13 de março de 2025

‘Até quando?’ Órfão do feminicídio, relato de menino de 5 anos ajudou a polícia a esclarecer a morte da mãe, diz avô


Crianças de 2 e 5 anos viram a mãe ser morta pelo pai e colocada na geladeira. Menino passou a detalhar tudo que tinha visto, do início ao fim. A pena do assassino, portanto, deve ser aumentada. Até quando? A dor dos órfãos do feminicídio
Os dois filhos de Millena Vitória, a jovem de 22 anos que foi morta na frente das crianças pelo ex-marido, Marcos Vinícius, passam por tratamento psicológico atualmente. Eles se enquadram no que se chama de “órfãos do feminicídio” – filhos deixados em situação vulnerável por conta da perda brutal da mãe.
No caso da família de Millena, o trauma é mais profundo: as duas crianças, de 2 e 5 anos, viram a mãe ser morta esganada e esfaqueada. Depois, ainda presenciaram o pai ocultar o corpo dentro de uma geladeira.
“Ele quis criar um monstro no meu neto, porque uma criança assistir a tudo isso, qualquer pessoa… Só por ele fazer isso, já não é um ser humano, ainda mais na frente de duas crianças”, diz a avó, Fabiana Garcia.
➡️Esse é um dos assuntos abordados na série especial do g1 “Até quando?”. As reportagens contam histórias de vítimas, o luto de suas famílias e os desdobramentos que as suas mortes ocasionam, como os órfãos do feminicídio.
A família relata que Marcos buscou o filho, de 5 anos, na sexta-feira dizendo que levaria o menino para ver a avó paterna e passear. O casal estava separado havia 20 dias, e Millena permitiu que a criança fosse com ele. Horas depois, ele passou a enviar mensagens dizendo que ela não veria mais o filho.
“Ela falou: ‘Mãe, ele ainda não trouxe o menino’, e eu falei para ela que se até ao dia seguinte ele não trouxesse, que a gente ia na delegacia. Quando foi segunda de manhã, ele chegou na casa dela, ela abriu o portão para receber o filho, ele entrou e fez essa covardia com a minha filha”, relata a mãe.
Marcos Vinícius se entregou à polícia poucas horas depois de matar Millena. Ele responde por feminicídio e ocultação de cadáver.
Série ‘Até quando’:
RJ teve quase 9 feminicídios e 32 tentativas por mês em 2024
‘Você não vai viver longe de mim’, disse ex antes de matar a mulher na frente dos filhos de 2 e 5 anos
O trauma
Depois de cometer o crime, o homem pegou as crianças e levou para a casa da irmã dele. Foi ela quem telefonou para os pais de Milena com a notícia de que ela tinha sido morta, depois que o homem confessou para a família. Leia o relato aqui.
“Ela me ligou novamente perguntando se tinha sido isso mesmo que tinha acontecido. Meu esposo confirmou, e ela disse: ‘Olha, pode vir buscar as crianças porque eu não tenho condições de ficar com eles’. Fomos no mesmo dia, eu queria meus netos comigo”, relembra.
Millena Vitória foi morta pelo ex-marido
Arquivo pessoal
Vivendo o luto pela perda da filha, o casal não sabia o que esperar da reação das crianças. O menino, que compreendia um pouco mais o que tinha acontecido, estava em silêncio e em estado de choque. Quando voltou a falar, passou a relatar, com detalhes, tudo que tinha visto, do início ao fim.
A família viveu a agonia de ouvir e reviver a cena durante toda a madrugada daquele dia. Depois, a criança não conseguia entender a morte da mãe e passou a pedir aos familiares que a retirassem da geladeira e a colocassem na cama, com cobertor.
“Ele falou para o meu filho: ‘Vai lá chamar minha mãe para dormir aqui na cama’. E o meu filho disse: ‘Sua mãe agora está morando com Jesus no céu’, e ele respondeu: ‘Não, ela está lá na geladeira’”, conta o avô.
“Eu penso o que se passa na mente dele: ‘Será que ninguém está preocupado que minha mãe não tá comendo, não tá bebendo? Como que ela tá fazendo para tomar banho? A minha mãe tá morta lá dentro da geladeira’”, diz Isaías.
