20 de setembro de 2024

Caldeirão de culturas e valorização regional: movimento Roraimeira completa 40 anos de história

Nesta quarta-feira (28), o grupo, formado por Zeca Preto, Eliakin Rufino e Neuber Uchôa, comemora 40 anos de uma união artística tão forte que se consolidou como um marco na cultura roraimense. Roraimeira: movimento artístico de Roraima completa 40 anos
“Cai o sol na terra de Macunaima / Boa Vista no céu, lua cheia de mel / Sobe a serra de Pacaraima / Eu sou de Roraima!”.
☀️ Quem é roraimense, ou se sente ‘roraimado’, conhece de cor os versos da canção Makunaimando e, com orgulho, celebra as belezas naturais e culturais do extremo Norte do Brasil. Essa expressão é fruto da genialidade de três artistas de Roraima: Zeca Preto, Eliakin Rufino e Neuber Uchôa. Juntos, o Trio Roraimeira transformou a identidade de Roraima em arte.
Nesta quarta-feira (28), o grupo comemora 40 anos de uma união artística tão forte que se consolidou como o Movimento Roraimeira, um marco na cultura roraimense. Entre os louros colhidos pelo trio durante as décadas de carreira está a maior honraria dada a um artista no Brasil: a medalha da Ordem do Mérito Cultural, concedida ao trio em 2018. Hoje, eles são “cavaleiros da cultura brasileira”.
Com quatro álbuns lançados juntos, shows por todo o Brasil — na Europa também — e canções gravadas por grandes nomes da música, o trio hoje se consolida como os maiores expoentes culturais de Roraima, tendo o trabalho de exaltação ao estado refletido além da musica, nas artes plásticas, na dança e até na fotografia.
🎸 O movimento Roraimeira é o último grande movimento cultural do século 20, de acordo com a doutora pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e que pesquisa o movimento Roraimeira pela Universidade Federal de Roraima (UFRR), Cátia Monteiro Wankler.
“Hoje, graças a esse movimento, a ideia de que Roraima não tem cultura foi desmistificada. Temos uma literatura rica e diversificada, com poetas e escritores locais ganhando destaque. Artistas como Zeca, Neuber e o próprio trio Roraimeira foram fundamentais para abrir caminho para outros escritores e poetas que hoje têm suas obras publicadas e reconhecidas não só em Roraima, mas em outras partes do Brasil”, disse a pesquisadora.
Trio roraimeira se apresenta em Roraima em foto de arquivo
Jorge Macedo/Divulgação
👉 A musica composta por Zeca Preto, “Roraimeira”, que batiza o trio ficou em segundo lugar no 2º Festival de Música de Roraima em julho 1984, mas o marco inicial para o movimento foi uma apresentação no Teatro Amazonas em agosto do mesmo ano, que levou a cultura de Roraima para além das fronteiras do estado. O primeiro álbum “Roraima”, consolidando a identidade cultural nortista do trio veio apenas em 1992.
“O povo conseguiu entender a nossa mensagem. Eu conheci um homem aqui em Boa Vista, que foi pra um congresso e disse que era do Amazonas, e disse pra mim ‘Zeca, eu não vou falar que eu sou roraimense’. Passou um tempo e ele me disse ‘Poxa cara, você não imagina como eu me orgulho de ser de Roraima, vocês plantaram isso no meu coração’ eu fico muito emocionado”, relembra o cantor e compositor Zeca Preto.
O movimento rompeu fronteiras e foi parar até na Europa, em 1995, com shows na Suíça e Alemanha. Ao longo dos anos, o Trio lançou álbuns e fez apresentações, recebendo reconhecimento nacional. (Veja na linha do tempo abaixo).
Linha do tempo de 40 anos do movimento Roraimeira
Arte g1/Samantha Rufino
Valorização regional 🌅
A ideia, desde o início era exaltar as belezas da “Terra de Makunaima”. As influências vão da Semana da Arte Moderna de 1922, movimento Tropicália, Mangue Beat, de Pernambuco e até Clube da Esquina, de Minas Gerais. Além disso, ritmos caribenhos como merengue, calypso e até salsa estão presentes na sonoridade do trio.
Alguns lançados pelo Trio Roraimeira ao longo de 40 anos
Caíque Rodrigues/g1 RR
🌱 Para celebrar os 40 anos da Roraimeira o g1 conversou com Zeca Preto, Eliakin Rufino e Neuber Uchôa, com artistas influenciados pelo movimento e com pesquisadores para entender a importância cultural. Por meio de canções, citações e ensinamentos, relembramos o que, para o poeta Eliakin, foi uma “semente”.
