21 de janeiro de 2025

Carnaval de rua no Rio: excesso de burocracia e regras para patrocínios afastam blocos da legalidade


Número de blocos ‘clandestinos’ aumenta, enquanto blocos tradicionais anunciam que vão deixar a festa pela dificuldade de organização. Lista com mais de 20 exigências pede, por exemplo, esquema com rota de fuga e largura das portas para blocos que desfilam ou se apresentam nas ruas da cidade. Blocos reclamam de lista de exigências pedidas pela Prefeitura do Rio
Burocracia em excesso, produtores insatisfeitos, blocos tradicionais encerrando suas atividades e o aumento de desfiles não oficiais. Essa é a atual realidade da produção do carnaval de rua do Rio de Janeiro. Pelo menos, é a sensação de muitos responsáveis por colocarem os blocos nas ruas.
Uma pesquisa feita pela associação Coreto, que representa 40 blocos do Rio, mostrou que 71% dos responsáveis pelos blocos do coletivo consideram o processo de produção do carnaval de rua do Rio regular, ruim ou péssimo.
Apenas 12% dos produtores culturais classificaram o processo implementado pela Riotur como “bom”. Nenhum deles disse que o esquema atual é “ótimo”.
Segundo o Coreto, os principais problemas na organização do carnaval de rua são: dificuldade de financiamento e liberação dos bombeiros.
Só a lista de exigências do Corpo de Bombeiros para autorizar o desfile dos blocos conta com quase 20 itens, entre eles a necessidade de um projeto, assinado por um engenheiro ou arquiteto, com rota de fuga e a medida de largura das portas para blocos que desfilam ou se apresentam nas ruas da cidade.
Segundo a corporação, as exigências são importantes para garantir a segurança do carnaval de rua e para “proteger o cidadão no que tange a questões relacionadas a incêndio e pânico”. (Leia a nota completa no fim da reportagem).
“Existe uma exaustão dos blocos de carnaval no Rio. É um processo muito burocrático. Não houve evolução. No passado, há uns 10 anos, era bem mais simplificado”, disse Isabela Dantas, presidente do Bloco Dinos e diretora do Coreto.
Carnaval de rua no Rio
Divulgação Riotur
Segundo Isabela Dantas, é importante que as autoridades tenham o controle. Contudo, ela avalia que a quantidade de exigências é grande e o processo descentralizado torna a vida dos produtores quase uma “gincana”.
“Ninguém está questionando a necessidade de documentos, de organização. Não é isso. Mas poderia ser uma forma melhor, mais organizado. O processo poderia ser centralizado em um único órgão. Os fornecedores, como carros de som, poderiam ser cadastrados. (…) não é razoável que isso seja assim para todos os blocos da cidade”.
“Hoje o cenário é de total desestímulo, aliado à questão financeira, leva os blocos a total exaustão”, completou Dantas.
Para a diretora do Coreto, que conta com mais 40 agremiações, o modelo atual para autorização dos desfiles afasta os organizadores e empurra os blocos para a clandestinidade.
Isabela acredita que o importante agora é que todos os envolvidos (blocos, prefeitura e órgãos de segurança) possam conversar para melhorar o processo para o próximo ano.
“Aumentar as exigências cria uma situação em que os blocos entram em uma exaustão, estão cansados, não têm dinheiro. Cria um cenário onde os blocos se sentem desestimulados a estarem no sistema oficial”, comentou Isabela.
Bloco Escangalha
Gustavo Stephan | Riotur
Rita Fernandes, presidente da Associação Independente dos Blocos de Carnaval de Rua da Zona Sul, Santa Teresa e Centro (Sebastiana), concorda com as críticas ao modelo atual. Para ela, o sucesso do carnaval de rua no Rio não é percebido na experiência de quem faz a festa acontecer e organiza os desfiles.
“Quando você chega no excesso de regulamento você abre exatamente para o não oficial. Isso porque chega um momento que é completamente impossível atender o nível de exigências”, comentou Rita.
Na opinião da especialista e estudiosa do carnaval, a prefeitura deveria montar um conjunto de regras diferente para cada tipo de bloco.
