29 de dezembro de 2024

Biólogos alertam contra uso de peixes nativos e exóticos para contenção da dengue

Sem comprovação científica, medida também coloca espécies nativas em risco ao desequilibrar ecossistemas. Soltura em locais fechados não impede possíveis escapes. Piaba-do-rabo-amarelo (Astyanax bimaculatus), conhecida também como lambari-de-duas-pintas
paulbentzen / iNaturalist
A piaba-de-rabo-amarelo é um peixe nativo, sendo comum em córregos, riachos, rios, lagoas e reservatórios. Pode chegar a 13 cm de comprimento, e se alimenta de frutos, vegetais, invertebrados aquáticos, ovos, detritos e larvas de outros peixes e de insetos.
Espécies como a piaba-de-rabo-amarelo (Astyanax bimaculatus) e o barrigudinho (Poecilia Reticulata) despertaram o interesse de prefeituras e outros órgãos, pois são espécies que, dentre outras opções, se alimentam de larvas do mosquito da dengue (Aedes aegypti).
Barrigudinho (Poecilia reticulata), peixe conhecido também como guppy
Tom Jamonneau / iNaturalist
Embora possa parecer uma opção viável para a contenção dos transmissor, ictiólogos (biólogos especialistas em peixes) alertam sobre a ineficácia do uso de peixes no controle de larvas do mosquito, visando conter a doença.
“O mosquito da dengue produz ovos que são resistentes a dessecação, podendo persistir por muito tempo no ambiente, mesmo na ausência de água. As larvas também são capazes de proliferar em recipientes muito pequenos, como baldes, vasos de plantas, pneus e outros utensílios domésticos, que dificilmente seriam compatíveis com populações de peixes”, explica Ana Clara Sampaio Franco, pós-doutora do Instituto de Ecologia Aquática da Universidade de Girona (Espanha).
“Além disso, estudos apontam que mosquitos adultos são capazes de detectar a presença dos barrigudinhos em sistemas aquáticos e evitá-los para oviposição”, acrescenta. Fora a falta de comprovação, a estratégia de utilizar peixes para controle biológico do Aedes aegypti apresenta riscos relacionados à invasão de espécies exóticas.
O perigo das introduções
A invasão de ambientes por espécies exóticas é a segunda causa mundial de perda de diversidade e a primeira causa mundial de extinção de biodiversidade em ilhas e áreas protegidas, segundo o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama).
Algumas possuem potencial de invasão e, uma vez estabelecidas, dificilmente são erradicadas. No geral, elas não têm predadores naturais nos ambientes em que são introduzidas e competem com as nativas por alimento, espaço e outros recursos, podendo causar a diminuição de populações e até extinções locais.
Aguapés tomam conta do Rio Tietê e dificultam navegação em Anhembi
Adriano Baracho/TV TEM
No caso do barrigudinho, o peixe é natural dos países Antígua e Barbuda, Barbados, Trindade e Tobago e Venezuela – ou seja, não é nativo. Segundo o portal Horto Botânico, do Museu Nacional (UFRJ), a espécie foi introduzida amplamente em várias regiões do mundo como tentativa de controle de mosquitos, tendo pouco sucesso no combate.
Para Ana Clara Franco, introduzir espécies é sempre uma questão delicada, que demanda planejamento e um conhecimento muito sólido da espécie em questão e do ecossistema.
“Não temos esse nível de conhecimento hoje, no Brasil, em relação ao uso de peixes para controle biológico de larvas do mosquito Aedes aegypti, nem usando espécies nativas, tampouco usando espécies não-nativas”, afirma a pesquisadora.
De acordo com ela, estudos mostraram que a Poecilia reticulata não é um bom controlador de larvas de mosquito por ter um hábito alimentar generalista, ou seja, se alimenta de mais uma fonte alimentar.
Isso significa que, apesar de ser introduzido com o intuito de se alimentar apenas das larvas de mosquito, eles podem acabar se alimentando de outros organismos e, com isso, causar impactos não previstos no ecossistema.
LEIA TAMBÉM
Tilápia se adaptou ao mar e está se espalhando pela costa brasileira, diz estudo
Relatório internacional aponta espécies invasoras que causam mais prejuízos à natureza e ao homem; conheça algumas
“Além disso, usar poecilídeos não-nativos é arriscado porque, por conta de suas táticas reprodutivas, como reprodução interna e armazenamento de gametas, a introdução de poucos indivíduos pode rapidamente se tornar uma população estabelecida e se espalhar para outros sistemas”, explica.
Uso de peixes nativos
Neste caso, poderiam ser usados peixes nativos? A resposta é não também. “Ainda que utilizar espécies não-nativas seja um cenário muito mais problemático, espalhar indivíduos de espécies nativas sem critério e com base em informações pouco precisas, também gera consequências”.
Piaba-do-rabo-amarelo (Astyanax bimaculatus), conhecida também como lambari-de-duas-pintas
Divulgação/Codevasf
Além da impossibilidade de prever como se dará a alimentação dos peixes de grupos como o dos lambaris ou piabas – alguns grande têm plasticidade de alimentar -, a depender dos métodos usados, muitas pesquisas podem trazer dados pouco semelhantes à realidade.
“Muitos fatores contribuem para a escolha do alimento pelo peixe, como tipo de sistema, densidade e diversidade de presas, idade dos indivíduos, entre outros”, diz Ana. Para completar, mesmo feita em locais sem contato com rios e córregos (como caixas d’água), a estratégia não é capaz de evitar completamente a ocorrência de escapes.
De acordo com Carla Simone Pavanelli, bióloga do Núcleo de Pesquisas em Limnologia, Ictiologia e Aquicultura (Nupélia) da Universidade Estadual de Maringá (UEL) faz ressalvas em relação à possibilidade de desequilíbrio ecológico após projetos dessa natureza.
“A ressalva é sempre a dificuldade de se garantir a origem das matrizes, a fiscalização e a educação ambiental para evitar a utilização e disseminação de espécies não-nativas, sejam exóticas de outros continentes ou nativa de outras bacias brasileiras. Mesmo problema enfrentado sempre quando se transporta espécies de peixes”, comenta a pós-doutora pela Smithsonian Institution.
Soluções
Para a ictióloga Ana Clara Franco, é necessário investir ainda mais nas ações de conscientização da população quanto ao acumulo de água, em campanhas de vacinação, além de em melhorias de infraestrutura, drenagem e saneamento básico.
Evitar focos de reprodução do mosquito é fundamental para controlar a doença
Reprodução/EPTV
“A epidemia de dengue no Brasil é um grave problema de saúde pública, mas que, infelizmente, não tem solução fácil. Introduzir desenfreadamente peixes não vai controlar a doença e pode ter drásticas consequências para o futuro dos ecossistemas aquáticos”, comenta Ana Clara.
Indo mais além, outra medida importante seria evitar o desmatamento e a remoção de matas ciliares, revitalizar os sistemas aquáticos urbanos e, por fim, aumentar a proteção da fauna nativa que, segundo ela, já é uma aliada no combate à dengue.
VÍDEOS: Destaques Terra da Gente
Veja mais conteúdos sobre a natureza no Terra da Gente

Mais Notícias