25 de dezembro de 2024

5 fatores que explicam por que tentativa de golpe para manter Bolsonaro no poder fracassou


Falta de apoio no comando das Forças Armadas foi um fator central, mas outros elementos igualmente importantes impediram uma nova ruptura democrática no Brasil em 2022, apontam especialistas. A polícia indiciou 37 pessoas — incluindo Bolsonaro e os ex-ministros Braga Netto e Augusto Heleno — por tentativa de golpe de Estado
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A Polícia Federal (PF) afirma, no relatório final da investigação sobre a tentativa de golpe orquestrada para manter o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) no poder que a recusa de comandantes do Exército e da Aeronáutica a “cederam a pressões golpistas” foi uma das principais razões para o plano não ter sido concretizado.
Segundo o documento, os comandantes do Exército, general Marco Antonio Freire Gomes, e da Aeronáutica, tenente-brigadeiro Carlos de Almeida Baptista Junior, não deram o suporte para que o esquema fosse levado adiante.
Especialistas ouvidos pela BBC Brasil concordam que a falta de apoio no comando das Forças Armadas foi um fator central.
Mas apontam outros que também podem ter contribuído para enfraquecer os planos do grupo que pretendia evitar a posse de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) como presidente em janeiro de 2023.
1. Faltou apoio da sociedade civil e das elites
Para a pesquisadora Adriana Marques, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), um ponto desmobilizador do plano foi a falta de apoio massivo para uma ruptura democrática entre grandes atores da sociedade civil.
“O que garantiu que o golpe não ocorresse foram fatores como a mobilização da sociedade civil organizada ou a cobertura maciça da imprensa em favor da democracia”, diz a coordenadora do Laboratório de Estudos de Segurança e Defesa (LESD).
Os manifestos em prol da democracia articulados por professores e juristas ligados à Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e pela Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) em agosto de 2022 foram cruciais para mostrar o vigor dessa mobilização, dizem especialistas.
Manifesto em prol da democracia organizado pela Fiesp recebeu apoio de entidades representativas do setor produtivo e do mercado financeiro
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A “Carta às Brasileiras e aos Brasileiros em Defesa do Estado Democrático de Direito”, do Direito da USP, reuniu mais de 1 milhão de assinaturas, incluindo de ex-presidentes, senadores e outros políticos, acadêmicos aclamados, ex-ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), bancários, empresários, artistas e diversas entidades.
O documento pedia respeito ao processo eleitoral, à separação dos poderes e ao Estado democrático de direito.
A Fiesp também lançou seu próprio manifesto em prol da democracia, que recebeu apoio de entidades representativas do setor produtivo e do mercado financeiro.
Entre os signatários, estavam a Câmara Americana de Comércio (Amcham) e a Fundação Fernando Henrique Cardoso. Centrais sindicais também assinam o texto, como a CUT, além de entidades ligadas à proteção ambiental, como Greenpeace e WWF.
O cientista político Claudio Couto, professor da Fundação Getulio Vargas (FGV), afirma que as circunstâncias em 2022 foram neste sentido totalmente diferentes daquelas observadas em 1964, quando um golpe militar depôs o presidente João Goulart iniciando a ditadura militar brasileira.
“Em 1964, o empresariado e parte da imprensa apoiaram o golpe de forma explícita”, diz Couto.
“Ainda que alguns empresários tenham financiado os acampamentos bolsonaristas que se instalaram na frente dos quartéis após as eleições em 2022, não havia uma ampla rede de apoio institucionalizada como há 60 anos.”
2. Houve pressão internacional contra uma ruptura democrática
Também ao contrário do que aconteceu em 1964, quando o golpe militar contou com apoio dos Estados Unidos, em 2022, Washington não só deixou claro que acompanhava com atenção a realização das eleições brasileiras quanto que não concordaria nem se calaria diante de uma tentativa de subverter o resultado.
