17 de outubro de 2024

Voluntários relatam angústia no resgate de animais silvestres durante incêndios florestais: ‘Morrem antes de serem salvos’

Perda de habitat e de alimentos também são entraves para soltura e reabilitação de bichos sobreviventes, segundo governo de SP. Secretaria define situação como catastrófica no estado. Filhote de raposa-do-campo atendida no Cetras de Ribeirão Preto, SP, com ferimentos nas patas em razão de incêndio florestal
Reprodução/EPTV
Os incêndios florestais que acometem o país desde o início do inverno têm deixado um rastro de destruição na fauna e na flora brasileiras, com destaque para o cerrado. Voluntários de toda a região de Ribeirão Preto (SP) têm atuado tanto no resgate quanto na recuperação dos animais selvagens afetados.
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A estiagem de 2024 tem sido reconhecida pelo governo brasileiro como a pior da história. Foram 5,65 milhões de hectares queimados somente em agosto, o que corresponde a 49% de toda a área queimada no Brasil em 2024.
No estado de São Paulo, 86% de todas as queimadas ocorreram nesse mesmo período, com destaque para Ribeirão Preto, Sertãozinho (SP) e Pitangueiras (SP). Os dados são do levantamento Monitor do Fogo, do MapBiomas.
A diretora de Fauna Silvestre do Estado de São Paulo, Isabella Saraiva, define a situação no estado como catastrófica, tanto para os animais que perderam a vida quanto para os que sobreviveram, pois perderam seu habitat.
“Você não vai ter abrigo, não vai ter comida até que essa vegetação e esse ambiente voltem ao normal. E isso impacta a fauna por muito tempo. Então, não é só o dano imediato, agora, dos animais que perderam a vida. Esse impacto vai continuar de agora em diante até que ocorra a recuperação”, afirma.
Filhote de veado resgatado em área rural que pegou fogo em Ipuã, SP
Reprodução/EPTV
Desde o início dos incêndios, quando o estado de São Paulo criou um gabinete de crise para combate às queimadas, os 26 Centros de Triagem e Recuperação de Animais Silvestres (Cetras) espalhados pelo estado receberam, ao todo, 95 animais. Destes, apenas 41 sobreviveram, e poucos deles poderão ser devolvidos à natureza. Em Ribeirão Preto, foram 26 animais, dos quais 9 aguardam condições para retornar à natureza.
Alexandre Gouvêa, zootecnista e um dos responsáveis pelo Cetras de Ribeirão Preto, explica que a situação das queimadas pegou a todos de surpresa e que foi necessária uma preparação para atender à demanda.
“O que aconteceu na região de Ribeirão Preto é uma situação nunca antes vista. Eu trabalho aqui há 30 anos e nada se compara com o que aconteceu em 2024”, diz.
O filhote de onça-parda havia se separado da mãe e do irmão ao tentar escapar do incêndio e acabou sendo atropelado em uma rodovia
Cetras Ribeirão
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Maioria dos animais não sobrevive
A dificuldade de acesso às áreas afetadas, agravada pela persistência do fogo e pelas condições climáticas desfavoráveis, também prejudica o trabalho de resgate.
Apesar do nível de devastação, os números indicam que grande parte dos animais morre sem conseguir socorro. Biólogos e veterinários voluntários que realizam o trabalho de resgate relataram ao g1 que, devido à extensão da destruição, muitos bichos acabam morrendo porque ficam sem locais de escape ou refúgio.
Incêndio ainge uma área da Estação Ecológica Jataí, maior reserva de cerrado do estado de SP
Gabinete de Crise do Governo de SP
A médica veterinária Maria Ângela Panelli, conhecida por sua atuação na recuperação de animais vítimas de maus-tratos ou desastres ambientais, frequentemente trabalha em períodos de queimadas. Neste ano, no entanto, tem recebido menos bichos do que o esperado, devido à intensidade e à frequência dos incêndios.