O avô relembra que dezenas de policiais, militares e civis, foram ao local do crime. Ainda assim, como o assassino limpou o local, os investigadores tiveram dificuldade de saber o que aconteceu. Foi o relato do menino que ajudou a polícia a esclarecer o crime.
“Minha filha amava muito os filhos, ela cuidava dos filhos muito bem. Ela deixava de ter as coisinhas dela para poder dar para os filhos. E as crianças terem que assistir a essa cena de horror que os meus netos contam? Minha neta só sabe chamar pela mamãe, porque era muita agarrada com a minha filha”, relata a avó.
Família Millena
A psicóloga Caroline Aranha, do programa estadual Empoderadas, explica que as crianças são deixadas em uma situação vulnerável tanto emocionalmente quanto financeiramente, uma vez que dependem de suas mães, na maioria das vezes.
“A palavra órfãos é ainda mais forte porque normalmente tem um pai envolvido nesse cenário. Normalmente é esse pai que comete o feminicídio, ou o padrasto, e a criança fica órfã de um pai de vivo, mas que está preso. A criança encara uma morte dupla”, define Aranha.
“O luto para a criança já é particularmente delicado porque a criança vai lidar com um sentimento que ela nunca sentiu. E elas têm um costume de se culpabilizar por tudo, então ela não vai saber elaborar e ainda vai achar que aquilo é culpa dela”, fala a psicóloga.
Caroline acrescenta que a criança pode desenvolver distúrbios psiquiátricos ou apresentar comportamentos mais agressivos e irritadiços ao lidar com o luto em uma morte violenta.
O ideal, nesses casos, é que as crianças sejam acolhidas e tenham seus sentimentos reconhecidos, além de receber uma explicação clara e adequada sobre o que aconteceu. Segundo a psicóloga, entender a morte é fundamental para que elas compreendam que os entes queridos não retornarão.
Toda essa orientação deve ser feita em uma linguagem acessível, para que elas não fiquem mais confusas. Nos casos que envolvem traumas, é indicado que elas tenham acompanhamento psicológico.
“No acolhimento, a gente também pode relembrar para a criança que a mãe teve outros momentos, não só ali a morte. A gente pode comunicar lembranças, voltar no passado, mostrar fotos, para ela entender que a mãe não se resume só àquele momento”, completa Aranha.
Saiba identificar os tipos de violência doméstica, o que prevê a lei e como buscar ajuda
Pena aumentada
Desde 2024, uma nova lei tornou o feminicídio um crime autônomo, separado do homicídio, com pena de 20 a 40 anos de reclusão. Além disso, trouxe agravantes ao crime, casos em que os culpados terão a pena aumentada de um terço até a metade:
quando o feminicídio é cometido durante a gestação, nos 3 meses posteriores ao parto ou se a vítima é mãe ou responsável por criança;
quando é contra menor de 14 anos, ou maior de 60 anos, ou mulher com deficiência ou doença degenerativa;
quando é cometido na presença de pais ou dos filhos da vítima;
quando é cometido em descumprimento das medidas protetivas de urgência previstas na Lei Maria da Penha;
e no caso de emprego de veneno, tortura, emboscada ou arma de uso restrito contra a vítima.
A advogada Mayara Nicolitt, do Programa Empoderadas, explica que uma das mudanças na nova forma da lei é o aumento da pena em um terço nos casos em que descendentes ou ascendentes presenciarem o crime, como pais, avós, filhos e netos.
A lei busca proteger principalmente os laços familiares e as consequências emocionais diretas para os parentes próximos da vítima.
Em razão disso, os filhos de Millena vão depor à Justiça, relatando o que presenciaram de forma lúdica e acolhedora, sem revitimização. A oitiva será conduzida por uma equipe multidisciplinar, em uma sala reservada e fora do ambiente do tribunal, durante o processo de julgamento.
Família da Millena Vitória sofre com a perda da jovem
Reprodução/g1
“Enquanto ele não consegue dar depoimento para quem realmente vai poder ajudar ele, ele fica repetindo pra gente em casa, enquanto a gente até preferiria que ele esquecesse. A nossa maior preocupação é que isso acabe o mais rápido possível, pra gente tirar o ponto final que foi colocado na história do meu neto e mostrar pra ele que tem toda uma história para viver pela frente”, afirma o avô.
