16 de janeiro de 2025

‘Caldeirão do Inferno’: como a prisão da Ilha Grande deu origem a facção do tráfico, retratada na série ‘O jogo que mudou a história’

Criado no Brasil imperial para isolar doentes, local recebeu presos da ditadura até a chegada de assaltantes, homicidas e outros criminosos, quando virou a ‘incubadora’ do Comando Vermelho. Presídio de Ilha Grande
Reprodução/TV Globo
Desde o império até os generais da ditadura militar, as autoridades do Brasil sempre entenderam que a Ilha Grande, a mais de 100 quilômetros da capital do Rio de Janeiro, era o local ideal para isolar pessoas: primeiro, doentes de cólera e febre tifoide, vindos da Europa e África. Depois, presos políticos, assaltantes de banco, estupradores e assassinos.
Apesar de situado em local paradisíaco, à beira do mar, a violência que imperava no complexo penitenciário Candido Mendes lhe rendeu o apelido de “Caldeirão do Inferno” ou “Caldeirão do Diabo”. Segundo relato de presos, era “o lugar onde o filho chora e a mãe não ouve”.
Foi lá que, há quase 50 anos, nasceu o que é hoje uma das maiores facções criminosas do país e que tanto tem levado violência para as ruas do Rio: o Comando Vermelho.
Essa “reunião” de presos políticos e bandidos comuns que virou uma espécie de incubadora do crime é exibida na série “O jogo que mudou a história”, que estreia nesta quinta-feira (13), no Globoplay.
Inspirada na realidade, faz uma viagem no tempo para contar como surgiram as facções e o crime organizado no Rio de Janeiro, nas décadas de 1970 e 1980.
A história do presídio
Presídio de Ilha Grande
Juan Silva/Arte g1
A história da Ilha Grande e de seu presídio começa bem antes disso. O local já foi tema de livros, monografias e reportagens.
Em 1884, com o país sob o comando do imperador Pedro II, foi estabelecido na ilha o Lazareto, uma espécie de triagem onde todos os navios com bandeira estrangeira, que seguiam para o Rio, deveriam parar e fazer descer os portadores de doenças contagiosas.
Um dos parâmetros para a divisão dos doentes era a classe social: os mais pobres ficavam junto à baía. Os mais abastados eram abrigados em outros prédios. Em um período da história, o sanitarista Oswaldo Cruz chegou a defender a distribuição dos doentes por classe social. Assim, foi até 1942.
Dez anos depois da inauguração do abrigo para doentes, já na República, em 1894, foi criada a Colônia Correcional de Dois Rios. Funcionou por três anos, até 1897, foi fechada e depois reaberta em 1902, sendo extinta novamente em 1955.
Neste período de 43 anos passaram pelo local presos da Aliança Nacional Libertadora (ANL) e o escritor Graciliano Ramos. Lá, o velho Graça iniciou os manuscritos de seu clássico “Memórias do Cárcere”.
Presos políticos
Em 1963, o então governador da Guanabara, Carlos Lacerda, cria a Penitenciária Cândido Mendes que depois passou a se chamar de Instituto Penal Cândido Mendes. Com a ditadura, em 1964, presos políticos e guerrilheiros começam a ser enviados para o local.
A ideia era isolá-los e dificultar até as visitas. Afinal, na época, para fugir da ilha só de barco ou a nado.
Os presos políticos eram levados para lá no porão de navios. Normalmente, junto a batatas. O jornalista Fernando Gabeira ficou preso na Ilha Grande. Em um especial para a Globonews, em 2017, Gabeira retornou ao local e lembrou da ida para a prisão.
“A última imagem que tive do Brasil antes de deixá-lo para o exílio foi da Ilha Grande”, contou Gabeira na ocasião (veja no vídeo abaixo).
Gabeira volta a presídio onde ficou preso na ditadura militar
Chegada de criminosos
Em 1969, o cenário da carceragem começou a mudar.
Decreto-lei, número 898, de 29 de setembro de 1969 modifica alguns artigos da Lei de Segurança Nacional (LSN). A partir de então, qualquer pessoa que pratique crimes como assalto, sequestro ou roubo será punida, independente que seu crime tenha ou não intenções políticas.
Isso levou para a Ilha Grande, homicidas, estupradores, assaltantes que nada tinham a ver com a luta contra o regime militar.
No período da ditadura militar de maior tortura nos quartéis, os anos de 1970, os presos políticos começaram a fazer a viagem de barco junto com esses presos comuns.
A galeria do Fundão
Em sua monografia, na Universidade do Estado do Rio (Uerj), em 2004, Manuela Castilho Coimbra da Costa conta que muitos presos preferiam o presídio da Ilha Grande por ficarem longe dos olhos dos militares. A guarda do presídio era civil. Isso já modificava o clima na unidade.
Quando chegaram à unidade, os presos políticos, muitos marinheiros, foram isolados numa galeria. A integração acontecia em aulas de artesanato ou na prática de esportes. No futebol, os detentos organizaram um time: o 25 de Março, numa referência à data do levante de marinheiros contra a ditadura militar.
