29 de setembro de 2024

‘Massacre’ em Brasília: operários teriam sido alvejados um ano antes da inauguração da capital

Oficialmente, apenas uma morte foi registrada, mas segundo relatos da época, número de mortos durante carnaval de 1959 foi maior. Tudo teria começado por causa de revolta em refeitório; pesquisadora explica. Canteiro de Obras na época da construção de Brasília
Arquivo Público do Distrito Federal
Era Carnaval de 1959 — um ano antes da inauguração de Brasília — quando um episódio de violência marcou a história da construção da capital do país. Segundo os relatos, soldados da Guarda Especial de Brasília (GEB) entraram no refeitório de uma construtora da época, a Pacheco Fernandes, e alvejaram dezenas de operários.
Oficialmente, apenas uma morte foi registrada. Porém, o episódio ficou conhecido como “Massacre da Pacheco Fernandes” ou “Massacre da GEB”, já que, de acordo com o relato daqueles que viveram aquela época, o número de mortos foi muito maior.
Tudo teria começado por causa de uma revolta dos trabalhadores. Acredita-se que uma das motivações seria a comida estragada que era servida no local, conta a professora Maria Fernanda Derntl, do departamento de teoria e história da faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília (UnB).
“A GEB foi acionada para contê-los, mas, possivelmente por conta da resistência e do local em que se encontravam, acabou recuando. Mais tarde, os policiais se dirigiram ao alojamento dos trabalhadores, onde vários foram assassinados”, diz a professora Maria Fernanda.
A pesquisadora diz que não há registros oficiais do inquérito que deveria ter sido realizado na ocasião. Segundo ela, na época, o episódio de violência foi minimizado para evitar que o tema ganhasse fôlego e acabasse atrapalhando a imagem utópica que se pretendia para Brasília.
“Não havia propriamente uma estrutura de governo, como ocorreria após a inauguração, e a Companhia Urbanizadora da Nova Capital do Brasil (Novacap) era a empresa responsável por gerir a construção, manter a ordem social e controlar a vida naquele território em formação”, explica a professora.
Os relatos
Testemunha relata como ficou sabendo do “Massacre da Pacheco Fernandes”, no DF
No documentário “Conterrâneos Velhos de Guerra” (1992), do cineasta Vladimir Carvalho, moradores do Distrito Federal que viveram a época da construção da capital falaram sobre o episódio.
“Ouvi os tiros, eu tava dentro do alojamento que foi atingido também. A gente saiu correndo para as balas não atingirem a gente. […] Saiu um caminhão com defunto pra enterrar no Cerrado”, diz um dos entrevistados.
Já o pioneiro de Brasília Ernesto Silva, que foi presidente da Novacap, nega que tenha havido massacre.
“Foi uma festa em que houve muita bebedeira e houve desavença entre os operários. A polícia teve que interferir e houve, naturalmente, pessoas feridas. E parece que houve um morto”, diz Silva no documentário.
Questionado por Vladimir Carvalho sobre o episódio, o arquiteto e urbanista Lucio Costa disse que não teve conhecimento do episódio, mas que, se tivesse, “não teria dado a menor importância”.
Suzana Mendonça, que à época trabalhava lavando as roupas dos operários conta que, após o suposto massacre, estava com uma mala de roupas para entregar aos clientes que estariam próximos ao local do episódio. A entrevista foi publicada pelo Arquivo Público do Distrito Federal (veja vídeo acima).
“Atirou e matou um tanto de pessoas. Eu não cheguei a ver. Eu vim trazer a roupa e me falaram ‘não, esse rapaz morreu'”, conta Suzana.
O servente de pedreiro Eronildes Guerra gravou um depoimento de três horas em meia, em 1991, aos pesquisadores do Arquivo Público do DF. Ele também foi cozinheiro nos canteiros de obra da empresa Pacheco Fernandes e afirmou ter presenciado o episódio.
“O major que era o comandante mandou a turma entrar, fazer fila, todo mundo fazer fila para apanhar. E quem corresse levava chumbo. Aí a turma, coitada, a turma ficou tudo apavorado, começaram a correr. Aí, quem não enfrentava a fila e corria, eles metiam fogo, metiam bala. Sem dó”, disse.
Imagens mostram jornais da década de 1960 sobre episódio conhecido como “Massacre da GEB”
Reprodução/Documentário “Conterrâneos Velhos de Guerra” (1992), de Vladimir Carvalho
Eronildes afirmou ter ficado escondido na cantina da obra enquanto os policiais perseguiam os operários. As balas perdidas, segundo ele, fizeram vítimas nos dormitórios.
“Teve nego que morreu na cama, dormindo. Que eles atiravam naqueles caras que estavam correndo, às vezes erravam. A bala pegava na tábua, que era tudo tábua naquela época, matavam o cara dentro que estava dormindo na cama. Justamente aqueles caras que trabalhavam a noite inteira”, contou ao Arquivo Público do DF.
Diferentes versões
Trecho do documentário “Brasília segundo Feldman”, de Vladimir Carvalho, publicado no canal oficial do governo no Youtube
Reprodução/Youtube
Segundo a historiadora Maria Fernanda Derntl, as diferentes versões sobre o que aconteceu naquele carnaval de 1959 revelam também as diferenças entre “as classes” naquela fase da construção de Brasília.
“Embora tenha sido o episódio mais cruel e evidente acerca das duríssimas condições de trabalho em Brasília, o massacre da Pacheco Fernandes deve ser visto não como algo isolado, mas como parte de um cotidiano de super exploração da força de trabalho no qual outros episódios de conflito e revolta devem ter ocorrido”, diz Derntl.
Em outro documentário, também de Vlamidir Carvalho, há relatos de candangos que dizem ter sido testemunhas do “Massacre da Pacheco Fernandes”. Os depoimentos estão no filme “Brasília segundo Feldman” (1979).
“Foi uma chacina tremenda. Um dos cabos que participou da chacina ficou traumatizado e meio doido. Não se sabe o paradeiro dele”, disse o agricultor Luís, que chegou em Brasília em 1958, no documentário.
Para Maria Fernanda Derntl, o caso leva a pensar no quanto o projeto de construção de uma cidade que expressasse desenvolvimento e modernização se apoiou em condições arcaicas de trabalho. “Leva ainda a pensar nas permanentes lutas e revoltas de trabalhadores para conquistar direitos e melhores condições de vida”, diz a professora.
Completa 62 anos o episódio conhecido como “massacre da GEB”
LEIA TAMBÉM:
É verdade que corpos de operários foram concretados nos prédios de Brasília?
Leia mais notícias sobre a região no g1 DF.

Mais Notícias