O governo do democrata Joe Biden via nos ataques de Bolsonaro ao sistema eleitoral ecos do processo de questionamento da democracia visto nos Estados Unidos, que culminaram em um violento ataque ao Capitólio do país, em 6 de janeiro de 2021, enquanto a vitória de Biden era certificada pelo Congresso.
Na ocasião, Bolsonaro afirmou que o Brasil poderia “ter um problema pior que o dos Estados Unidos se não tiver voto impresso”.
Aliado a Trump, Bolsonaro demorou a reconhecer a vitória do democrata e ecoou acusações infundadas do republicano de fraude eleitoral.
As advertências de autoridades americanas contra ataques bolsonaristas à democracia começaram privadamente, mais de um ano antes do pleito, mas se tornaram públicas conforme a eleição se aproximava.
Em julho de 2021, por exemplo, o diretor da agência de inteligência americana, a CIA, William Burns, teria advertido assessores diretos de Bolsonaro de que o presidente, que àquela altura já levantava dúvidas sobre a lisura do processo eleitoral, deveria deixar de questionar a integridade das eleições no país.
Em agosto daquele mesmo ano, Jake Sullivan, Conselheiro de Segurança Nacional do governo americano, se reuniu em Brasília com Bolsonaro e ouviu do próprio presidente suspeitas infundadas contra a eleição nos dois países.
O comportamento do governo brasileiro alarmou os americanos. Washington botou em pé uma estratégia de dissuasão contra um eventual golpe não apenas com os diplomatas do Departamento de Estado, como com os militares americanos do Comando Sul, em contato direto com suas contrapartes brasileiras, e a própria Casa Branca.
Em maio de 2022, em entrevista à BBC News Brasil, a subsecretária do Departamento de Estado Victória Nuland disse pela primeira vez que os Estados Unidos esperavam ver “eleições livres e justas” no Brasil e reafirmou a confiança dos americanos no sistema eleitoral brasileiro, sob ataque de Bolsonaro.
Naquele mesmo mês, senadores democratas em sessão legislativa chamaram o mandatário brasileiro de “líder que ameaça a democracia”.
Uma série de propostas para punir o Brasil surgiram no Congresso dos Estados Unidos — embora não tenham sido aprovadas, eram claros recados.
Em setembro, poucos dias antes da eleição, o Senado americano chegou a aprovar uma resolução que recomendava o rompimento de relação dos Estados Unidos com o Brasil caso o poder fosse usurpado no país.
Em paralelo, a Casa Branca repetia esperar que a escolha do povo brasileiro fosse respeitada.
No dia da eleição, a Presidência americana executou uma operação de reconhecimento do vencedor em tempo recorde: em menos de uma hora do anúncio pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ainda na noite de domingo, o presidente Biden parabenizava Lula pela vitória nas urnas, em mais uma ação que visava minar qualquer condição de um golpe de Estado.
Jake Sullivan (ao centro), membro do governo dos EUA, ouviu do próprio Bolsonaro suspeitas infundadas contra a eleição nos dois países.
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O comportamento de Washington tem sido mencionado por analistas como um fator central a prevenir que a eleição de 2022 fosse derrubada.
Segundo Adriana Marques, da UFRJ, o apoio americano é considerado essencial para o Brasil não apenas do ponto de vista de sua relevância política e econômica — os Estados Unidos são o segundo maior parceiro comercial do país, atrás apenas da China —, mas também militar.
“Os militares brasileiros são muito dependentes da cooperação com os Estados Unidos para treinamento, capacitação, compartilhamento de protocolos e fornecimento de armamentos”, diz a pesquisadora.
“Foi muito bem sinalizado que eles perderiam esse tipo de colaboração se houvesse uma ruptura democrática no Brasil, o que certamente pesou no cálculo dos militares que decidiram não apoiar o golpe.”
Outras potências estrangeiras também foram rápidas em reconhecer a vitória de Lula, enfraquecendo ainda mais qualquer tentativa de questionamento de acordo com analistas.
Emmanuel Macron, presidente da França, foi um dos primeiros líderes globais a se manifestar, assim como o então premiê de Portugal, António Costa.
