12 de outubro de 2024

‘Caso de transplante de órgãos com HIV é inédito no país’: saiba como a triagem funciona no Brasil

Antes de seis pessoas receberem órgãos contaminados com HIV no RJ, país não tinha registrado falha do tipo, segundo Lígia Câmera Pierrotti, chefe da Comissão de Infecção em Transplante da Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO). Laboratório responsável por exames em doares no RJ está fechado
Rafael Nascimento/g1 Rio
O caso dos seis transplantados que receberam órgãos contaminados pelo HIV no Rio de Janeiro é o primeiro do tipo no país, relata a infectologista e coordenadora da Comissão de Infecção em Transplante da Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO), Lígia Câmera Pierrotti.
Segundo a especialista, a detecção precoce do vírus e de outras infecções em doadores é eficaz devido aos avanços nos testes de triagem de todo o Sistema Nacional de Transplantes (SNT), que permitem a identificação de diversas infecções em estágios iniciais da doação.
O Sistema Nacional de Transplante tem critérios rigorosos para o rastreio de doadores de órgãos, que seguem portarias estabelecidas em conjunto com a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
Todos os órgãos doadores devem passar por testes de sorologia para HIV, hepatite B, hepatite C, HTLV e outras infecções.
Além disso, o rastreio leva em conta o contexto geográfico. Por exemplo, a doença de Chagas é investigada na América Latina, mas não na Europa ou nos Estados Unidos. Já os testes para HIV, hepatite B e hepatite C são obrigatórios, e no Brasil, não se aceita um doador HIV positivo para transplante.
“E os mesmos testes são realizados para o receptor”, acrescenta Pierrotti.
Como é feita uma triagem de órgãos?
A triagem laboratorial consiste em examinar amostras de sangue de potenciais doadores para identificar infecções, como HIV e hepatites B e C.
Os exames ajudam a excluir doações que poderiam comprometer a saúde dos pacientes que esperam por transplantes. Além dos testes, são feitas entrevistas com doadores ou suas famílias e exames físicos para verificar possíveis problemas que impeçam a doação.
“O Brasil realiza um número muito grande de transplantes desde a década de 60, sendo o quarto país que mais realiza transplantes de fígado e rim no mundo, reconhecido internacionalmente pela qualidade de sua atividade, sem casos de transmissão de HIV até então”, diz Pierrotti
O Ministério da Saúde define critérios técnicos mínimos para essa triagem, buscando proteger os receptores dos transplantes.
A principal regulamentação relacionada ao tema é a Portaria nº 2.600, de 21 de outubro de 2009, que aprovou o regulamento técnico para o funcionamento de bancos de tecidos humanos e estabelece critérios para a triagem de doadores.
Além das infecções, também é feita uma avaliação em relação a condições neoplásicas, que são tipos de câncer. Se o doador tiver um histórico recente ou ativo de câncer, os órgãos não são utilizados. Porém, existem exceções, como alguns tipos de câncer de pele, que têm um baixo risco de transmissão.
Por isso, os testes laboratoriais são fundamentais nessa triagem. Isso inclui exames de sangue e outros testes que ajudam a identificar possíveis problemas de saúde.
Quando um doador apresenta uma infecção bacteriana, por exemplo, a doação pode ser aceita, desde que ele esteja recebendo tratamento adequado com antibióticos por pelo menos 48 horas. Agora, após o transplante, o receptor deve continuar a receber antibióticos por pelo menos sete dias.
Onde são feitas as sorologias?
De forma geral, as sorologias são realizadas em grandes centros de transplante, onde se busca garantir a segurança tanto dos doadores quanto dos receptores de órgãos.
Em alguns países, há recomendações específicas sobre como lidar com a rastreabilidade dos doadores. Em certas situações, não se recomenda rastrear todos os casos para evitar complicações. No entanto, quando surgem eventos adversos nos receptores, como infecções, a chamada vigilância retroativa é prevista e necessária.
Por isso, nesses casos, é fundamental investigar o doador para identificar possíveis fontes de infecção. No caso do Rio, uma contraprova foi feita com o material de um doador, que identificou a presença do HIV. Em seguida, as autoridades de saúde rastrearam os demais receptores e confirmaram que as pessoas que receberam um rim cada também testaram positivo para o HIV.
Ao todo, até o momento houve a confirmação de infecção por HIV de dois doadores e seis receptores que tiveram teste positivo.
Por isso, o Ministério da Saúde solicitou a interdição cautelar do laboratório ordenou a retestagem do material de todos os doadores.
“O Ministério da Saúde e os demais agentes sanitários reforçaram as normas e orientações técnicas, que já são robustas, com o intuito de aprimorar os procedimentos de identificação de doenças transmissíveis antes da doação. Esse esforço visa reduzir ainda mais as chances de transmissão de infecções como o HIV ou a Hepatite C, garantindo que o sistema de transplantes no Brasil continue a operar dentro dos mais altos padrões de segurança”, afirmou a pasta, em nota.
Por que esse foi um exemplo inédito?
Segundo médicos infectologistas ouvidos pelo g1, o risco de infecção como resultado de um transplante de órgão é baixo:
Isso porque o processo de rastreamento infeccioso é extremamente criterioso no Brasil, abrangendo não só o HIV, mas também hepatites, além de doenças bacterianas e virais.
No SUS, o sistema de transplantes é um dos que funciona com excelência.
“O teste de HIV é muito sensível e o risco de um teste falso negativo é muito pequeno. A transmissão do HIV, em transplante de órgao, é completamente inesperada e evitável”, diz Alberto Chebabo, presidente da Sociedade Brasileira de Infectologia.
