Instalada em 2006, a placa com a frase ‘Sorocaba é do Senhor Jesus Cristo’ foi diversas vezes alvo de vandalismo, teve sua permanência abalada após decisão judicial e se mantém até hoje na entrada da cidade. Placa religiosa foi trocada por uma nova peça em junho deste ano pela atual gestão municipal
Diogo Del Cistia/g1
Era janeiro de 2008, próximo à data em que se celebra o “Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa”, um grupo de pessoas se reuniu às margens da Avenida Dom Aguirre para protestar contra uma placa instalada em um canteiro da avenida que exibe a frase “Sorocaba é do Senhor Jesus Cristo”.
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(Durante esta semana, o g1 publica uma série especial em comemoração ao aniversário de Sorocaba. Confira outras reportagens no final do texto.)
A placa foi instalada há 18 anos e, mesmo com protestos e até um pedido de retirada por parte do Ministério Público, permanece no local até hoje. Nesta reportagem, você vai conhecer um pouco sobre a simbólica peça que já foi alvo de vandalismo, manifestações, ações judiciais e viralizou na internet.
Maria Cristina Tagliassachi Hubner, de 69 anos, fez parte do grupo que organizou o 1º ato contrário à permanência da placa.
“Um amigo que teve a iniciativa. Fizemos uma arrecadação para confeccionar a capa, tipo uma lona, que cobriu a placa. Nela, estava escrito ‘Sorocaba respeita e acolhe todas as religiões’. Nem conseguimos acabar direito e chegou a polícia, que havia sido chamada por um vereador. Mandaram a gente tirar ou seríamos presos”, relembra Maria Cristina.
Grupo cobriu a placa com uma capa com a frase estampada “Sorocaba respeita e acolhe todas as religiões”
Arquivo Pessoal
A placa foi instalada no local em 2006 no canteiro de uma das entradas da cidade, próximo à alça da acesso à rodovia José Ermírio de Moraes (Castelinho). A instalação foi feita a pedido do ex-prefeito Vitor Lippi, que estava no seu primeiro mandato de prefeito da cidade.
Ao g1, Lippi contou o que motivou e como foi feita a instalação da peça religiosa.
“Eu sempre tive um bom relacionamento com todos os segmentos aqui da cidade Entre os segmentos que nós tínhamos esse bom relacionamento estava o conselho de pastores de Sorocaba. E foi deles que partiu essa sugestão para a gente ter um totem na entrada da cidade com esses dizeres.”
O parlamentar mantém a posição que tinha na época em que decidiu pela instalação: de que o objeto não representa preconceito contra nenhuma religião ou contra pessoas que não acreditam em Jesus. Para o ex-prefeito, as manifestações cristãs fazem parte de todas as cidades.
“Nos nomes das cidades, ruas, terminais. Celebrações religiosas, como as festas juninas, romarias. Nós estamos ligados à religião. Obviamente que isso não agride ninguém, então eu achei razoável, até porque a justificativa é de que algumas cidades tinham essa manifestação e de que Sorocaba poderia ter também, eu achei aquilo bonito, que não traria nada de negativo. Eu nunca tive intolerância contra nada”, afirma.
Conforme Vitor Lippi, a confecção e o serviço de instalação da placa foi feito com recursos próprios da prefeitura. “Infelizmente, criou uma polêmica porque alguém entrou com uma ação no Ministério Público, alegando que isso era algo político eleitoral. Sendo que não me passou em nenhum momento conquistar voto por conta disso.” relembra o parlamentar.
Ação judicial
A polêmica citada por Lippi ocorreu em 2013, quando o promotor Jorge Alberto Marum instaurou um inquérito civil a pedido de dois estudantes de Direito solicitando a remoção da placa. O Ministério Público (MP) citava que o totem violava os princípios constitucionais da liberdade de crença e do Estado laico. A disputa judicial durou anos e só teve um desfecho final em junho de 2016.
“Foi pedido que o Poder Judiciário determinasse a remoção da placa. A prefeitura alegou que a instalação da placa no local foi regular e não infringia a lei nem a Constituição.” explica o promotor.
