4 de março de 2025

Como a violência pode alterar os genes por gerações


Estudo ofereceu a primeira evidência humana de um fenômeno documentado apenas em animais Em 1982, o governo sírio sitiou a cidade de Hama e matou dezenas de milhares de seus cidadãos. O ataque ajudou a manter acesa a chama da revolta contra o ditador Bashar al-Assad, mas teve um outro efeito colateral que ficou guardado nos genes das famílias. Os netos de mulheres que estavam grávidas na época – e que não viveram o horror dos seus antepassados – apresentavam marcas desse estresse em seu genoma. O estudo dessa “herança” ofereceu a primeira evidência humana de um fenômeno documentado apenas em animais.
Crianças refugiadas: descendentes de pessoas que viveram traumas apresentam marcas desse estresse em seu genoma
Zachtleven para Pixabay
Nosso material genético, ou seja, nosso DNA, não se modifica por causa das experiências que enfrentamos. No entanto, os fenômenos epigenéticos são aqueles nos quais ocorrem alterações do DNA que, embora não mudem a sequência dos genes com os quais nascemos, afetam sua atividade.
Em resposta ao estresse e a outros eventos traumáticos, nossas células podem acrescentar pequenos sinais químicos (chamados de “small chemical flags”) aos genes, que são capazes de alterar seu comportamento. São reações de nomes complicados, como metilação do DNA, modificação de histonas (proteínas em torno das quais o DNA se enrola), ou RNA não codificante, que interferem no código das células do indivíduo, mas sem afetar os genes por meio de mutações. O resultado é uma transmissão de características adquiridas ao longo das gerações.
Connie Mulligan, professora de antropologia no Instituto de Genética da Universidade da Flórida e autora principal do estudo, trabalhou com Rana Dajani, bióloga molecular da Universidade Hashemite, na Jordânia, e com a antropóloga Catherine Panter-Brick, de Yale. A pesquisa acompanhou três gerações de imigrantes sírios. Algumas famílias tinham sobrevivido ao ataque a Hama antes de fugir para a Jordânia. Outras, apesar de não vivenciar o sofrimento em Hama, haviam enfrentado a recente guerra civil que derrubou o regime de Assad.
As pesquisadoras buscavam “tell-tale chemical flags”, o equivalente a “sinais reveladores de modificações químicas”, nas famílias sírias. Enquanto análises laboratoriais mostravam que animais conseguiam transmitir assinaturas epigenéticas de estresse para as gerações seguintes, levantamento semelhante em seres humanos parecia uma missão impossível. Foram coletadas amostras de avós e mães que estavam grávidas durante os dois conflitos, assim como de seus descendentes. Todos tinham experimentado a violência em diferentes estágios do seu desenvolvimento. Um terceiro contingente, que havia imigrado para a Jordânia antes de 1980, funcionou como um grupo de controle para ser comparado com os demais.
Dajani, ela própria filha de refugiados, desenvolveu uma relação de confiança com essas pessoas. O resultado foi a coleta de amostras de DNA de 138 indivíduos de 48 famílias. Entre os netos dos sobreviventes de Hama, os pesquisadores descobriram 14 áreas do genoma que haviam sido modificadas, como resposta à violência sofrida, e que poderiam se manifestar em futuras gerações.
Também foi identificado que indivíduos expostos à violência quando estavam no útero apresentavam evidências de envelhecimento epigenético acelerado, associado a uma maior suscetibilidade para doenças da velhice. Há estudos que apontam sua relação com o surgimento de diabetes. “A ideia de que o trauma tem repercussões que alcançam os descendentes pode ajudar as pessoas a sentir mais empatia por seus semelhantes e levar os formuladores de políticas a se sensibilizarem”, afirmou Mulligan.

Mais Notícias