Multidão se reúne todos os anos, no Largo de São Pedro, para fazer preces ao santo e acompanhar a apresentação de mais de 30 de grupos de bumba-meu-boi. Confira a história da tradição. As toadas expressam louvores aos quatro santos que são importantes para tradição junina do Maranhão: São João, São Marçal, Santo Antônio e São Pedro
Ruy Barros
Na virada do dia 28 para o dia 29 de junho, o Largo de São Pedro, no bairro da Madre Deus, em São Luís, se transforma em um espaço onde o sagrado e o profano se encontram. De missas e peregrinações a encontro de grupos de bumba-boi, a tradição do festejo de São Pedro atrai milhares de devotos, brincantes, admiradores e turistas, todos os anos, na capital maranhense.
Com início no dia 1º de junho, o festejo de São Pedro é um dos eventos mais importantes do calendário junino maranhense, contando com mais de 80 anos de existência.
Tradição
Durante a tradição, uma multidão, devotos ou não, passam pelo bairro para acompanhar a apresentação de mais de 30 de grupos de bumba-meu-boi
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Durante a tradição, uma multidão, devotos ou não, passam pelo bairro da Madre Deus, para fazer preces e acompanhar a apresentação de mais de 30 de grupos de bumba-meu-boi, vindos de várias regiões do estado, que se apresentam durante a noite inteira para homenagear e cumprir promessas a São Pedro.
Como há poucas pesquisas sobre a origem da tradição, a maioria das informações que se tem hoje foi transmitida de geração em geração. Relatos indicam que a festividade começou em 1939, no bairro do Desterro, e depois passou a acontecer no bairro da Madre Deus, às margens da antiga praia da Madre Deus, no ano de 1940.
Boi de Pindaré se preparando para pedir benção a São Pedro/ Vídeo: Pablo Monteiro
A tradição surge da devoção dos pescadores a São Pedro, que é conhecido como padroeiro dos pescadores. Durante o festejo, moradores da comunidade rezavam ladainhas e orações ao santo nas margens da antiga praia, antes de sair para a pesca. Segundo o historiador Fláviomiro Mendonça, a Capela de São Pedro, como é conhecida hoje, mudou diversas vezes ao longo dos anos.
“Existia nessa região uma colônia de pescadores e a capela era lá embaixo. Ela foi criada em 1940, bem rústica. Depois, em 1949, foi construída uma de alvenaria, com a ajuda do empresário César Aboud”, disse o professor.
Um dos momentos mais importantes da tradição acontece no fim da noite do dia 28 até o amanhecer do dia 29, é o cortejo dos grupos de bumba-boi. Esses grupos, alguns conhecidos como batalhões, incluem cantadores, músicos, brincantes e outros participantes, que se vestem com indumentárias coloridas, e representam personagens folclóricos, como o Cazumbá.
Com início no dia 1º de junho, o festejo de São Pedro é um dos eventos mais importantes do calendário junino maranhense, contando com mais de 80 anos de existência
Ruy Barros
As apresentações dos grupos começam do lado de fora da capela, no Largo do Santo Antônio, e seguem por todo bairro da Madre Deus.
Segundo o jornalista e poeta, Herbert de Jesus Santos, filho e sobrinho de alguns pescadores da época, no início da tradição, apenas os bois de zabumba faziam parte da festa. Depois, os bois de matraca também começaram a participar e atualmente o festejo inclui grupos todos os cinco sotaques: zabumba, matraca, orquestra, costa-de-mão e baixada.
Cada grupo de bumba-boi se aprenta de um jeito, levando em conta a diversidade de ritmos
Ruy Barros
Cada grupo se apresenta de um jeito, levando em conta a diversidade de ritmos, toadas, coreografias, instrumentos, indumentárias e personagens animalescos, de acordo com cada região do estado.
Alguns bois se apresentam seguindo um cortejo, que segue pelas ruas com as danças, coreografadas ou não, ecoando nos becos e vielas da Grande Ilha, as conhecidas toadas – músicas que narram histórias e lendas do folclore maranhense.
Com início no dia 1º de junho, o festejo de São Pedro é um dos eventos mais importantes do calendário junino maranhense, contando com mais de 80 anos de existência
Ruy Barros
Após as apresentações, os grupos sobem as escadarias da capela em um ritual chamado “alvorada dos bois”, onde entram na capela cantando suas toadas enquanto dançam para prestar homenagens, agradecer a uma prece e pedir bênçãos a São Pedro, como uma forma de oração, conforme aponta a antropóloga e professora do departamento de Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), Marilande Abreu.