“Essa semente do Roraimeira, que a gente plantou, hoje a gente já vê florescer, nessa juventude que curte nossas músicas e tenta entender a mensagem”, contou o poeta, escritor, cantor e compositor Eliakin Rufino.
Ao longo de quatro décadas, o movimento conseguiu superar inúmeros obstáculos, solidificando-se como uma força cultural e social de grande relevância. O que começou como uma iniciativa local em Roraima, hoje transcendeu as fronteiras do estado, alcançando reconhecimento mundial.
“Graças a Deus e os nossos esforços nós conseguimos romper os obstáculos e encontramos o nosso caminho, encontramos a identidade para um povo tão heterogêneo. O trio surgiu no momento que Roraima precisava disso”, contou o cantor e compositor Neuber Uchôa.
‘Norte forte macuxi, Roraimeira’ ☀️
Durante um grande fluxo migratório de outros estados e países por causa do garimpo, os artistas de Roraima viram a necessidade de mostrar e cantar a cultura nortista. A ideia é enaltecer as belezas naturais e a cultura dos povos originários de Roraima — trazendo a signos da tradição de indígenas de Roraima.
Fotografia tirada em 2009 na Pedra Pintada, ponto turístico de Roraima
Jorge Macedo/Divulgação
O trio Roraimeira, composto pelo paraense Zeca Preto, de 75 anos, e pelos roraimenses Neuber Uchôa, de 65, e Eliakin Rufino, de 68, surgiu como uma oportunidade de mostrar a beleza de Roraima tanto para trazer alegria para o coração do roraimense quanto para atrair turistas.
Entre os monumentos naturais destacados nas composições do trio estão pontos turísticos como a Pedra Pintada, o lago Caracaranã, além da cultura indígena e das comidas e cheiros da terra de Makunaima: damorida, xibé e até a carne seca .
Trio Roraimeira em apresentação em 2012
Jorge Macedo/Divulgação
O cantor, compositor e poeta Eliakin Rufino conta que o trio decidiu cantar as belezas de Roraima para atrair os olhos das pessoas para as “coisas bonitas”, em vez de buracos feitos pelo garimpo.
“Madeira tem que cortar, mineiro tem que cavar buraco, e não vão vir para um lugar onde está tudo desmatado […] nós decidimos que podemos ganhar dinheiro com a riqueza do subsolo, e que não é preciso cavar buraco nenhum para ganhar dinheiro. A nossa beleza natural e cultural é nosso binômio”.
Caldeirão de culturas 🫕
Mas além de exaltar Roraima e suas belezas, o trio incorporou uma “vasta e rica mistura de elementos culturais” que refletem a diversidade do estado. É o que explica a doutora Cátia Monteiro Wankler.
“São elementos como os ritmos caribenhos, batuques e influências maranhenses. Essa mistura reflete a diversidade cultural da região, que, apesar de ser vista por muitos como uma ‘miscelânea’, na verdade representa uma síntese criativa de múltiplas influências”.
Esta fusão de ritmos e estilos está longe de ser uma mera coleção de elementos distintos, pois resulta em uma identidade cultural singular que celebra as múltiplas influências presentes no estado.
“Este movimento representou uma reação local às influências culturais externas, enfatizando a necessidade de uma identidade cultural própria para Roraima”, destaca a doutora.
O trio estava presenciando essa mudança, algo que ainda não sabiam como lidar, mas que não poderiam ignorar a bagagem cultural que as pessoas estavam trazendo.
Fotografia de 2009 do Trio Roraimeira na fronteira do Brasil com a Venezuela, em Pacaraima, Norte de Roraima
Jorge Macedo/Divulgação
Segundo o cantor e compositor Neuber Uchôa “a gente não poderia virar as costas, e decidimos ‘vamos fazer uma antropofagia’ a gente não pode abrir mão do que o colonizador trouxe, porque algo bom vai vir’ […] a gente já cantava a pedra nessa época, uma hora a gente ia ter que virar de frente para essas fronteiras” disse.
O ritmo “Makunaimeira” do trio, vem justamente dessa mistura. Na música “O Que É” Zeca cita os ritmos que fazem parte do cotidiano roraimense e também cita a mistura do norte com o sul do país.