“Por incrível que pareça, não estão chegando muitos animais. Eu até perguntei para a polícia o motivo, porque estava esperando um grande número, como no ano passado. Eles me disseram que as queimadas foram tão intensas que muitos animais morreram antes mesmo de terem tempo de ser socorridos”, relata.
Macaco tratado pela veterinária Maria Ângela Panelli durante as queimadas
Arquivo Pessoal
A produtora rural Edlaine Ramos Vilela, proprietária da Fazenda Buritiz, em Pedregulho (SP), descreve um cenário catastrófico em sua propriedade, que tem 60% de sua área composta por reservas ambientais.
“Ainda não consegui acessar todo o lugar, pois as árvores ainda estão fumegando. Estamos com medo de entrar, é perigoso. Vi tamanduá e lobo-guará mortos, que tentaram se refugiar, e uma ave pegando fogo, mas não deu para identificar qual era. Ainda não deu para ver tudo, mas a quantidade de animais mortos deve ser absurda”, diz.
Atuação dos voluntários
Durante o período crítico dos incêndios, diversas clínicas veterinárias e profissionais atuaram como voluntários, entretanto, a demanda foi menor do que a esperada.
A médica veterinária Camila Faria colocou sua clínica, especializada em animais exóticos, à disposição para a reabilitação de animais resgatados. Ela explica que o volume de atendimentos foi abaixo do esperado, pois a maior parte das espécies morreu antes de ser resgatada.
“Atendemos 12 animais, mas inicialmente esperávamos um número muito maior. Com o passar do tempo, percebemos que a maioria dos animais não conseguiu escapar. O pessoal que os encontrava relatava que era cada vez mais difícil resgatá-los. Portanto, acabamos conseguindo salvar bem poucos”, explica.
Animais resgatados pela veterinária Camila Faria, em Ribeirão Preto
Acervo Pessoal
Camila destaca que, pelas características do fogo, com a fumaça e o rápido avanço das chamas, os animais morrem com extrema facilidade. Ela lamenta que, quase dois meses após o início dos incêndios, a situação tenha se naturalizado.
“A falta de divulgação sobre as queimadas e seus impactos nos animais também contribuiu para a diminuição do número de pessoas mobilizadas para ajudar. No início, algumas pessoas iam até as áreas afetadas procurando os animais, e muitos ligavam pedindo ajuda. Houve bastante mobilização somente no começo”, afirma.
Os passos até a reabilitação
Nos Centros de Triagem e Recuperação de Animais Silvestres (Cetras), o processo de reabilitação pode ser longo, já que é necessário observar uma série de condições para a soltura, tanto em relação à saúde quanto à capacidade de agir conforme os instintos da espécie na natureza e se há ambientes adequados para o retorno.
Animais são resgatados por voluntários durante incêndios na região
Os animais resgatados são recebidos, registrados com chips para controle e passam por uma série de exames para definir a dieta necessária, as intervenções cirúrgicas e os medicamentos. Durante o processo de recuperação, são frequentemente avaliados para verificar se estão aptos a voltar à vida livre.
No entanto, a secretária Isabella Saraiva explica que, neste momento, a soltura não é viável devido à perda dos habitats, especialmente na região de Ribeirão Preto, onde há pouca área nativa em função da monocultura de cana-de-açúcar.
“Tem que ser uma área que ofereça água, abrigo e comida, porque não adianta soltar um animal para ele morrer ou ser atropelado. É preciso ter todos esses cuidados ao reintegrá-lo ao ambiente certo, um lugar com espaço e condições adequadas”, esclarece.
Voluntários reclamam de tratamento
Alguns dos voluntários que trabalham com o resgate de animais na região reclamaram ao g1 da burocracia ao encaminharem animais resgatados para o Cetras. Um biólogo de Ribeirão Preto, que preferiu não ser identificado, afirma que ativistas que realizam o trabalho com frequência têm sido maltratados pelos órgãos que devem receber os bichos.