“Nós estamos falando que temos um carnaval tão diverso, tão plural, com tantas variações de tipos de blocos, que a prefeitura precisa entender o que está acontecendo na cidade, para que a regulamentação seja adequada aquilo que te fato acontece”, sugeriu Rita.
João Aveleira, organizador do Suvaco do Cristo, bloco com quase 40 anos de carnaval e que anunciou o fim de suas atividades para 2026, a burocracia é a principal barreira.
“A agente entende que tem que ter uma organização. A dosagem dessa história é que não tá bem-feita”, comentou Aveleira.
‘Gincana’ da burocracia
Para colocar o bloco na rua, os organizadores precisam, primeiro, se inscrever na Riotur e dali partem para uma longa lista de exigências. A maior delas é a do Corpo de Bombeiros. Veja alguns itens:
Planta com layout do evento indicando as saídas de emergência, larguras das portas e corredores, lotação estimada e localização de postos médicos, no padrão ABNT, assinada por engenheiro ou arquiteto;
Cópia da ART ou RRT, emitida por Crea/RJ ou CAU/RJ, atestando os seguintes serviços:
1) referente aos serviços de distribuição de energia elétrica de baixa tensão ou iluminação (se tiver)
2) referente aos grupos de geradores (se tiver)
3) referente à montagem da estrutura do trio (se for o caso)
4) referente ao teste de carga do trio e memorial descritivo conclusivo aprovando as estruturas, com fotos dos veículos
5) referente à ignifugação com o seguinte texto “o evento atende às especificações de controle de materiais de acabamento e revestimento, conforme a Nota Técnica CBMERJ;
Projeto de cada trio elétrico, com a localização de cada gerador, em escala ou cotadas, no padrão da ABNT, assinado por engenheiro ou arquiteto, devendo constar indicação de saídas de emergência e localização de posto médico;
Cópia da CRLV do veículo (trio ou carro de som) e cópia da carteira de habilitação do condutor durante o evento – indicando o motorista de cada veículo, quando mais de um;
Fotos de frente e da lateral de cada um dos veículos (carro de som ou trio elétrico);
Cópia do contrato de prestação de serviço de bombeiros civil (com empresa credenciada com o CBMERJ);
Declaração do Responsável Legal pelo evento (representante do bloco) atestando que se responsabiliza pelo projeto apresentado, pela montagem de todas as estruturas e conformidade de todos os equipamentos nelas constantes.
Além dos documentos pedidos pelos Bombeiros, tem mais exigências da Policia Militar e outros pedidos da Polícia Civil.
Dificuldade para fechar patrocínios
A infraestrutura de banheiros químicos, grades, ambulância, limpeza, policiamento é fornecida pela Prefeitura do Rio, o Governo do Estado e os patrocinadores do evento.
Porém, apesar do município fechar contratos de patrocínio para todos os desfiles antes e durante o carnaval, os blocos não recebem ajuda em dinheiro. Eles precisam buscar apoio para colocar a festa de pé.
E é nesse momento que surge mais um problema. As associações dizem que não estão conseguindo mais patrocínio por conta de barreiras que existem no contrato dos patrocinadores oficiais com o município.
“A prefeitura tem seus patrocinadores oficiais e impede que outros patrocinadores patrocinem individualmente os blocos. (…) No carnaval de 2024, todas as empresas que escolheram patrocinar os blocos, mas que não eram oficiais, foram multadas. Então, isso criou um gargalo que as empresas não querem mais patrocinar os blocos de rua”, explicou Rita Fernandes.
Regras mais rígidas
Desde 2010, a Dream Factory é a empresa responsável pela produção do carnaval de rua do Rio de Janeiro. A última licitação que a empresa venceu, em 2024, também garantiu a produção dos carnavais de 2025 e 2026.
Bloco do Barbas toma as ruas de Botafogo
Eduardo Pierre / g1 Rio
A Dream Factory fica responsável pela infraestrutura da festa, da instalação de banheiros químicos até a decoração, passando pelo cercamento de canteiros, cadastro de ambulantes e montagem de outras estruturas. Veja todos os itens estabelecidos no contrato.