3. Atores institucionais e classe política entraram em ação
A própria ação dos atores institucionais e da classe política também pode ter agido para impedir que o plano de golpe fosse adiante, diz Claudio Couto, da FGV.
“Se a postura ativa do Judiciário por um lado gerava raiva entre os apoiadores do golpe e motivou ataques ao Supremo e ao ministro Alexandre Moraes em particular, por outro também sinalizou uma tolerância muito reduzida do próprio Judiciário e de outras instituições para qualquer tipo de aventura que viesse a acontecer”, diz o cientista político.
Diferentemente de 60 anos atrás, quando parte da classe política apoiou o grupo de militares responsáveis pelo golpe e até participou do movimento de conspiração, em 2022 não houve consenso em torno do caminho a ser tomado.
Figuras relevantes, como o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), foram rápidas em reconhecer a vitória de Lula após a publicação dos resultados oficiais das eleições, o que de certa forma serviu como um sinal para o resto do país, ressalta Couto.
Segundo o analista, muitos temiam ainda que questionar o resultado do pleito presidencial poderia colocar dúvidas também sobre os resultados das eleições para o Senado, a Câmara e os governos federais, nas quais aliados de Bolsonaro e membros de partidos mais conservadores foram eleitos.
Mas para o cientista político Leonardo Avritzer, autor de Impasses da Democracia no Brasil e professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), o simples fato de uma trama golpista ter sido conduzida com o envolvimento de militares do alto escalão, ministros e outras figuras ligadas ao Executivo sinaliza uma necessidade de aprimoramento do funcionamento das instituições e da democracia brasileira.
“Foram diversos os episódios em que altos comandantes das Forças Armadas foram chamados para deliberar sobre um golpe de Estado — isso não pode ser considerado o funcionamento institucional normal”, afirma Avritzer.
“Ao mesmo tempo, chegou-se perto de uma tentativa de assassinato de um ministro do Supremo Tribunal Federal — isso também não é normal.”
A investigação conduzida pela PF aponta para a existência de uma “organização criminosa” dividida em vários grupos, com diversas ações planejadas, que envolviam até planos de assassinar Alexandre Moraes, Lula e o vice-presidente eleito Geraldo Alckmin (PSB).
A polícia indiciou 37 pessoas — incluindo Bolsonaro e os ex-ministros da Defesa, general Walter Braga Netto, e do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), general Augusto Heleno — por suspeita de tentativa de golpe de Estado.
4. Faltou apoio entre militares
Para os especialistas consultados pela BBC News Brasil, o fato de tanto Freire Gomes quanto Baptista Junior se recusarem a aderir ao plano golpista reflete um receio de parte do Alto Comando das Forças Armadas em aderir a um movimento que possivelmente não se sustentaria sem o suporte da sociedade civil, da classe política e de governos estrangeiros.
“O cenário todo que se formava criou constrangimentos que fizeram com que aqueles militares que estavam indecisos sobre aderir ou não ao golpe se recusassem a apoiar”, avalia Adriana Marques.
“O problema não era necessariamente concretizar o golpe, mas sustentar um regime autoritário em uma sociedade complexa como a brasileira, sem apoio de uma parcela importante da sociedade e sem respaldo internacional.”
Freire Gomes se manifestou dessa maneira em diversas ocasiões, ao reagir à pressão que sofria para aderir a um golpe de Estado. “Serão 20 dias de euforia para 20 anos de agonia”, disse o general, segundo as investigações.
Para Leonardo Avritzer, lideranças que fazem parte do Estado-Maior das Forças Armadas também se preocupavam com o efeito que um golpe teria na sua reputação, além de temerem as consequências de um regime sem um sistema de freios e contrapesos capaz de controlar o poder.
“Ainda que muitos no Estado-Maior não sejam totalmente democráticos, um golpe sobre o controle de Bolsonaro seria uma desprofissionalização radical das Forças Armadas no Brasil e uma série de lideranças tinha receio em relação a isso”, diz o professor da UFMG.