Diante da posição da prefeitura, o MP iniciou uma ação civil pública, questionando sobre o motivo da instalação do totem, quanto custou e quem autorizou a obra.
“O Ministério Público considerou que a placa fazia uma afirmação de cunho religioso abrangendo todo o município num imóvel público. E também porque não havia autorização fundamentada da prefeitura para aquela ocupação do espaço público. As liberdades de expressão e de culto são garantidas pela Constituição, porém, não se pode ocupar um espaço público de forma permanente sem autorização (ou cessão ou concessão) da administração pública responsável.”
O Ministério Público venceu em primeira instância e o município foi condenado a retirar a placa do espaço público em até dez dias, sob pena de multa diária. Na época, religiosos fizeram um culto para defender a permanência do totem.
Cristãos fazem protesto para manter totem religioso em Sorocaba – Sorocaba é do Senhor Jesus Cristo
Ana Carolina Levorato/g1/Arquivo
No entanto, a prefeitura recorreu e conseguiu uma liminar que suspendeu a retirada. Na ocasião, prevaleceu o voto do desembargador Ricardo Dip, que considerou que a frase não é uma manifestação religiosa, mas uma expressão cultural.
“A só menção, portanto, do nome de Jesus Cristo reportado à cidade de Sorocaba é uma referência histórico-cultural, que, por si só, não aflige o âmbito do poder político, nem ainda o da liberdade de consciência e de crença.” pontuou na decisão.
Virou lei
Somente em 2013, seis anos após ser instalado, o totem aparece mencionado em um projeto de lei, que foi aprovado na época e se tornou a Lei nº 220/2013. Foi uma tentativa de manter a placa na entrada da cidade, encerrando a polêmica que se estabeleceu em torno do assunto.
O presidente da Câmara na época, José Francisco Martinez (PSDB), publicou o projeto apresentado na Casa por um vereador que denominava uma praça localizada no canteiro central da Avenida Dom Aguirre como “A Praça do Cristão”. No projeto, o ex-vereador cita que a praça abrigaria a placa religiosa.
Segundo a Câmara Municipal, a falta de uma legislação específica que autorizasse a instalação da placa acontece pois o serviço foi feito diretamente pelo Executivo, que tem autonomia para decidir.
‘Abençoar a cidade’
Vitor Lippi, que é católico, afirma que a intenção com a placa foi de “abençoar” a cidade: “Uma frase bonita, porque quase 90% das pessoas acreditam em Deus estão ligadas ao cristianismo. Tem uma frase na entrada da cidade, essa cidade é abençoada, essa cidade é do Senhor Jesus.”
Ato de vandalismo mancha de tinta totem religioso em Sorocaba
Viola o Estado laico?
Ao g1, o cientista político e pesquisador, Bruno Silva, explicou que não há nenhum tipo de proibição em relação a homenagens envolvendo figuras religiosas, porém, que não deve haver nenhum tipo de referência a um credo ou fé religiosa em específico para não violar os princípios do Estado laico, que é não se manifestar em assuntos religiosos, garantir a liberdade religiosa e não adotar religião oficial.
“A instalação da placa em si, recentemente, não deveria ocorrer. Até para não promover uma determinada religião de modo público em detrimento de outra, por mais que se possa argumentar que o Brasil tem uma tradição de religião cristã oficial por centenas de anos. Obviamente os indivíduos (nisso se inclui os políticos) são livres para professar a sua fé e divulgar o seu credo. No entanto, o maior problema, acaba sendo a utilização de recursos públicos e do uso do espaço público para essa finalidade”, salienta.
Justiça proíbe uso da frase ‘sob a proteção de Deus’ e leitura bíblica em sessões da Câmara de Bauru
O cientista político ressalta que o conceito de Estado laico no Brasil é recente e que, por isso, o país tem um longo histórica que normaliza a “mistura” entre religião e política.
“São mais de 200 anos de estruturação do Estado no Brasil, o qual passou por distintos momentos ao longo do tempo, frente a 26 anos da nova constituição democrática. Ou seja, o Estado inicialmente no Brasil foi estruturado de modo patrimonialista (confusão entre a esfera pública e privada) e com fortes vínculos com a Igreja Católica. Portanto, culturalmente, muito do que vemos de ritos e trâmites, sobretudo em Câmaras Municipais, diz respeito a esse histórico marcado pelo peso de uma determinada religião que caracteriza a falta de laicização.”