“Eu fui levar uma coruja no bosque e fui questionado. Porque eu estava com essa coruja, onde eu encontrei essa coruja? Se eu tenho autorização para fazer o resgate e transporte? Nesse dia, vieram umas cinco pessoas, todas juntas. O Cetras é um lugar para receber bichos, não tem por que questionar. A forma que eles fazem acaba intimidando as pessoas”, afirma.
Animais vítimas de incêndios passam por tratamento em bosque de Ribeirão Preto
O biólogo afirma que é exigida uma autorização da Secretaria Estadual do Meio Ambiente (Semil) para resgate, transporte e manejo do animal, sob pena de crime ambiental. Ele diz que participa dos salvamentos principalmente quando outros órgãos, como o Corpo de Bombeiros ou a Polícia Ambiental, não conseguem atender às solicitações da população.
Após realizar uma série de resgates, ele diz que foi denunciado ao Conselho Regional de Biologia (CRBio) por tráfico de animais.
“Inclusive no dia em que recebi a ligação eu estava no meio da mata com fogo procurando bicho para resgatar”, lamenta.
Uma voluntária, que também preferiu não ser identificada, relata situação semelhante. Ela afirma que quando passou a atender e a resgatar animais durante as queimadas, percebeu uma grande dificuldade em contatar o Cetras de Ribeirão Preto.
“A gente não recebia animais de vida livre, até porque já ouvi outras clínicas que tiveram problema. Mas quando as queimadas começaram, eu imaginei que a gente teria uma quantidade grande de animais e que o bosque precisaria de ajuda. E foi isso que aconteceu, mas o bosque não estava nos atendendo”.
Ela conta que, depois que fez a entrega de alguns animais, foi informada de que não poderia mais fazer o atendimento e que não deveria mais receber os bichos, que só fariam o recebimento pelos bombeiros ou pela Polícia Ambiental.
“A gente parou de divulgar porque a gente ficou com medo de acontecer alguma coisa. Por mais que seja uma ação boa, a gente tem medo que tentem criminalizar o que a gente fez. Eles estão coagindo, não querem receber e não gostaram do que a gente fez”, afirma.
Voluntários são bem-vindos, segundo autoridades
Em oito dias, fogo destruiu área de cerrado do tamanho de 100 campos de futebol em Cajuru, SP
Reprodução/EPTV
O tenente da Polícia Ambiental Fernando Eufrásio afirmou ao g1 que os voluntários são bem-vindos para ajudar no resgate de animais, especialmente em momentos de crise. No entanto, ele lembra que a legalidade desse apoio deve ser observada para evitar infrações ambientais.
A orientação é que, caso possível, os voluntários levem o animal até a Polícia Ambiental ou diretamente ao Cetras. Se isso não for viável, pode-se solicitar que uma viatura faça o resgate. Contudo, devido à ampla área de cobertura da região, nem sempre será possível enviar uma viatura de imediato.
“Agradecemos muito aos voluntários, precisamos desse apoio, mas ele precisa ser dosado. A polícia precisa saber onde o animal está. Por exemplo, se ele vai ficar em uma clínica porque foi atropelado ou está machucado. ‘A gente cuida dele por um tempo e depois vocês vêm buscá-lo’, e faremos a destinação correta com o maior prazer”, diz.
O controle é necessário para evitar ações como o tráfico de animais. A secretária Isabella Saraiva explica que a autorização exigida pela Semil é uma medida de controle e monitoramento da fauna. Órgãos como a polícia, os bombeiros e guardas municipais estão dispensados dessa autorização.
“Precisamos ter cuidado e entender que estamos em um momento de crise, em que os animais estão sofrendo, mas não podemos simplesmente liberar tudo, porque seria irresponsável. Às vezes, as pessoas não têm a capacidade necessária para fazer o resgate e acabam se machucando. Isso pode acontecer, por exemplo, com um tamanduá ferido. Se ele der uma patada, pode causar um acidente grave”, explica.
Reserva Jataí, em Luís Antônio (SP), voltou a pegar fogo neste fim de semana
Reprodução/EPTV
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