No caso do Rio de Janeiro, o governo do estado informou que o erro foi atribuído ao laboratório privado PCS Lab Saleme, localizado em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense.
A Anvisa descobriu ainda que o PCS não tinha kits para realização dos exames de sangue nem apresentou documentos comprovando a compra dos itens, o que levantou a suspeita de que os testes podem não ter sido feitos e que os resultados tenham sido forjados.
“Os novos testes contra HIV têm uma janela de apenas quatro semanas, o que torna o risco de contaminação muito baixo, pois são altamente sensíveis para diagnosticar o vírus”, explica Álvaro Costa, infectologista do Hospital das Clínicas da USP.
“Nesse processo, é fundamental conversar com o doador, avaliar os exames e garantir que a investigação seja feita corretamente. O problema surge quando não se realiza essa avaliação completa no doador”, acrescenta Costa.
O vírus atinge principalmente os chamados linfócitos T CD4+. Ele modifica o DNA dessas células e se replica. Após se multiplicar, o HIV destrói os linfócitos e continua a infecção em novas células.
Por isso, caso não haja tratamento, ele pode causar a Aids (termo para Síndrome da Imunodeficiência Adquirida, em inglês).
Mas pessoas que vivem com HIV/Aids (PVHA) com carga viral indetectável, ou seja, uma baixa quantidade de cópias do vírus, têm risco ZERO de transmitir o HIV por via sexual e podem viver um vida NORMAL.
⚠️ ENTENDA: Esse é um conceito que a ciência vem reforçando nos últimos 20 anos visto que o tratamento antirretroviral previne a transmissão do HIV. Em outras palavras, quando a carga viral é indetectável, o vírus não se transmite durante relações sexuais.
Já pessoas que vivem com HIV/Aids que NÃO estão em tratamento ou possuem carga viral detectável podem transmitir o vírus a outras pessoas (entenda mais sobre o tratamento abaixo).
O caso ocorrido ainda necessita de investigações mais minuciosas, porém não representa a realidade diária de pessoas transplantadas. As chances [de uma transmissão do tipo], na prática, são muito baixas.
Nos Estados Unidos, por exemplo, a Health Resources and Services Administration supervisiona a doação e o transplante de órgãos, garantindo que os doadores sejam devidamente testados antes de seus órgãos serem aprovados para transplante.
Desde 2013, as diretrizes de saúde pública no país exigem que todos os doadores, vivos ou falecidos, sejam submetidos aos testes mais sensíveis disponíveis para minimizar o risco de transmissão de HIV.
Como são feitos os testes?
No Brasil e em outros países, o teste padrão para detectar o HIV é o ELISA de 4ª geração, que identifica o vírus em 95% dos casos após 4 semanas. Após 6 semanas, a precisão chega a praticamente 100%.
De acordo com o Ministério da Saúde, o procedimento começa com esse teste inicial, chamado de triagem sorológica.
Ou seja, se o resultado for negativo, a pessoa é considerada livre do HIV e não precisa de mais exames. Mas, se o resultado for positivo ou incerto, a amostra passa por um segundo teste, diferente do primeiro, para confirmar.
Além disso, testes adicionais como imunofluorescência ou western blot (um método para identificar proteínas) podem ser usados para garantir o diagnóstico.
Isto é, se o diagnóstico for positivo, o laboratório deve pedir uma nova amostra do paciente cerca de 30 dias depois para confirmar. Se houver diferenças nos resultados entre os testes, o exame western blot será necessário para esclarecer.
O termo HIV é usado para se referir ao vírus da imunodeficiência humana. Já AIDS significa síndrome da imunodeficiência adquirida.
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Como ocorre a transmissão?
A transmissão pode ocorrer por meio de relações sexuais sem proteção, pelo compartilhamento de seringas contaminadas ou de mãe para filho durante a gravidez e a amamentação, caso não sejam adotadas as medidas preventivas necessárias.
Assim, a maneira mais eficaz de prevenir o HIV é a prevenção combinada, que utiliza várias abordagens simultâneas para atender diferentes necessidades e formas de transmissão.
A PrEP, por exemplo, é uma das principais formas de prevenção do HIV. Comprimidos são tomados em esquemas diferentes (PrEP diária e sob demanda) antes da relação sexual, o que permite ao organismo estar preparado para enfrentar um possível contato com o HIV.
Em casos de situação de risco, como sexo desprotegido ou uso compartilhado de seringas, o Ministério da Saúde orienta a testagem contra o HIV. Se a exposição ocorreu há menos de 72 horas, procure informações sobre a Profilaxia Pós-Exposição ao HIV (PEP), um método de prevenção com o uso de medicamentos antirretrovirais após um possível contato.
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Números do HIV e da Aids
A estimativa do Ministério da Saúde é de que um milhão de pessoas vivem com HIV no Brasil. Desse total, 650 mil são do sexo masculino e 350 mil do sexo feminino
Em 2022 (números mais recentes), o Ministério da Saúde registrou 10.994 óbitos tendo o HIV ou Aids como causa básica, 8,5% menos do que os 12.019 óbitos registrados em 2012.
👉 Desse total, os negros representam quase o dobro de brancos.
Foram 61,7% mortes entre pessoas negras, sendo 47% pardos e 14,7% pretas.
Os brancos representaram 35,6% do total.
Apesar da redução, cerca de 30 pessoas morreram de Aids por dia em 2022.
Ainda segundo dados do Ministério da Saúde, entre 2007 e junho de 2023, foram notificados 489.594 casos de infecção pelo HIV no Brasil. A maior incidência é entre homens e na faixa etária entre 25 e 39 anos.
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