Denúncia é analisada pelo Ministério Público de Sorocaba (SP). Grupo mantinha duas casas terapêuticas na cidade, mesmo não tendo alvará de funcionamento. MP apura denúncias contra grupo terapêutico que abrigava usuárias de drogas em Sorocaba
O Ministério Público apura denúncias de maus-tratos e clandestinidade contra um grupo terapêutico que funcionou em Sorocaba (SP) por mais de um ano no acolhimento de mulheres usuárias de drogas.
Conforme apurado pela TV TEM, o grupo recebia verba do estado, mas as denúncias mostram que as acolhidas ficavam sem alimentação e produtos básicos, e que o tratamento terapêutico não seguia regras adequadas para ajudar as dependentes químicas.
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Em imagens feitas por uma educadora social, é possível ver as condições da cozinha da comunidade terapêutica. Não há comida na geladeira, e apenas um pacote de pão no armário.
A ex-funcionária, que não será identificada, trabalhou na comunidade por 11 meses. Desde que entrou, percebeu irregularidades em diferentes áreas, como a administrativa. Segundo ela, os documentos ficavam espalhados pela comunidade, e o que a chocou foi a falta de alimentação das meninas.
“As meninas não podiam repetir comida. Não tinha pão, elas comiam biscoito de água e sal, ficaram meses comendo só biscoito de água e sal. Quatro biscoitinhos de manhã e quatro biscoitinhos no café da tarde. É uma comunidade terapêutica onde não tinha praticamente grupo terapêutico”, relata.
Casa fica localizada no Centro de Sorocaba (SP)
Gustavo Marques/TV TEM
No final de junho, outros registros mostraram mais ocorrências que reforçam a denúncia. Em um novo vídeo, a educadora afirma que o banheiro está sem luz há meses e que as acolhidas precisam tomar banho de porta aberta e com água gelada. Ela afirma que já presenciou as acolhidas ficando 15 dias sem papel higiênico e precisando usar pano para se limpar.
Segundo a educadora, quando a coordenação era questionada, recebia como resposta que era uma forma de “reeducar” as meninas para que elas aprendessem a economizar.
Demissão após questionar a situação
Geladeira não tinha mistura para as acolhidas
Reprodução/TV TEM
A TV TEM localizou outra mulher que foi uma das primeiras monitoras da comunidade. Ela começou no antigo emprego em maio de 2023, quando a casa abriu, e foi demitida depois de um ano e dois meses após, segundo ela, começar a questionar a situação precária do local.
“Acabou mistura. Acabou o gás. Acabou tudo. [Eu falava] ‘Olha, se vocês não têm verba para manter a casa, fecha’. [Respondiam] ‘Ai, é final de mês. É assim mesmo’. Agora, numa residência a qual o estado manda verba, não pode chegar até a metade do mês”, conta.
Em junho, foi registrada uma denúncia no Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDH) contra a Casa de Saúde Mental, Clínica de Recuperação Nova Jornada, de Sorocaba. No documento, diversos motivos foram apresentados para justificar a ação, entre eles:
Privação de alimento;
Falta de material de higiene pessoal;
Algumas acolhidas compravam comida e eram obrigadas a assinar documentos dizendo que fizeram doação;
Constantes ameaças de serem destituídas da clínica;
Falta de alvará de funcionamento.
‘Fase um’ e ‘Fase dois’
‘Fase um’ (à esquerda), acolhida as mulheres que, após um periodo de tratamento, iam para a ‘Fase dois’ (casa à direita)
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A Comunidade Terapêutica Nova Jornada sempre acolheu mulheres dependentes do álcool e drogas de diferentes regiões do estado de São Paulo. A denúncia feita ao Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania foi sobre o que acontecia em uma casa localizada no Centro de Sorocaba, chamada “Fase Um”, unidade que está fechada desde o final de julho.
Na unidade, a proposta era que cada acolhida passasse por atendimento psicossocial, terapêutico e grupos de prevenção à recaída. Quando essa mulher apresentasse evolução, era encaminhada para outra unidade, a “Fase Dois”.
Essa outra casa fica a menos de 200 metros da primeira e é uma unidade para as acolhidas que saíam da “Fase Um”. É neste local que, supostamente, as mulheres estariam prontas para voltar à sociedade e para o mercado de trabalho. Nesta segunda fase, eram elas quem cuidavam da casa, sem acompanhamento profissional por tempo integral.