Pode ser coco, maxixe, até vanerão / Samba de roda, merengue, toada e canção / Bota farinha na cuia do teu chimarrão / Traz a paçoca pra roda do teu coração
O trio não “descobriu a roda” quando o assunto é falar de Roraima. Artistas plásticos, fotógrafos e dançarinos já retratavam o estado, mas “viraram a cara do movimento” por estarem sempre em evidência.
Para Cátia Wankler “a música atinge muito mais gente do que qualquer outra arte […] o papel do trio foi assim inominável, porque foi através deles que, apesar do movimento já existir, se lançou uma luz sobre o Roraimeira “, contou.
‘Uma nova era, lua nova’ 🌙
O marco inicial do movimento Roraimeira foi um espetáculo promovido pelo trio no Teatro Amazonas, em Manaus, no dia 28 de agosto de 1984. Esse show que envolveu música, dança e artes plásticas foi tido como o “Manifesto Roraimeira”. Após isso, o mesmo espetáculo foi replicado em Boa Vista, em outubro. De lá para cá, o movimento se consolidou como um marco na cultural roraimense, mas a história é anterior a isso.
Registro do Primeiro Festival de Música de Roraima, em 1980
Reprodução/Facebook/Trio Roraimeira
Tudo começou com uma canção, a Roraimeira, de Zeca Preto. O que iniciou como uma das mais belas canções a falar de Roraima, em pouco tempo, evoluiu para algo muito maior. Antes do marco inicial do movimento, durante festivais de música no estado, Zeca percebeu que outros artistas locais também estavam criando músicas com temáticas regionais semelhantes. Foi então que surgiu a ideia de unir forças e formar o movimento Roraimeira.
“Decidimos nos unir. Nosso primeiro show foi em agosto no Teatro Amazonas. Foi lá que tudo começou e desde então continuamos nessa estrada, fazendo muitos shows e difundindo nossa cultura”, recorda Zeca Preto.
Zeca Preto, compositor da canção ‘Roraimeira’, que dá nome ao trio e ao movimento
Caíque Rodrigues/g1 RR
A canção “Roraimeira” havia ficado em segundo lugar no “2º Festival de Música de Roraima” em 1984. Zeca relembra que a principio a música não havia sequer sido selecionada para participar do festival, mas tudo mudou quando Eliakin descobriu uma fraude no concurso — um dos selecionados tinha plagiado a obra de um amigo, o que deu espaço para a composição de Zeca brilhar.
Ele explica que o nome da música surgiu por acaso e foi uma “invenção” que “soou bonita”. A ideia era relacionar o estado com algo sagrado, por isso Zeca misturou as palavras “Roraima” com “Romaria” — o nome católico dado às peregrinações religiosas. Em 2015, a canção foi declarada “Hino cultural de Roraima” pelo governo do estado.
“Eu queria criar uma música que representasse o estado e que fosse motivo de orgulho para as pessoas. Foi então que comecei a compor a melodia, mas ainda não tinha um nome para ela. Durante o processo de composição, surgiu a palavra ‘Roraimeira’. No começo, achei estranho, mas, com o tempo, fui gostando. A música acabou ficando bem extensa, mas decidi mantê-la assim”, explica o compositor.
Capa do disco ‘Roraimeira’, lançado em 1985 por Zeca Preto
Zeca Preto/Divulgação
O espetáculo no Teatro Amazonas foi promovido com auxílio do Departamento de Cultura de Roraima, após esforços do trio — principalmente de Eliakin, que é roraimense, mas estudava filosofia à época na Universidade Federal do Amazonas (Ufam). Foi feita uma curadoria onde artistas de diferentes áreas tiveram espaço para se expressarem no famoso e histórico teatro amazônico.
Eliakin destaca que tudo isso marcou de forma inédita a cultura do extremo Norte do país. Para ele, foi um fenômeno espontâneo, sem grandes planejamentos iniciais e, por isso, é difícil falar sobre o princípio. Ele ainda pontua que o movimento foi uma reação ao contexto cultural da época, um “esforço coletivo” para destacar e preservar a identidade cultural roraimense.
“Inicialmente, era apenas o nome de uma música que acabou virando nome de show e depois nome de um movimento cultural que reunia artistas com interesse em explorar temas ligados a Roraima. O movimento valorizava a identidade local, destacando o que era próprio do estado”, explica Eliakin.
Para Neuber Uchôa, o início do movimento foi um momento histórico para a cultura do Brasil. Ele relembra que não havia no estado trabalhos artísticos que registrassem o que torna Roraima um lugar único.