Justiça proíbe uso da frase ‘sob a proteção de Deus’ e leitura bíblica em sessões da Câmara de Araçatuba
Angelo Cardoso
Figura histórica de Jesus
Para Bàbálòrísà Nivaldo de Logun-Edé, que é sacerdote de religião de matriz afro-brasileira, especificamente do candomblé, toda e qualquer manifestação pública de fé é agradável a Deus e inspiradora para a sociedade.
“Como sacerdote de religião de matriz afro-brasileira, eu entendo a figura histórica de Jesus como sendo um ancestral comum a vários povos, cuja existência foi muitíssimo importante para a história da humanidade. O fato de ver o nome desse ancestral na entrada da cidade não ofende a minha religião, tampouco a valoriza.”
‘Brasil em Constituição’: liberdade religiosa é um direito garantido a todos os brasileiros
Porém, o sacerdote ressalta que as religiões de matriz afro-brasileira enfrentam preconceitos em diversas esferas.
“Para mim, a placa não expressa preconceito, o preconceito está na atitude de muitas pessoas que desconhecem a lei (liberdade de culto, direito constitucional) e infelizmente também desconhecem os fundamentos e valores defendidos pelas religiões de matriz afro, tão iguais e universais quanto aos defendidos por qualquer religião, inclusive as cristãs e neopentecostais.”
Bàbálòrísà Nivaldo de Logun-Edé, sacerdote de religião de matriz afro-brasileira
Arquivo Pessoal
Viralizou na internet
Em junho deste ano, a prefeitura fez a troca da placa por um modelo maior com a mesma frase da original. Questionado, o poder público informou que a peça foi fabricada na oficina da Secretaria de Mobilidade, com materiais disponíveis para produção de equipamentos deste tipo, e não informou o custo da produção da nova peça. Segundo o órgão, a substituição da placa anterior foi feita por conta do desgaste e más condições.
Ao longo dos 18 anos de instalação, a antiga peça foi alvo de vandalismo diversas vezes com pichações e depredações. Na maioria dos casos, as pichações deixavam alguma mensagem contrária à frase religiosa e reforçavam a laicidade do Estado brasileiro.
Totem religioso que fica na entrada de Sorocaba foi pichado por vândalos
Reprodução/TV TEM
Totem com mensagem religiosa é pichado novamente em Sorocaba
Reprodução/TV TEM
Totem com mensagem religiosa em Sorocaba é alvo de vandalismo
Gualberto Vita/G1
Jovens da Igreja do Evangelho Quadrangular se reuniram na entrada de Sorocaba para fazer a limpeza do monumento
Reprodução/TV TEM
Em abril de 2014, após a placa amanhecer coberta de tinta branca, um grupo de jovens de uma igreja evangélica se reuniu para fazer a limpeza da estrutura metálica.
Totem amanheceu com marcas de tinta branca em abril de 2014
Vado Ferreira/TV TEM
‘Até as 18h’
A pichação que inseriu na placa a frase “até as 18h” viralizou nas redes sociais e tornou a peça religiosa conhecida fora da região de Sorocaba.
Antiga peça foi alvo de pichações por diversas vezes em Sorocaba (SP)
Redes Sociais/Reprodução
Sorocaba e as religiões
Segundo o Censo 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Sorocaba tem 925 templos religiosos. Os templos de matrizes cristãs dominam o cenário religioso da cidade, enquanto crenças de origem africana e asiática são minoria.
✝️ 33,76% das igrejas são neopentecostais;
⛪️ Quase 12% dos templos são católicos;
🕊 Centros espíritas representam 3,99%;
📿 Do total de templos, apenas 2,36% são de centros de umbanda;
🛐 Templos mórmons representam 1,09%;
🏯 Templos dedicados à religiões asiáticas – budismo, xintoísmo, tenrikyo e hinduísmo – representam apenas 0,72% do total.
Vista aérea da cidade de Sorocaba (SP)
Prefeitura de Sorocaba/Divulgação
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