Sanitários;
Postos médicos;
Ambulância;
Maqueiro;
Inscrição de promotores de venda;
Coleta seletiva;
Proteção de canteiros e monumentos;
Controladores de tráfego;
Sinalização e equipamento de orientação viária;
Painel de mídia variada;
Utilização de mecanismo de informação turística;
Programação visual da cidade.
Um dos pontos mais polêmicos do caderno de encargo é em relação aos patrocinadores do evento. A prefeitura entende que o carnaval é um evento que custa caro e pertence a cidade. Por conta disso, as áreas públicas devem ser “vendidas” pelo município para os patrocinadores do carnaval de rua como um todo.
Contudo, essa lógica esbarra no planejamento de muitos blocos de bairros, que contam com pequenos patrocinadores, muitas vezes do comércio local, para pagarem seus gastos com carro de som, músicos etc.
Duda Magalhães, presidente da Dream Factory, explicou ano passado que os organizadores de blocos estão autorizados a colocarem suas marcas nos carros de som, em suas camisetas e em espaços privados. Contudo, segundo ele, todo local público deve ser respeitado.
“É legitimo para o bloco o direito de citar seu próprio patrocinador, o direito de colocar a marca do seu apoiador na sua roupa, eventualmente a marca naquele carro de som etc. Até aí são exemplos relativamente simples e fáceis de a gente entender. O que fica cinzento é quando isso vai para a rua. Aí não é necessariamente um espaço do bloco. É um espaço da cidade do Rio de Janeiro, que decide entregar como contrapartida ao investidor patrocinador para prover aqueles itens do caderno de encargos”, explicou Magalhães.
Foliã vidente se diverte no Bloco Areia
Gustavo Stephan /Riotur
Bernardo Fellows, presidente da Riotur, afirmou ao RJ2 que vai chamar os blocos para explicar como eles poderão fechar contrato de patrocinadores próprios.
“Os patrocínios podem sim ser diferentes dos patrocínios do caderno de encargos. Podem ter patrocínio na zona deles (blocos). Só que tem regras. Se não estão claras, a gente vai chamar os blocos para explicar melhor”, disse Fellows.
Exemplo de São Paulo
Para os organizadores, toda a burocracia envolvendo as várias autorizações necessárias para um desfile acontecer deveriam ser cumpridas pela prefeitura. Segundo eles, uma saída poderia ser copiar o modelo feito no carnaval de São Paulo.
O coordenador do Fórum de Blocos de São Paulo, José Cury, disse que lá os blocos só precisam da autorização de um órgão, a prefeitura.
“Uma vez autorizado pela prefeitura, essa inscrição vale como todos os documentos que nós precisamos junto aos órgãos públicos”, explicou Cury.
Sobre as regras para os patrocinadores individuais dos blocos paulistas, o coordenador comentou que todos podem ter seus próprios acordos de patrocínio.
“Eu posso ser patrocinado por quem eu quiser. Até uma marca concorrente”, completou.
Blocos tradicionais desistem da folia
O bloco Imprensa Que Eu Gamo, que completa 30 anos em 2025, anunciou que fará seu último desfile no carnaval desse ano. O grupo que sai pelas ruas de Laranjeiras, na Zona Sul, se junta aos tradicionais Escravos da Mauá, do Centro, e o Bloco de Segunda, do Humaitá, que encerraram suas atividades em 2022 e 2023, respectivamente.
Foliões se divertem no Imprensa Que Eu Gamo, em Laranjeiras, no Rio
Raphael Dias/Riotur/Divulgação
Além desses, o Suvaco do Cristo, do Jardim Botânico, também na Zona Sul, confirmou que 2026 será seu último desfile de carnaval. O bloco foi fundado em 1986.
Os quatro blocos, todos com 30 anos ou mais, representam o período da retomada do carnaval de rua no Rio de Janeiro. Todos eles participaram ativamente da história cultural da cidade e arrastaram milhões de pessoas ao longo dos anos.