“Naquele período, nós, artistas, estávamos nos reunindo e acreditávamos que estávamos criando algo totalmente novo. Foi um momento em que percebemos a importância de valorizar nossa cultura e identidade regional. Aos poucos, fomos nos consolidando como um grupo que tinha como objetivo fortalecer e divulgar a música e a arte de Roraima”, afirmou Neuber.
Cátia Monteiro Wankler destaca a grandiosidade do Roraimeira em um cenário nacional desde o seu início. Este, de acordo com ela, é considerado o último grande movimento cultural do século passado, seguindo a linha dos movimentos modernistas iniciados em 1922. O surgimento do Roraimeira foi uma resposta direta às mudanças demográficas e culturais que afetavam Roraima na década de 1980.
“O movimento surgiu como uma resposta à ameaça percebida à identidade cultural de Roraima, especialmente na década de 1980, quando o estado foi inundado por pessoas de outras partes do Brasil. O Roraimeira representou um esforço consciente para proteger e promover a cultura local em meio a essa mudança demográfica”, explica a doutora.
A migração de pessoas de outras regiões do país trouxe também novas culturas e valores, desafiando a identidade local, o que motivou a criação de um movimento que buscasse preservar e valorizar a cultura de Roraima. Além de seu impacto artístico, o Roraimeira tem um profundo significado cultural e histórico.
“O Roraimeira é significativo não apenas como um movimento artístico, mas também como uma manifestação de resistência cultural. Ele destacou a importância de reconhecer e valorizar as influências externas enquanto se preserva a identidade cultural única de Roraima”, afirma Cátia.
‘Estou aqui pra dizer que canto pra minha aldeia’ 🌬️
Além da música “Roraimeira”, outras músicas marcaram a trajetória do trio. É quase impossível encontrar em Roraima alguém que não cante letra de “Makunaimando”, composição de Zeca Preto com Neuber Uchôa, que é considerada praticamente um hino do estado. Na letra, a dupla lista símbolos e signos marcantes do estado.
“Um boto cantando no rio / beiju de caboco no cio / parixara na roda de abril, se abriu / linha fina no meu jandiá / carne seca, xibé, aluá / jiquitaia, caxiri, taperebá”, canta a dupla na icônica canção.
Zeca Preto e Neuber Uchôa em 1988 em foto tirada em um campo de árvores Caimbé para o album de mesmo nome
Wank Carmo/Divulgação
Outro marco do movimento é o poema “Cavalo Selvagem”, de Eliakin Rufino, publicado em dezembro de 1992, onde o poeta se coloca na posição deste animal marcante do lavrado roraimense. Em 2008, tanto a música “Roraimeira” quanto “Cavalo Selvagem” foram tombados como patrimônios culturais de Roraima.
“Os cavalos chegaram a Roraima há 225 anos, em 1789, trazidos para as fazendas reais da coroa portuguesa. Quando a república foi proclamada em 1889, as fazendas foram saqueadas e os cavalos abandonados. Esses cavalos começaram uma vida livre nas savanas, e é sobre essa liberdade que escrevi o poema ‘Cavalo Selvagem'”.
Eliakin Rufino com o álbum ‘Roraima’, de 1992
Caíque Rodrigues/g1 RR
“A paisagem do Lavrado é única em Roraima, e o poema reflete essa singularidade. Comecei a declamar ‘Cavalo Selvagem’ em shows a partir de 1991. Lembro-me de um show em que abrimos com esse poema, e a reação do público foi incrível”, relembra o poeta Eliakin.
Para Cátia Monteiro, Cavelo Selvagem é um dos símbolos da Roraimeira e uma das obras mais relevantes do movimento.
“Cavalo Selvagem é um clássico. Cavalo Selvagem diz muito ‘eu sou o Cavalo Selvagem, não aceito cela’. Ele tá falando dos povos daqui de quem nasceu aqui, dos indígenas que nasceram aqui. Que querem continuar assim, cavalos selvagens, não querem ser dominados porque vem de fora por quem não é Cavalo Selvagem”.
Outro hit presente no consciente do roraimense é a canção “Cidade do Campo”, com letra de Eliakin e música por Armando de Paula. A obra é uma homenagem afetiva à capital roraimense, Boa Vista. O que poucos sabem é que a música foi feita para homenagear ao centenário da cidade e foi feita na mesma época em que Eliakin compôs o hino da capital.