Dificuldades financeiras
O crime não só enterrou os sonhos de Millena, que queria se formar em estética para ter uma profissão para criar os filhos, como também prejudicou o desenvolvimento das crianças e afetou a vida financeira dos avós.
Autônomos e sem renda fixa, eles passaram a criar as crianças e enfrentaram dificuldades já no primeiro dia. A casa onde moram, em Bangu, precisava de reformas. No terceiro andar, não havia guarda-corpo, que precisou ser instalado para garantir a segurança dos pequenos. A família contou com ajuda financeira para fazer a obra de última hora.
“Mesmo sem condições, conseguimos mudar um pouco o ambiente para que eles tivessem um pouco de segurança, brincar com mais liberdade. Mas é o tempo todo olhando porque são bebês. Ainda precisamos mexer no telhado”, explica a avó.
“Nós somos vendedores ambulantes. Meu esposo trabalha com pele de porco no sinal, e eu faço salgado pro rapaz vender na rua. Não temos renda fixa e foi criada uma vaquinha para nos ajudar na compra de uma casa no térreo”, conta Fabiana.
‘Você faz falta’, destaca mãe
Família da Millena Vitória sofre com a perda da jovem
Reprodução/g1
Fabiana aconselha as jovens que estão em relações abusivas.
“Não vai terminar bem, grite por socorro, pede ajuda para familiares, na delegacia, tem tantos lugares. Na Casa da Mulher, você vai ter uma profissão, não espere o pior acontecer, não deixe seus filhos sofrerem sua perda, um pai sofrer, irmãos sofrerem. Você faz falta, você é importante”, fala.
“Você pode não ser importante para esse homem que faz a violência com você, mas você é importante para seus filhos. Não deixe chegar onde chegou. O ponto final vai ser tua vida tirada, olhe pros seus filhos, sua mãe, seus familiares e não deixe homens fazerem isso com você”, conclui.
O pai conta que precisou de muita força para encontrar o corpo, acompanhar os trâmites legais e ainda dar apoio emocional para a família e esposa.
“Eu cheguei a orar para Deus, encostado no poste, e pedi: ‘Senhor, me dá resistência como se eu fosse esse poste para continuar de pé forte, e de noite ainda ter luz”, relembra.
Para ele, a sensação é como se Milena tivesse voltado a ter 3 anos, idade em que ele começou a criá-la, e como se tivesse saído para um passeio e voltado sem ela.
“Parece até que eu tô voltando no tempo e tomando a minha filha com 3 anos de idade para ir em algum lugar de onde eu não vou retornar com ela. Parece que eu saí com a menina, a mãe ficou em casa e quando eu voltar vou ter que falar: ‘Perdi a nossa filha’”, desabafa.
Fabiana
Isaías acredita que, sem os netos por perto, ele e a mulher estariam ainda mais deprimidos.
“É amor em dose dupla, né? Avó e mãe ao mesmo tempo. A gente tem amor e carinho para cuidar deles. Brinca com o avô, que é muito brincalhão, o tempo todo rindo e brincando. Eles estão me ajudando a passar por esse momento difícil”.
Fabiana diz que as crianças têm tornado os dias mais agradáveis, com risos e brincadeiras.
Nos momentos de dor e saudade da filha, a mãe se apega à imagem das crianças felizes ao lado dela e ao último momento que passaram juntos em família.
Fabiana conta que a última vez que viu a filha viva foi na noite anterior ao crime, no culto de domingo com a filha de 2 anos.
“É uma massagem na nossa alma, de verdade. É o que tem nos sustentado todos os dias para caminhar”, conclui Isaías.
Onde pedir ajuda em caso de violência doméstica
190 – para acionar a Polícia Militar em casos de emergência
180 – para acionar a Rede de Atendimento à Mulher em situação de violência
100 – para denúncias de violação de Direitos Humanos
Delegacias de Atendimento à Mulher (Deam): para registrar boletins de ocorrência, solicitar medidas protetivas e pedir exames de corpo delito
WhatsApp do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos: (61) 99656- 5008
Unidades do Ministério Público para se informar e pedir ajuda na solicitação de medidas protetivas

Mais Notícias