“Existe um ditado popular reproduzido por pesquisadores que afirma que o bumba-boi é uma forma de oração. Essa frase evidencia os aspectos religiosos e sagrados inerentes ao ciclo da festa de bumba-boi […] A maioria dos brincantes e organizadores, como apontava Ferretti, geralmente participam do boi como forma de pagamento de promessa por uma graça alcançada”, destaca Marilande.
Neste momento, muitos brincantes e devotos, como forma de cumprir promessas feitas ao santo, sobem os degraus da escadaria da igreja de joelhos, aos sons de vários instrumentos, como as matracas – que são dois pedaços de madeira retangulares, de tamanho variável, que ao serem batidas umas às outras, ecoam um som agudo e forte.
Muitos brincantes e devotos, como forma de cumprir promessas feitas ao santo, acendem velas e sobem os degraus da escadaria da igreja de joelhos, aos sons dos pandeirões e matracas
Paulo Soares/Grupo Mirante
Segundo o artigo “Encantados e Encantarias no Folclore Brasileiro”, da doutora em antropologia e membro da Comissão Maranhense de Folclore, Mundicarmo Ferretti, a relação entre o bumba boi e a religião é bem conhecida, embora a tradição também seja considerada profana, já que as toadas narram a história da comunidade ao mesmo tempo que expressam louvores aos quatro santos que são importantes para tradição junina do Maranhão: São João, São Marçal, Santo Antônio e São Pedro.
Dessa maneira, o boi passa a ser visto com uma “ um portador das oferendas da comunidade a Deus”.
A Casa das Minas e a relação com a tradição
Durante a tradição, uma multidão, devotos ou não, passam pelo bairro para acompanhar a apresentação de mais de 30 de grupos de bumba-meu-boi
Pablo Monteiro
Paralelo a celebração que acontece na Capela de São Pedro, outro ponto de encontro concentra milhares de pessoas na Rua São Pantaleão, também na Madre Deus: a Casa das Minas.
Conhecido por ser um dos terreiros mais antigos do Brasil, com pelo menos 300 anos de fundação, a Casa das Minas foi fundado por uma rainha africana chamada Nã Agontimé, cuja saga foi tema do filme ‘A Mulher Rei’, protagonizado por Viola Davis.
Embora não tenha uma relação direta com o Bumba-meu-boi, é comum que os grupos façam visitas ao terreiro para pedir proteção às divindades. Durante a tradição, os grupos se apresentam na porta da casa, enquanto o miolo do boi entra para ser benzido pelos voduns da casa. Assista o vídeo abaixo.
Miolo do Boi de Pindaré subindo a escadaria da Capela de São Pedro / Vídeo: Pablo Monteiro
Segundo a professora Marilande Abreu, de acordo os registros do terreiro, a primeira presença do bumba-boi lá se deu quando um dos bois foi levado do terreiro da Turquia para a Casa das Minas, por Dona Nenê. Após isso, o ritual seguiu acontecendo quando uma das filhas da casa, casada com um integrante do Boi de Pindaré, do sotaque da Baixada, começou a levar o boi para ser benzido e abençoado pelos voduns da Casa das Minas durante a tradição de São Pedro.
“Esses dois acontecimentos tornaram-se um só nos últimos anos. O amanhecer na capela, na Casa das Minas, ou transitando entre os dois, destaca esses aspectos de sagrado e profano do bumba-meu-boi”, diz a professora.
Paralelo a isto, existem terreiros que a brincadeira de boi foi incorporada ao Tambor de Mina, para atender pedidos de entidades espirituais, dos encantados – que são seres espirituais cultuados nos terreiros de Mina, tanto nos fundados por africanos quanto nos mais recentes.
“Geralmente pode ser o pagamento de uma promessa para a entidade, bem como pode ser um presente, ou ainda uma solicitação da própria entidade”, diz Marilande.
Os chamados bois de terreiro, que geralmente são pequenos e, às vezes, de vara, envolvem pessoas do próprio terreiro, mas, geralmente, não se apresentam para a comunidade. Nesses terreiros, o boi costuma ser brincado por pessoas, em transe com sua entidade, junto com outras pessoas e participantes de um ou mais grupos de bumba-boi.
“Assim, boi de encantado é ligado a uma entidade, por promessa, presente ou solicitação da mesma, enquanto boi de promessa não está ligado a religiões afro-ameríndias, mas resultando do pagamento de uma promessa, cuja graça foi alcançada”.
Mudanças estruturais
Com a construção da barragem do Rio Bacanga, a capela teve que ser demolida para ser construída em um lugar mais apropriado
Reprodução
Construída pela primeira vez em 1940, por pescadores, a primeira capela era simples e rústica, conhecida como tosca, pois foi feita a técnica do “pau-a-pique”, já que esta não precisava de altos recursos para a construção.