A música foi um sucesso na voz do interprete Halisson Crystian, em 1998, e foi responsável por apelidar Boa Vista como a eterna “cidade do campo”.
Eliakin Rufino em 2009 na Pedra Pintada, sítio arqueológico famoso em Roraima
Jorge Macedo/Divulgação
“Em 1990, Boa Vista comemorou seu centenário, e o prefeito da época organizou dois concursos: um para criar o hino oficial da cidade e outro para músicas em homenagem ao centenário. Participei desse festival com a música ‘Cidade do Campo’, em parceria com Armando, e ganhei. A música foi um sucesso na voz de Alisson, mas só foi gravada em 1998, permanecendo anos no limbo”.
Cidade do campo, beira-rio / Estrela do Norte do Brasil / Cidade do campo entardecer / Boa Vista linda de se ver
Neuber Uchôa, compositor da música ‘Cruviana’ e membro do Trio Roraimeira
Jorge Macedo/Divulgação
Não dá para falar de Roraimeira sem falar em uma das principais músicas do movimento. “Cruviana” é composição de Neuber Uchôa e foi lançada em 1992. Na boca do povo roraimense desde o seu lançamento, a canção fala sobre o orgulho nortista.
Para Neuber, “Cruviana” é como se fosse o “Trabalho de Conclusão de Curso” do compositor. Para ele, foi um dos momentos “mais incríveis da minha vida como compositor”. A letra é conta com versos iniciados em pronomes possessivos no início de cada frase.
“‘Cruviana’ nasce em um momento em que estávamos descobrindo o que tínhamos em mãos; já não era mais uma batata quente, já sabíamos o que estávamos fazendo. Todos nós fizemos obras nesse período, e eu compus ‘Cruviana’ nesse contexto. A música surgiu quando eu quis dizer que sou o cio da tribo”.
“Meu chibé com carne seca te provoca / Minha damorida queima e te ensopa / Teu café na rede, mi capitiana / Tua tez me cruviana”.
Neuber Uchôa, artista roraimense membro do Trio Roraimeira
Rayane Lima/g1 RR
‘Voa meu pensamento sobre o Monte Roraima’ ⛰️
Com 40 anos de história, o movimento Roraimeira continua a ser um pilar da identidade cultural de Roraima, inspirando novos artistas e reforçando a importância da preservação das tradições locais. As vozes dos artistas de Roraima ecoam a influência e o impacto da mensagem de valorização regional. O g1 também ouviu artistas influenciados pela arte makunaimeira, entre eles a cantora e compositora Milena Makuxi.
Com 24 anos, a artista, como o nome já diz, de origem indígena macuxi, destaca o papel crucial do movimento na valorização das culturas dos povos originários, mesmo que o trio principal não seja indígena. Para ela, ver os símbolos e o dialeto indígena sendo destaque positivo em músicas foi uma importante fonte de inspiração para artistas das comunidades roraimenses, como ela.
Milena Makuxi, artista roraimense de destaque na cena
Fernanda Sales/Reprodução
A música de Milena funde ritmos como o reggae, MPB e carimbó com cantos tradicionais indígenas e é um reflexo dessa fusão cultural. Milena enxerga o movimento como uma força de resgate, essencial para a preservação da cultura de Roraima.
“O Roraimeira abriu portas para que nós, artistas indígenas, pudéssemos expressar nossa identidade cultural e ancestralidade de uma forma que nunca antes havia sido possível. Hoje, nós falamos e cantamos por nós e isso é bonito. O movimento é mais do que uma expressão artística, é um movimento de resgate e afirmação da nossa diversidade cultural”, disse a artista.
O impacto do Roraimeira é multifacetado e profundo, como destaca o cantor e compositor Hugo Pereira. Membro fundador de bandas importantes para a cena cultural atual de Roraima, como Jamrock e Bodó Valorizado, ele afirma que o movimento trouxe mais do que uma simples expressão musical; trouxe um “direcionamento” e uma “linha de pensamento” que transcendem a música, abrangendo um posicionamento político e ideológico.
Hugo Pereira, músico, cantor e compositor roraimense
Divulgação/Hugo Pereira
“O Roraimeira não é só música, é um jeito de ver o mundo, de entender nossa identidade em Roraima. Até mesmo quando não temos a intenção de seguir essa linha, acabamos sendo influenciados por ela, porque faz parte de quem somos,” diz o artista, evidenciando como o movimento permeia o cotidiano dos músicos e artistas locais.
