Companhia estreou em 1945 com objetivo de dar protagonismo a atores negros e deixou legado para a dramaturgia brasileira. Em 2025, nascimento do ativista, ator e intelectual completa 111 anos. Abdias Nascimento: veja como surgiu a ideia para criação do Teatro Experimental do Negro
Um jovem jornalista, com múltiplas facetas intelectuais e artísticas, inconformado desde sempre com o racismo que sentiu e que viu nas diversas estruturas de uma sociedade que ele buscava transformar. Abdias Nascimento (1914-2011), um dos ícones mundiais da luta pela igualdade racial nascido em Franca (SP), encontrou nas artes cênicas uma poderosa ferramenta para transmitir sua mensagem.
Nos anos 1940, ele fundou com intelectuais, produtores e artistas o Teatro Experimental do Negro (TEN), um marco para a dramaturgia brasileira, como o primeiro espaço a dar protagonismo a atores negros, que deixa marcas até hoje.
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“O Teatro Experimental, não tenho dúvida, é ainda a companhia mais representativa de teatro negro do Brasil. Eu não sei o tamanho, a quantidade do que foi produzido pelo Teatro Experimental do Negro, mas pouco importa o tamanho disso tudo. Ficou e ficou pra sempre”, afirma o ator Hilton Cobra, fundador da Companhia dos Comuns e amigo de Abdias.
Esta reportagem faz parte de uma série especial sobre e a trajetória do ativista, intelectual, ator , escritor e dramaturgo Abdias Nascimento, que completaria 111 anos em março.
Cena da peça ‘O Imperador Jones’, do Teatro Experimental do Negro, sob direção de Abdias Nascimento
Acervo Abdias Nascimento/ Ipeafro
A viagem ao Peru e o ‘Imperador Jones’
No Rio de Janeiro do início dos anos 1940, o jovem estudante de economia Abdias faz amizade com outros brasileiros e argentinos, com quem cria um grupo de poesia, a Santa Hermandad Orquídea, e com quem parte em uma viagem pela América do Sul.
Em Lima, Peru, ele e os amigos vão prestigiar a peça “O Imperador Jones”, sucesso do teatro moderno do dramaturgo norte-americano Eugene O’Neill (1888-1953) e que, originalmente, tinha como protagonista um ator negro, como explica Elisa Larkin, viúva de Abdias e presidente do Ipeafro, instituto que preserva a memória e a obra do ativista.
“Esse teatro moderno nos Estados Unidos é inaugurado com o tema da questão racial. O Imperador Jones conta a história de um anti-herói negro e todo o mistério da cultura negra que o leva para uma grande aventura. O autor sempre fez questão desde o início que o papel principal fosse feito por um ator negro”, conta.
Mas, na apresentação na capital peruana, não foi isso que Abdias viu. No centro do palco, ele se indignou ao perceber que o papel principal tinha um ator branco com o rosto pintado com tinta preta e deixou o país determinado a criar uma companhia teatral para negros na volta ao Brasil.
“Abdias saiu da apresentação e foi discutindo com os colegas dele, com os poetas, levantando a questão, porque naquele momento o teatro era a grande o grande palco da cultura, toda a cultura ocidental, onde estivesse, inclusive na América Latina, tinha o rádio, ainda no início, nem todas as famílias tinham, não tinha cinema ainda. O teatro era a grande câmera de ecos, das novidades e do pensamento cultural da época. E quando ele vê a exclusão da pessoa negra desse palco ele lembra do Brasil e sabe muito bem que o teatro no Brasil é exatamente esse retrato do racismo”, diz.
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Acervo Ipeafro/ Bia Parreiras
A volta ao Brasil ainda seria adiada por uma breve temporada em Buenos Aires, na Argentina, onde ele aprimora os ofícios cênicos com o Teatro Del Pueblo, um conhecido grupo de vanguarda da época. Ao retornar para casa, no entanto, acabaria surpreendido por um mandado de prisão, resultante de um processo disciplinar pelo qual havia respondido anos antes por um suposto desacato a uma autoridade que o levou a ser excluído do Exército, justamente por discordar de um episódio de racismo.
“Teve gente que não se conformava que aquele incidente de insubordinação contra o racismo fosse punido apenas com uma exclusão do Exército e foram cavar na Justiça uma condenação à prisão, à revelia, ou seja, ele não teve direito à defesa, porque o processo foi conduzido à revelia dele”, relata.
Preso na Penitenciária do Carandiru, em São Paulo, Abdias Nascimento consegue abertura da direção para criar um jornal, onde os colegas de cela poderiam escrever, e cria o Teatro do Sentenciado, para justamente dar protagonismo aos presos por meio da arte.
“Eles escreviam os roteiros, construíam os palcos e os cenários, os figurinos, cantavam, dançavam, tocavam instrumentos, tudo eram os próprios presos que faziam, e eles fizeram várias encenações.”
Imagens da peça ‘O Imperador Jones’, que marcou a estreia do Teatro Experimental do Negro no Rio de Janeiro, em 1945
Acervo Abdias Nascimento/ Ipeafro
O Teatro Experimental do Negro
Ao deixar a prisão, e sem conseguir concretizar em São Paulo a ideia que tinha em mente desde quando havia visitado o Peru, Abdias funda, em 1944, o Teatro Experimental do Negro no Rio de Janeiro.
A estreia foi em 8 de maio de 1945 no Teatro Municipal com a mesma peça que, anos antes, o havia inspirado, mas com atores negros no palco. Até então, a iniciativa mais próxima no âmbito das artes cênicas tinha sido o trabalho realizado pela Companhia Negra de Revistas, entre 1926 e 1927.
