1 de janeiro de 2025

Como a ciência descobriu os primeiros ‘brasileiros’ com a ajuda de rochas

Na coluna desta semana, Luciano Lima viaja no tempo para explicar quais foram os primeiros organismos vivos a existir em nosso país e como eles puderam ser encontrados. Rochas de estromatolitos na lagoa salgada, no Rio de Janeiro
J Honório Freire / Wikipedia
Você conseguiria imaginar como era o planeta há aproximadamente 20 mil anos atrás? Dentre rochas e outros matérias inorgânicas, o Brasil contava com alguns organismos vivos que conseguiram preservar sua existência até os dias atuais. Descubra quem são eles na História Natural desta semana, coluna escrita pelo biólogo do Terra da Gente, Luciano Lima.
Até hoje muitos estudantes aprendem na escola que o Brasil foi “descoberto” pelos europeus em abril 1500, palavra que da entender que não existiam outros seres humanos no território brasileiro quando Pedro Álvares Cabral e sua frota aqui aportaram. O que é claramente um engano, já que os próprios portugueses, na carta de Pero Vaz de Caminha, relatam a presença de povos indígenas no Brasil.
Voltando um pouco mais no tempo, Luzia, o fóssil humano mais antigo do Brasil e da América do Sul, encontrado bem próximo onde hoje é Belo Horizonte, tem idade estimada entre 12,5 e 13 mil anos antes do presente.
Outras evidências arqueológicas e também evidências genéticas apontam para uma ocupação do Brasil bem mais antiga, que pode chegar, e até mesmo ultrapassar os 20 mil anos. Ou seja, é inquestionável o fato de que pessoas já habitavam nosso território em uma época muito anterior a Raul Seixas, autor da canção “Eu nasci há dez mil anos atrás”.
Histórias Naturais é a coluna semanal do biólogo Luciano Lima no Terra da Gente
Arte/TG
Brincadeiras à parte, não por acaso, historiadores cada vez mais têm utilizado a palavra “invasão”, e não “descobrimento”, para se referir a chegada dos europeus na América. Mas deixando um pouco o antropocentrismo de lado, considerando os seres vivos como um todo, você já parou para pensar quem foram os primeiros “brasileiros”?
É fascinante pensar que um biólogo viajante do tempo seria capaz de registrar os primeiros seres vivos a colonizar algum pedaço do território brasileiro. Para responder essa questão, já que nós sabemos para “onde” vamos – o terrítório brasileiro -, falta configurarmos na nossa máquina do tempo o “quando”, ou seja, o quanto no passado precisamos viajar para encontrar o primeiro ser vivo do Brasil.
Pistas nas rochas
Embora a Terra tenha sido formada há cerca de 4,5 bilhões de anos, as rochas mais antigas conhecidas até o momento no território brasileiro são mais “novas”, possuem 3,6 bilhões de anos.
Descritas em 2022, elas estão localizadas na Chapada Diamantina, na Bahia, no chamado cráton São Francisco. Crátons são grandes regiões diferenciadas da maior parte da crosta terrestre, onde a crosta é mais espessas e, por isso, têm grande resistência mecânica e estabilidade geológica. São pedaços da crosta terreste que atravessaram e resistiram ao tempo, testemunhos de eras longínquas.
Além das rochas mais antigas do planeta, como seria de se esperar, é também nos crátons que estão os primeiros sinais da existência de vida na Terra. Algumas pistas apontam para existência de vida em rochas da Groenlândia com cerca de 3,8 bilhões de anos, mas essas e outras descobertas estão sujeitas há certo grau de interpretação e com frequência são questionadas.
Os fósseis mais antigos conhecidos sem maiores controvérsia possuem cerca de 3,4 bilhões de anos atrás, e foram encontrados no Cráton Pilbara, localizado no oeste da Austrália.
Ou seja, as rochas mais antigas encontradas no Brasil são praticamente contemporâneas as primeiras evidências mais robustas da existência vida no planeta Terra. Mas que tipo de vida seria essa? A resposta é curta, mas praticamente um trava lingua: estromatólitos.
Estromatólito moderno em Sharkbay, na Austrália
Paul Harrison / Wikipedia
‘Prédios’ feitos por microorganismos
Apesar do nome complicado, estromatólitos são como pequenos “prédios” construídos por microorganismos (principalmente cianobactérias). Através de secreção de substâncias adesivas, comunidades de microorganismos “cimentam” areia e outros materiais rochosos em camadas, que vão se sobrepondo umas as outras, formandos estruturas com formato cônico ou colunar parecido com o das rochas.
Estromatólitos podem se fossilizar de diferentes maneiras e preservar não apenas a estrutura formada pelas cianobactérias, como as próprias cianobactérias.
Embora cerca de um bilhão de anos mais novos que os estromatólitos fósseis do cráton Pilbara, na Austrália, os fósseis mais antigos conhecidos no Brasil são também estromatólitos. Com 2,4 bilhões de anos de idade e fossilizados em rochas da região do Quadrilátero Ferrífero de Minas Gerais, são os fósseis mais antigos conhecidos na América do Sul.
Como sabemos que estromatólitos só se desenvolvem em água muito rasa, pois as cianobacterias precisam de luz para realizar a fotossíntese, podemos admitir que os estromatólitos habitaram regiões bem próximo à terra firme e não no fundo de algum oceano primitivo.
Assim, os estromatólitos mineiros são a mais antiga comprovação de vida em um pedaço da crosta terrestre que junto com outros pedaços da crosta, bilhões de anos no futuro, seria batizado por uma espécie de primata de ” Brasil”.
Estromatólitos do Lago Thetis, na Austrália Ocidental
Ruth Ellison
Certamente, seres mais antigos que não foram fossilizados ou que foram fossilizados, mas ainda não descobertos, habitaram alguma porção ancestral do atual território brasileiro. Mas, considerando o que sabemos sobre a evolução da vida na Terra, nada muito diferente de estromatólitos existiu antes de 2,4 bilhões de anos, ou seja, é muito provável que alguma cianobactéria ou outro microorganismo construtor de estromatólitos tenha sido o primeiro “brasileiro”.
Se você mora na cidade de São Paulo e quiser ver com seus próprio olhos vestígios bem parecidos com os primeiros brasileiros basta ir ao shopping. Isso mesmo, ao shopping.
Os mármores que formam os pisos de alguns shoppings bem conhecidos em São Paulo como o Shopping Eldorado e o Shopping Ibirapuera, tem origem em uma pedreira próximo a Ouro Preto e caminhando por esses shoppings é possível ver muito nitidamente no piso resquícios de estromatólitos com mais de 2 bilhões de anos!
Mas se não se contentar com fósseis e quiser ver estromatólitos ao vivo e a cores, você pode visitar a Lagoa Salgada, localizada no município de Campos dos Goytacazes, no norte do Rio de Janeiro. A laguna hipersalina é um dos poucos lugares no planeta onde ainda podem ser encontrados estromatólitos “vivos”. Eu já fui lá e confesso que chorei ao olhar o que pra muita gente parece apenas “pedras esquisitas” nas margens de uma laguna.
Talvez o esquisito seja eu, mas é emocionante pensar que organismos praticamente idênticos aos primeiros seres vivos que existiram no Brasil há bilhões de anos atrás ainda continuam entre nós. O país da biodiversidade é uma nação de aves, borboletas, mamíferos, besouros, peixes, mas antes de mais nada, é também é um país de cianobactérias e seus estromatólitos.
*Luciano Lima é ornitólogo e faz parte da equipe do Terra da Gente
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