A cantora e compositora Euterpe também expressa a importância do movimento na construção da identidade cultural de Roraima. Na visão dela, o Roraimeira não só enriqueceu a cena musical, mas também todas as formas de arte no estado.
Euterpe, cantora e compositora roraimense
Reprodução/Instagram/Euterpe
“O movimento nos ensinou a valorizar nossos costumes, nossa linguagem, nosso dia a dia. Hoje, temos uma identidade que nos diferencia e nos faz ser reconhecidos nacionalmente,” diz Euterpe.
Roraimeira: 40 anos da ‘Regionalíssima Trindade’ 🌴
Trio Roraimeira em foto de divulgação para álbum de 2009
Jorge Macedo/Divulgação
Durante as quatro décadas de carreira o trio viveu muitos momentos especiais e importante para o movimento, como em 1996 e 1998, quando o Roraimeira se apresentou na Suíça e na Alemanha, levando a cultura Roraimense para a Europa.
Neuber Uchoa, que se apresentou na Alemanha junto com Zeca preto, contou que a maior realização foi cantar músicas autorais em outro país.
“A maioria dos brasileiros vão para fora para cantar samba ninguém é doido de não fazer isso, só a gente. A visão lá fora é samba, é futebol. Mas gente insistia na história, grande mérito do movimento é esse, e a gente tem insistido encantar nossas músicas”.
E no Brasil, o trio se apresentou no Rio de Janeiro a convite do cantor e compositor Nilson Chaves, e também em em Curitiba na Caixa Cultural, além da turnê que fizeram pelo Norte do país.
“Não, nada de Rio, São Paulo não, primeiro coletar por aqui. Nós fomos em todos os lugares da Amazônia Legal, fizemos várias vezes shows em Macapá, Amazonas […] sempre foi uma recepção fantástica, mas eu acho que os melhores mesmo foram no Amapá”, disse o poeta Eliakin.
Zeca, Eliakin e Neuber lançaram quatro álbuns do Roraimeira, o primeiro “Roraima”, foi lançado em 1992. Já o segundo, “O Canto De Roraima e Suas Influências Indígenas e Caribenhas” foi o primeiro álbum gravado ao vivo em Roraima, em 2000.
E mesmo em carreira solo nos anos 2000, o trio continuou se reunindo em momentos especiais, como em 2009 na gravação do terceiro álbum “Roraimeira – O Canto De Roraima” que celebra os 25 anos do Roraimeira.
E também na gravação do álbum “Show Roraimeira 30 anos” que foi gravado ao vivo no auditório do Centro Amazônico de Fronteiras da Universidade Federal de Roraima (CAF/UFRR).
Medalha da Ordem do Mérito Cultural, recebida pelo Trio Roraimeira em 2018
Caíque Rodrigues/g1 RR
A “regionalíssima trindade” também conquistou a maior honraria dada a um artista no Brasil: a medalha da Ordem do Mérito Cultural, em 2018. Junto ao Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro e o Museu de Arte de São Paulo (Masp), Zeca, Eliakin e Neuber se tornaram cavaleiros da cultura brasileira.
“Nós somos cavaleiros da Ordem do Medo cultural, que é o maior prêmio dado no Brasil de reconhecimento. E isso pra gente foi legal, porque a gente tá aqui no extremo norte, nós somos os primeiros na área da cultura” disse Eliakin.
Além de shows na Europa, honrarias e shows em festivais, o trio também teve músicas regravadas por artistas nacionais, como Gaby Amarantos, que regravou “Pimenta com Sal”, uma composição de Eliakin Rufino.
“Hoje tem mais de 10 gravações nessa minha música […] A Lucinha Bastos lançou um CD chamado Pimenta com Sal, e a musica estoura em Belém, e a Gaby diz ‘Po, essa música é boa, quero gravar de quem é?”, contou o poeta.
Gaby Amarantos e Fernanda Takai cantam juntas no Altas Horas
Gaby Amarantos então chamou a cantora Fernanda Takai, já que “são uma preta e uma branca de mãos dadas na praia”.
“Gaby Amarantos e Fernanda Takai foram para o Altas Horas, e a música começou a ter uma repercussão incrível”, relembra Eliakin.
Em 2024, quando o Roraimeira completa 40 anos, o trio fez shows no São João do Anauá, no Sesc-RR e também vai se apresentar no palco do Teatro Municipal, durante o festival Mormaço Cultural.
Trio Roraimeira em meio às bandeiras do Brasil com a Venezuela
Jorge Macedo/Divulgação
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