A educadora social explicou que as mulheres ficavam três meses na primeira fase, onde se preparavam para ter autonomia. No entanto, ela explica que, muitas das vezes, esse período não era cumprido e o processo era acelerado para que “cumprissem metas”.
“Tinham que colocar um número específico na segunda fase e tinha que ter um número específico na primeira, porque daí iria vir uma verba a mais para eles conseguirem trabalhar com as meninas. Então, por vezes, várias meninas que foram pra segunda fase voltaram para as ruas porque não estavam preparadas”, lamenta.
A ex-funcionária reforça que a diretoria da casa sabia das condições de cada mulher acolhida, mas fazia o remanejamento das vagas de acordo com o repasse de verbas.
“Às vezes essas meninas vinham da Cracolândia e colocava essas meninas na casa um, mas ela tinha que descer pro outro residencial, que é a casa dois, já que eles estavam mandando verba para essa residência. Às vezes a menina recaía na casa um e como a gente cobrava, ele [falava] ‘Ah, essa menina tá dando trabalho, faz assim: se ela recair, ela vai embora. A gente já recebeu por ela’”, relata.
Suposto convênio com o estado
Promotora de Justiça Cristina Palma recebeu a denúncia do caso
Gustavo Marques/TV TEM
Quem recebeu a denúncia do caso foi a promotora de Justiça Cristina Palma, responsável pelo setor de Infância e Juventude e Saúde Pública em Sorocaba. À TV TEM, ela explica que fez os questionamentos para o estado de São Paulo e para a prefeitura, e que aguarda respostas.
Ela explica que o principal ponto que chamou a atenção foi que a clínica teria convênio com a Secretaria de Saúde do estado de São Paulo, e que constatou duas irregularidades no caso: a clandestinidade da clínica, já que não tinha nenhum tipo de alvará da Vigilância Sanitária, e os maus-tratos.
“[Vou pedir para] a secretaria de saúde do estado para que ela me apresente esse convênio, caso ele seja existente, juntamente com toda a documentação que respaldou esse convênio, porque evidentemente o estado ou a agente que fez esse convênio não poderia fazê-lo se o estabelecimento é clandestino”, explica.
Durante 14 meses de funcionamento em Sorocaba, de maio de 2023 a julho deste ano, com custo mensal de R$ 1,7 mil por pessoa, a Organização Social Civil Nova Jornada recebeu mais de R$ 840 mil da Secretaria de Desenvolvimento Social do Governo de São Paulo.
A situação mais grave, no entanto, aconteceu no final de julho. Uma das acolhidas, com 45 anos de idade, morreu após ser levada de uma das casas da comunidade terapêutica e dar entrada na Unidade Pré-Hospitalar da Zona Oeste. Ela era diabética e precisava de atenção especial, como tomar insulina diariamente.
Depois da morte, a Organização Social Nova Jornada fechou, também, a unidade dois e encerrou as atividades em Sorocaba.
O que dizem as partes
Em nota, a prefeitura de Sorocaba informou que uma equipe da Vigilância Sanitária foi até a primeira casa após ser acionada pelo Ministério Público, mas a unidade estava em fase de fechamento. Sobre segunda casa, disseram que não precisa de licença expedida pela Vigilância Sanitária.
Em relação à mulher que morreu, o município pediu e aguarda relatório médico para análise.
A TV TEM voltou a conversar com a promotora Cristina Palma, que acompanha o caso. Ela contou que continua fazendo questionamentos à prefeitura sobre a falta de alvará, e que o Ministério Público entende que há necessidade da licença para o funcionamento das duas casas. A promotora também afirmou que espera detalhes do convênio que deverão ser enviados pela Secretaria de Desenvolvimento Social do estado.
Sobre a morte da mulher, o MP pediu a abertura de inquérito policial.
A reportagem também questionou a Secretaria de Desenvolvimento Social. Em resposta, a pasta informou que a comunidade desistiu da parceria. Enquanto funcionava, o serviço foi fiscalizado uma vez por mês e considerado satisfatório. Quando a Fase Um foi fechada, havia sete mulheres acolhidas. Todas foram transferidas para a Fase Dois até terem alta terapêutica.
A respeito da morte da acolhida, a Secretaria disse que ela recebeu atendimento médico, passou por exames, mas no dia 22 de julho, a equipe técnica do serviço de acolhimento acionou o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu). Ela foi internada e morreu na UPH da Zona Oeste.
O grupo Nova Jornada, responsável pelas unidades, foi procurado pela TV TEM, mas disse que está vinculado ao estado e não tem autorização para dar informações sobre as denúncias.
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