Os motivos para o fim desses blocos passam por: alto custo do carnaval, excesso de burocracia, falta de pessoas na organização, mudança de público e o desgaste do formato de desfile.
Em 2023, o g1 mostrou que os organizadores dos blocos de rua do Rio já reclamavam da grande burocracia para organizar um desfile de carnaval. Na época, os responsáveis já ameaçavam seguir para a clandestinidade.
Carnaval não oficial ganha força
Se de um lado vários blocos tradicionais estão deixando de organizar seus desfiles, outros tantos estão tomando conta das ruas do Rio antes e durante o carnaval. Contudo, nem todos os novos blocos fazem parte da lista oficial da folia carioca.
Bloco O Baile Todo – Buraco do Lume
Thaís Espírito Santo / g1
Com muitos blocos ainda buscando fechar suas listas de exigências para conseguirem a tão sonhada autorização, os blocos “clandestinos” ou não oficiais já estão em clima de carnaval.
Uma prova disso, foi o primeiro fim de semana de 2025, quando a organização Desliga dos Blocos colocou cerca de 30 blocos na abertura ‘não oficial’ do Carnaval do Rio.
Além desse evento, a percepção de todos que fazem parte desse setor é comum. Todos concordam que a cada ano que passa o número de desfiles não oficiais vai aumentando.
“O carnaval é dinâmico, muda o tempo todo. Tem que deixar a festa tomar seu próprio formato. O erro é querer engessar o formato. O carnaval de rua tem que ser muito espontâneo e orgânico. Os blocos vão encontrar seus formatos na própria rua”, disse Rita Fernandes.
“É o velho paradigma do carnaval. O que é fluído e o que é livre, contra o controle, que naturalmente acaba acontecendo pelos órgãos da cidade e da própria organização social”, finaliza Rita.
O que dizem os citados
Em nota, a Riotur informou que o cronograma de cadastro preliminar dos blocos de rua para o carnaval 2025 seguiu o calendário previsto.
“Os blocos de rua interessados em desfilar, obtiveram retorno ainda em outubro de 2024, permitindo a busca pelo nada a opor dos órgãos estaduais, com três meses de antecedência.
Vale ressaltar que cabe a Riotur, o alinhamento operacional com os órgãos públicos municipais, gradeamento de praças e monumentos, colocação de banheiros químicos, e fornecimento de insumos para limpeza urbana, entre outras estruturas, conforme previsto no caderno de encargos.
Ressaltamos a necessidade da regulamentação dos blocos para garantir a tranquilidade e conforto aos foliões.
A Riotur destaca ainda que toda a infraestrutura mobilizada para que não haja alteração na dinâmica da cidade, é feita por meio de uma organização prévia de todos os órgãos públicos envolvidos no evento.
Por fim, a Riotur esclarece que sempre estabeleceu um canal direto com as ligas e blocos que compõem o carnaval de rua”.
Já o Corpo de Bombeiros disse ao g1 que trabalha para garantir a segurança do carnaval de rua do Rio de Janeiro.
“Tudo que é possível para facilitar a regularização dos blocos vem sendo feito, ao longo dos últimos anos. Seis meses antes do Carnaval, o CBMERJ lançou uma cartilha on-line, que está disponível no site da corporação, para orientar os organizadores e responsáveis sobre a importância da legalização e cumprimento das normas de segurança para eventos de reunião de público.
No caso do carnaval de rua, o Corpo de Bombeiros já trabalha há anos com a simplificação da regularização. Blocos que não preveem de infraestrutura física, como arquibancadas e arenas, carros de som ou trios elétricos estão isentos de regularização junto à corporação.
As exigências recaem apenas sobre blocos que possuem essas estruturas em sua característica. O objetivo é evitar, por exemplo, riscos de descargas elétricas, atropelamentos, desmoronamento de estruturas, além de assegurar a existência de postos médicos e ambulâncias para o primeiro atendimento em caso de emergências.
Reforçamos que estamos à disposição para esclarecimentos, consultorias técnicas e reuniões, o ano todo”.

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