26 de dezembro de 2024

As Veredas do “Grande Sertão: Veredas”

Localizado no bioma do Cerrado, o Parque Nacional Grande Sertão Veredas é a única unidade de conservação do Brasil criada para proteger a paisagem de um livro. Nome do Parna Grande Sertão Veredas é uma homenagem a uma das mais importantes obras literárias brasileiras, o romance Grande Sertão Veredas, de João Guimarães Rosa
Luciano Lima/TG
Você já visitou o Parque Nacional Grande Sertão Veredas? O local está situado na divisa entre os estados de Minas Gerais e Bahia. O nome foi dado em homenagem a uma das mais importantes obras literárias brasileiras, o romance Grande Sertão Veredas, de João Guimarães Rosa. No livro, Guimarães Rosa retrata com uma enorme sensibilidade a realidade daqueles que vivem no local onde o Parque está inserido. Na coluna desta semana, Luciano Lima fala sobre sua recente visita a este lugar especial.
Já se passaram seis anos, mas me lembro como se tivesse sido agora pouco. Foi como conhecer ao vivo uma celebridade que a gente admira muito… Mesmo de muito longe, da janela de um pequeno avião sobrevoando a imensidão da tríplice fronteira dos estados de Minas Gerais, Bahia e Goiás, eu as reconheci. Retas, mas sinuosas, enormes, mas frágeis, verdes, mas amarelas, lá estavam: as veredas do “Grande Sertão: Veredas”.
Considerada a obra prima daquele que para muitos, inclusive para mim, é o maior escritor brasileiro de todos os tempos, “Grande Sertão: Veredas” é um desses livros que não basta apenas ler, é preciso sentir. Caso contrário, ele não faz sentido algum. Por isso, dizem que só existem dois tipos de leitores de Grande Sertão, aqueles que o veneram e aqueles que não o entenderam.
Ao longo do livro, o jagunço Riobaldo conta, para um interlocutor desconhecido, suas muitas peripécias cruzando o sertão em guerra com outros jagunços e consigo mesmo por estar sendo consumido por um amor “proibido”. Muitos personagens e seus nomes vão surgindo e desaparecendo ao longo das páginas, mas um está presente não apenas no título, como também, literalmente, da primeira até a última folha, o Cerrado.
Parque protege diversas espécies da flora e fauna, como o lobo-guará, animal típico do Cerrado e o maior canídeo da América do Sul
Luciano Lima/TG
Em “Grande Sertão: Veredas” a natureza é muito mais do que um simples cenário, ela é como uma força gravitacional que junta as palavras e dá sentido a obra. A todo momento passagens envolvendo plantas, animais, rios, paisagens e o céu vão surgindo pelo livro e conduzindo os personagens. Mas, mesmo entre a rica natureza das páginas, um tema aflora e se destaca, as veredas.
Já comentei em outros textos aqui na coluna que o Cerrado, assim como a Mata Atlântica, a Amazônia e outros “biomas” brasileiros, não é apenas um bioma. Biomas são ambientes com estrutura e característica similares que se repetem em diferentes lugares do planeta com condições climáticas parecidas.
Por exemplo, as florestas tropicais são um bioma presente na América do Sul, África, Ásia e Oceania. As savanas são outro bioma espalhado pelo mundo, sendo um dos diferentes biomas encontrados no Cerrado, onde também podem ser encontrados outros biomas, florestas secas e florestas úmidas associadas ao curso dos rios, por exemplo. Ou seja, o Cerrado é formado por um mosaico de biomas e cada um deles pode ser caracterizado por um conjunto de espécies de plantas, animais, fungos, etc.
Por sua vez, os biomas que formam o Cerrado são compostos por diferentes tipos de vegetação, tecnicamente chamadas de fitofisionomias. A vereda é uma das fitofisionomias presentes no Cerrado, estando dentro do bioma das florestas associadas à margem de cursos d’água. Do ponto de vista das suas espécies de plantas a vereda pode ser caracterizada pela presença de uma palmeira muito singular, o buriti (Mauritia flexuosa).
Grande Sertão Veredas possui área de 230.671 hectares que abrange os municípios de Chapada Gaúcha, Formoso e Arinos no estado de Minas Gerais e Côcos, na Bahia
Luciano Lima/TG
Ao ser perguntado pelo tradutor italiano do livro o que é uma vereda, João Guimarães Rosa responde em carta a seguinte definição: “[…] por entre as chapadas, separando-as (ou, às vezes, mesmo no alto em depressões no meio das chapadas) há as veredas. São vales de chão argiloso ou turfo-argiloso, onde aflora a água absorvida. Nas veredas há sempre o buriti. De longe, a gente avista os buritis, e já se sabe: lá se encontra água. A vereda é um oásis. Em relação às chapadas, elas são, as veredas, de belo verde-claro, aprazível, macio. O capim é verdinho-claro, bom. As veredas são férteis. Cheias de animais, de pássaros.”
Entre a definição técnica de vereda e a rosiana, prefiro a última. Não só porque ela tem passarinhos, aliás lendo a obra de Guimarães Rosa não há outra conclusão possível além da que ele era um apaixonado observador de aves, mas porque a definição do escritor é carregada de sensações.
Por conter muitas veredas, nas páginas de Grande Sertão brotam infinitos buritis e buritizais. Em uma delas, Riobaldo nos ensina que “o buriti é das margens, ele cai seus cocos na vereda – as águas levam – em beiras, o coquinho as águas mesmas replantam; dai o buritizal, de um lado e do outro se alinhando, acompanhando, que nem que por um cálculo”. Em outra ele envaidece a palmeira, “buriti – verde que afina e esveste, belimbele”.
Histórias Naturais é a coluna semanal do biólogo Luciano Lima no Terra da Gente
Arte/TG
Desde o meu primeiro encontro com as veredas do “Grande Sertão: Veredas”, já voltei muitas vezes à região do Parque Nacional Grande Sertão Veredas, a única unidade de conservação do Brasil criada para proteger a paisagem de um livro. Na semana passada eu estava de novo imerso entre as veredas do sertão rosiano. Mal voltei e já me pego lembrando de outra passagem do livro.
“Me deu saudade de algum buritizal, na ida duma vereda em capim tem-te que verde, termo da chapada. Saudades, dessas que respondem ao vento; saudade dos Gerais. O senhor vê: o remôo do vento nas palmas dos buritis todos, quando é ameaço de tempestade. Alguém esquece isso? O vento é verde. Aí, no intervalo, o senhor pega o silêncio põe no colo.”
O sertão, o Cerrado, sua veredas, seus buritis, suas araras, lobos-guarás e tudo mais dá saudade, muita saudade… E é aí em que ao concordar eu entro em desacordo com Guimarães Rosa. Segundo ele, em outra passagem do livro,: “o sertão é do tamanho do mundo”. É nada! O sertão é pequenino, um sertãozinho… Ele cabe no coração da gente.
*Luciano Lima é ornitólogo e faz parte da equipe do Terra da Gente.
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