Além disso, os presos políticos promoveram mudanças como a implantação da farmácia e da biblioteca. Outra conquista foi o fundo coletivo, uma espécie de despensa em que os detentos guardavam todas as comidas que os presos recebiam de suas visitas. Após guardados, os alimentos eram divididos de forma igualitária entre todos que cumpriam pena no local.
‘Muro da Vergonha’
Ao mesmo tempo que essas ideias se espalhavam pela unidade, aumentavam a separação entre os dois grupos de presos. Na ala dos detentos com base na LSN, aquela dos assaltantes e assassinos, havia 60 celas e era conhecida como “Fundão”.
Alegando incompatibilidade de ideologias, os presos políticos pedem que a galeria fosse dividida.
Colocam-se chapas de aço e monta-se o que ficou conhecido como “Muro da Vergonha”.
Em seu livro “Quatrocentos contra um”, o criminoso William da Silva Lima, o Professor, recorda-se deste momento:
“A maioria dos presos oriundos das organizações armadas dos anos 70 também tinha regressado à Ilha Grande. Alegando incompatibilidade de hábitos e de ideologias, eles pediram que a galeria fosse dividida, o que foi feito, cabendo a nós a parte conhecida como Fundão. Eram 20 cubículos individuais, ocupados, porém por quatro a cinco pessoas, em regime de tranca dura, com direito de circulação pela galeria apenas nos instantes que antecediam o café-da-manhã e o almoço”.
Essa divisão levou a uma mobilização conjunta e conscientização da massa carcerária. Com a Anistia durante o governo de Ernesto Geisel, os presos do Fundão iniciaram o período em que queriam liderar a cadeia.
Tem, então, início uma série de embates dos presos com autoridades em que relatam greves de fome, abaixo-assinados, denúncias de espancamento e maus-tratos.
Falange Vermelha
Professor chegou à Ilha Grande em 1971. Tinha 28 anos. Segundo ele, foi punição determinada pelo então secretário estadual de Justiça, Cotrim Neto, responsável pelas cadeias no Rio, por organizar um jornal com outros detentos: o Nossa Voz.
Foram dois exemplares. O suficiente para que fosse enviado para a Ilha Grande, onde se encontrou com 50 marinheiros que protagonizaram o levante em março de 1964.
Essa organização dos detentos levou ao que foi chamado de Falange da LSN (referência à lei de segurança nacional, pelos quais os presos eram condenados). Pouco depois, foi rebatizada de Falange Vermelha e, em seguida, Comando Vermelho.
O nome aparece pela primeira vez em um relatório do capitão da Polícia Militar Nelson Bastos Salmon, então diretor do presídio, ao Departamento do Sistema Penitenciário (Desipe), em 1979:
“Após os assassinatos de setembro de 1979, quando foi quase totalmente exterminada a Falange do Jacaré, a Falange da LSN ou Comando Vermelho passou a imperar no presídio da Ilha Grande e a comandar o crime organizado intramuros em todo o sistema penitenciário do Rio. Com isso, as outras falanges ficaram oprimidas, passando a acatar as ordens da LSN, sob pena de morte”.
Fuga de Zé Bigode e o início da quadrilha fora da ilha
No ano seguinte, em 1980, três presos fogem da ilha de barco. Entre eles, José Jorge Saldanha, o Zé Bigode. Ele consegue chegar ao continente e se esconder na Ilha do Governador. Lá, protagoniza uma troca de tiros contra 400 policiais por mais de 12 horas de confronto.
A história acompanhada pela TV deu origem ao filme “400 contra 1”, de 2010, e retrata o início da facção fora da ilha.
“Aqui se começa a propagar, a partir da própria polícia, que ‘a organização Falange Vermelha nasceu da convivência entre assaltantes e presos políticos, que lhes ensinaram como comandar e funcionar de maneira mais organizada'”, relata Professor em seu livro.
Professor morreu aos 76 anos de ataque cardíaco, em 2019. Tinha condenações que somavam 95 anos e seis meses de prisão por crimes como assaltos a banco, extorsão e sequestro.
Escadinha
José Carlos dos Reis Encina, o Escadinha
Acervo/TV Globo
Simpatizantes da quadrilha dentro e fora dos presídios passam a integrar o grupo, apesar de publicamente não reconhecerem que há uma organização em torno dos detentos. Um dos deles é José Carlos dos Reis Encina, o Escadinha, um dos mais famosos traficantes da história do Rio.
O criminoso fugir de helicóptero da ilha, em 31 de dezembro de 1985. Na época, a Ilha Grande era considerada uma unidade de segurança máxima. Escadinha morreu em 2004, atingido por tiros de fuzil na Avenida Brasil.
Desativado e implodido
O presídio da Ilha Grande foi desativado, em 1994, há 30 anos. E logo depois, implodido. Foram utilizados 200 quilos de explosivos para levar a estrutura abaixo. Atualmente, apenas cubículos e parte da fachada estão de pé.

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