Na sua visão, parte do temor do alto escalão militar em relação ao ex-presidente pode estar relacionado ao próprio passado de Bolsonaro no Exército.
Bolsonaro foi capitão do Exército e teve diversos ministros militares em seu governo
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Bolsonaro foi capitão do Exército, mas foi preso em 1986 por 15 dias por “ter ferido a ética, gerando clima de inquietação na organização militar” e “por ter sido indiscreto na abordagem de assuntos de caráter oficial, comprometendo a disciplina”, segundo trechos de uma reportagem da Folha de S.Paulo de 2017, que obteve documentos do Superior Tribunal Militar (STM).
A prisão foi motivada por um artigo que ele escreveu para a revista Veja em 1986, sem consultar os seus superiores, no qual pede aumento salarial para a tropa.
O ex-presidente também foi investigado por acusações de que teria elaborado plano para explodir bombas-relógios em unidades militares do Rio de Janeiro.
Ele foi inicialmente condenado por uma comissão do Exército, mas posteriormente absolvido pelo STM. Depois disso, trocou a carreira militar pela política.
“As instruções democráticas são uma forma de contenção do presidente, mas em um golpe essas formas de controle não existiriam mais — o que é mais preocupante quando se trata de um líder que tem um histórico de desrespeito à hierarquia no Exército”, diz Avritzer.
5. O golpe de Estado clássico saiu de moda
Outro ponto levantado pelo especialista é um certo esgotamento do modelo de golpe de Estado em que se planeja uma ruptura total e abrupta da ordem política.
“O golpe de Estado mais clássico está em decadência, ou seja, a ruptura completa com a ordem política já não é a mais comum”, diz.
O modelo descrito como clássico por Avritzer e outros cientistas políticos passa pelo que é visto como um esteriótipo envolvendo membros mais graduados das Forças Armadas derrubando o governo em um incidente curto, mas potencialmente violento.
Seria algo como o que aconteceu no Egito em 2013 ou na Tailândia em 2014. Mas segundo Leonardo Avritzer, esses dois países representam uma exceção atualmente.
O que especialistas veem como mais comum e possível hoje é um processo de ruptura da democracia mais paulatino, revestido de uma certa aparência de legitimidade, com controle das instituições (como tribunais e mídia), manipulação de eleições, uso de forças paramilitares, repressão a movimentos de oposição e outras formas de autoritarismo que não requerem uma tomada abrupta do poder.
“O mundo viu dezenas de golpes no estilo tradicionais nas décadas de 1950, 1960 e 1970, mas hoje eles são mais raros porque existe uma institucionalidade democrática internacional que dificulta a gestão pós-golpe”, explica Avritzer.
Mas Claudio Couto adverte que apesar de terem se tornado menos populares ou bem-sucedidas, as rupturas abruptas da democracia ainda acontecem e não devem ser descartadas totalmente como ameaças.
“No Peru, houve uma tentativa, mas que foi mal sucedida. Na Bolívia também houve uma ruptura recentemente, mas que depois foi revertida”, diz Couto. “Ou seja, rupturas ainda podem acontecer.”
O caso peruano aconteceu também no final de 2022. O agora ex-presidente Pedro Castillo foi destituído do cargo e preso depois de uma tentativa frustrada de dar um golpe ao anunciar que fecharia o Congresso.
Segundo o relatório elaborado pela PF sobre a trama antidemocrática no Brasil, o fracasso do movimento no Peru teria sido um motivo para Bolsonaro não avançar em sua própria empreitada.
Essa teria sido a avaliação do tenente-coronel Sérgio Cavaliere, do Exército, um dos 37 indiciados.
“E o presidente não vai embarcar sozinho porque pode acontecer o mesmo que no Peru. Ele está com decreto pronto ele assina e aí ninguém vai ele vai preso. Então não vai arriscar (…)”, Cavaliere teria dito, segundo a PF, em uma gravação de áudio no dia 20 de dezembro de 2022.
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