Inicialmente, eram realizadas apenas novenas, pois ainda não possuía a permissão da Igreja para a realização de missas oficiais. Mesmo assim, a comunidade local frequentava o espaço durante as festividades juninas, com os primeiros bois chegando em 1948.
Com o crescimento da tradição, o governo municipal da época, com o apoio do político e empresário César Aboud, decidiu financiar uma reforma total em 1949. Após a reinauguração, um padre passou a participar das celebrações, com aprovação da Igreja Católica.
Construção da barragem do Rio Bacanga em 1968
Mavam/Montagem g1
Entretanto, nos anos 60, a região do bairro da Madre Deus, onde ficava a Praia da Madre Deus, passou por grandes mudanças devido à construção da barragem do Rio Bacanga e outras obras, como o aterramento de parte do rio e a construção do Anel Viário, causando a migração dos moradores para outras áreas, como o bairro do Anjo da Guarda.
Com essas mudanças, a capela teve que ser demolida para ser construída em um lugar mais apropriado. A nova obra foi realizada no ano de 1976.
Grupos de bois se apresentando na Capela de São Pedro no ano de 1980
Murilo Santos
Segundo o historiador Flaviomiro Mendonça, muitos grupos de bumba-boi que vinham dos interiores do Maranhão, chegavam por via marítima, através das nascentes do rio Bacanga. Por isso, ao se deslocarem de barco de suas comunidades, seja pelo rio Bacanga ou pelo rio Anil, os brincantes agradeciam a São Pedro pela boa viagem e navegação.
“Com a construção da barragem do Bacanga, aquela pequena vila de pescadores some para dar espaço à barragem e eles constroem uma outra capela. A capela original é destruída e aquele terreno, onde eram as casas, vira um largo, o Largo de São Pedro”, disse o historiador Fláviomiro.
Na década de 90, surgiu a necessidade de uma nova reconstrução para modernizar e ampliar o espaço, para acomodar os bois e os brincantes que visitavam a capela durante o período junino. Porém, houve forte resistência entre os moradores, pois a comunidade não aceitava o novo projeto arquitetônico, que remetia a uma embarcação, e defendiam o retorno ao modelo da capela de 1949.
O jornalista Herbert de Jesus Santos em reunião com parentes e amigos mais velhos, na capela do santo, em 27 de junho de 2007, para padronizar a origem da Festa de São Pedro, na Madre de Deus
Arquivo pessoal
Porém, em 1997, a vontade popular não foi considerada, e a obra de reconstrução foi autorizada seguindo o novo modelo. A arquitetura da capela, inspirada nas embarcações ribeirinhas, teve seu largo expandido e foi reinaugurada em 13 de dezembro de 2001, com a construção no alto do bairro da Madre Deus. Por isso, a primeira subida dos bois pelas escadarias se deu em junho de 2002.
Procissão marítima e terrestre
A procissão marítima, que sai do Cais da Praia Grande, carrega a imagem de São Pedro pelas águas
Marinha do Brasil
Após as apresentações dos grupos de bumba-meu-boi, a tradição segue para uma procissão marítima, que leva a imagem de São Pedro pelas águas.
Antes da construção da barragem, a procissão começava no antigo cais da praia da Madre Deus. Depois, passou a ter como ponto de partida a praia do Jenipapeiro, e hoje os devotos partem do Cais da Praia Grande, no Centro Histórico de São Luís.
Segundo historiadores, a realização de procissões marítimas na Grande Ilha começou com a fundação da capela nos anos 40. A simbologia por trás dessa tradição está na ligação do santo com o mar, pois ele é conhecido como o padroeiro dos pescadores.
Logo pela manhã, por volta das 10h, os devotos se dirigem ao cais e a imagem de São Pedro é colocada em uma das embarcações, que faz um percurso que passa pela ponte São Francisco, Ponta D’Areia e a área Itaqui Bacanga, totalizando cerca de cinco horas de duração.
Durante todo o trajeto, os fiéis acompanham a procissão em seus barcos, cantando músicas maranhenses e fazendo orações ao santo
Marinha do Brasil
Durante todo o trajeto, os fiéis acompanham a procissão em seus barcos, cantando músicas maranhenses e fazendo orações ao santo.
Por volta das 16h do mesmo dia, também é realizada uma procissão terrestre pelas ruas do centro da cidade, terminando com a volta ao Largo de São Pedro, onde a imagem é devolvida. Posteriormente, as celebrações se encerram com a realização de uma missa campal.
Após o término, os brincantes, devotos e frequentadores frequentemente seguem diretamente para o festejo de São Marçal, onde ficam até o amanhecer do dia 30, no bairro do João Paulo, em São Luís.
Tradição da Capela de São Pedro reúne milhares de pessoas em São Luís
*Supervisionado por Rafael Cardoso