“Eles fizeram a mesma peça que ele tinha visto em Lima, com Aguinaldo Camargo fazendo o Imperador Jones, que fez uma performance aclamada pelo público e pelos críticos. Eles assumiram como missão não somente fazer mais produções teatrais, como também estimular e fazer com que houvesse o desenvolvimento de uma literatura dramática que contemplasse o povo negro e sua cultura e sua experiência”, afirma Elisa.
Mais do que colocar em evidência atores negros, a partir de então a companhia também se destacou por produzir narrativas alinhadas com a realidade do povo brasileiro.
“Houve uma certa crítica pelo fato de o Teatro Experimental do Negro estrear com uma peça estrangeira, um texto estrangeiro. E a resposta era simplesmente a seguinte: não existiam textos brasileiros de teatro que dessem espaço para um elenco negro, muito menos para explorar as questões específicas da cultura e da trajetória coletiva ou mesmo individual das pessoas negras em uma sociedade escravista ou mesmo na diáspora africana. (…) Eles assumiram como missão não somente fazer mais produções teatrais, como também estimular e fazer com que houvesse o desenvolvimento de uma literatura dramática que contemplasse o povo negro e sua cultura.”
Foi dessa iniciativa que surgiram produções como “O Filho Pródigo”, escrita por Lúcio Cardoso, e “Rapsódia Negra”, que lançou em 1952 a atriz Léa Garcia, conhecida internacionalmente por estrelar no cinema “Orfeu Negro”, vencedor do Oscar como melhor filme estrangeiro em 1959.
“O Teatro Experimental do Negro, é importante dizer, nasceu como parte daquilo que é reconhecido como teatro moderno no Brasil, nasce com ‘Vestido de Noiva’ (peça que estreou em 1943), de Nelson Rodrigues (escritor e teatrólogo, 1912-1980), com os comediantes. Abdias era muito ativo em toda essa cena”, afirma Elisa.
Elenco da peça “O filho pródigo”, de Lúcio Cardoso, produção do Teatro Experimental do Negro lançada no Rio de Janeiro em 1947.
José Medeiros/ Acervo Ipeafro
Legado para a dramaturgia
O Teatro Experimental do Negro permaneceu em atividade até os anos 1960, mas até hoje deixa ecos na dramaturgia brasileira, um legado que consistiu em uma ruptura não só na forma de se pensar o teatro como também ao se debruçar sobre pautas sociais, segundo Julio Menezes Silva, gerente do Ipeafro.
“Eles passam a pensar caminhos para o Brasil a partir de uma visão não hegemônica, não europeia. Eles propõem soluções para o país a partir de outras bases epistemológicas, outras visões de mundo. Uma primeira ruptura é essa: se tornar protagonista do próprio tempo. Esse é um primeiro passo que Abdias Nascimento e a turma do Teatro Experimental do Negro conseguiram alcançar”, diz.
A iniciativa de Abdias é a grande inspiração de muitos grupos teatrais espalhados por todo o país como Bando de Teatro Olodum, Grupo Clariô, Companhia Negra de Teatro, Grupo Caixa Preta, Coletivo Abdias Nascimento, entre outros.
Inspirada em teatro fundado por Abdias Nascimento, Cia dos Comuns é um dos grandes grupos a dar protagonismo a atores negros no Brasil
Divulgação/ Cia dos Comuns
Um dos mais reconhecidos é a Cia dos Comuns, que nasceu no Rio de Janeiro nos anos 2000 com a mesma visão.
“Um amigo me apresentou ao Abdias na década de 1980. (…) A partir daí, nunca mais deixei de pensar nessa possibilidade de criar um grupo de teatro negro no Rio de Janeiro que trilhasse os trilhos que o Abdias criou desde a década de 1940. Um teatro que falasse da vida da gente negra brasileira, um teatro que desse oportunidade a artistas, técnicos, pesquisadores negros, um teatro que gritasse, brigasse por melhores condições de vida aos negros e negras brasileiras”, afirma o ator Hilton Cobra, fundador do grupo carioca.
Todas essas propostas estão evidentes no roteiro e nos elementos cênicos de “A Roda do Mundo”, sucesso desde a estreia da companhia, em 2001, ao contar não somente com atores negros, como por levar elementos de referência afro-brasileira como a capoeira.
“Nós queríamos que a capoeira, o maculelê, a roda de samba, o maracatu, que pudéssemos buscar nessas manifestações culturais de matrizes africanas algo extraordinário para ajudar não somente a criação dramatúrgica, mas na busca de personagens.”
Fora dos palcos, Abdias foi uma inspiração para a companhia realizar em 2005 o Fórum Nacional de Performance Negra, um encontro de diretores e artistas para discutir políticas públicas pra o setor. O próprio Abdias era um dos convidados.
“Abdias conseguia sintetizar tudo que tinha na cabeça e no corpo dele com relação a nós hoje 120 milhões de pretos e pretas deste país.”
Para Hilton, embora longe do ideal, a ascensão da representatividade negra nos palcos, na televisão e no cinema em muito se deve às pautas e projetos do ativista nascido em Franca. “Se Abdias vivo fosse ainda estaria dizendo que não está satisfeito. Porque a abordagem que fazem sobre a vida preta ainda não está impressa na teledramaturgia, mas aquilo que está lá, essa presença maciça preta é por força de mais de quatro décadas de briga.”
Abdias Nascimento com a máscara mortífera do poeta Léon Damas, em 1996
Luiz Paulo Lima / Acervo Abdias Nascimento Ipeafro
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