que chama de Aedes de 2ª Geração, uma nova versão que usa métodos distintos de quando chegou ao Brasil, logo depois de obter a aprovação da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CNTBio).
Ferreira reconhece que a opinião pública é fundamental para o sucesso do projeto, e afirma que uma das primeiras medidas que a empresa adota ao chegar a uma região é promover eventos públicos para explicar a medida. Segundo ela, após entender a ideia, é comum que pessoas se voluntariem para colocar as caixas de mosquito em suas casas para a soltura.
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Falsas curas
Além de desinformação sobre a transmissão da doença e os mosquitos modificados, as redes sociais foram inundadas com falsas curas para a dengue, que seguem padrões observados na pandemia de covid-19.
A ivermectina, a mesma medicação que era propagada na crise anterior, voltou aos holofotes e foi alvo de manifestações de autoridades de saúde da região afirmando que o remédio não tem eficácia contra a dengue. Já um vídeo no TikTok alcançou centenas de milhares de visualizações afirmando que as folhas de mamão poderiam curar a doença.
“As pessoas ficam desesperadas por soluções mágicas, especialmente no caso de uma doença em que não há remédios efetivos no tratamento”, afirma Lescano. Por sua vez, ele avalia que a automedicação traz um “risco muito alto”. No caso da dengue, uma série de medicamentos não é indicada para uso, já que podem agravar o quadro clínico do doente.
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