27 de dezembro de 2024

Como o cigarro eletrônico mudou a forma como se fuma

Dispositivo surgiu como alternativa ao cigarro convencional e tem sido usado como medida para reduzir danos causados pelo fumo. No entanto, “vape” também traz riscos à saúde. Pessoa fumando vape
Diego Fedele/AAP Image via AP
Foi em 2003 que surgiu o primeiro cigarro eletrônico como o conhecemos hoje. Inventado pelo farmacêutico chinês Hon Lik, ele era um vaporizador de um líquido contendo nicotina. A inspiração para a invenção de Hon foi o pai fumante, que, mesmo com um câncer agressivo de pulmão, não conseguia parar de fumar.
De lá para cá, a indústria cresceu e o produto adquiriu novas características. Um design mais simples e tecnológico, sabores e cores que chamam a atenção, cheiros atraentes – tudo isso para manter, até onde é possível, o ritual de fumar.
Mais de 20 anos depois de seu surgimento, inúmeros estudos sobre o dispositivo, com diferentes resultados, dividem opiniões. Mas, afinal, o que se sabe sobre os cigarros eletrônicos? Eles vieram para ficar?
Cigarro eletrônico x convencional
Uma alternativa para o cigarro convencional sem envolver as mais de quatro mil substâncias liberadas pela queima do tabaco e inaladas com a fumaça, a maior causadora de doenças em tabagistas: essa é a proposta do cigarro eletrônico desde sua criação.
Também conhecido por vape, o cigarro eletrônico é um aparelho que aquece um líquido que se transforma em vapor e é tragado pelo usuário. O líquido, composto por substâncias como propilenoglicol, glicerina, nicotina ou outros, é colocado num pequeno reservatório que cabe na mão.
O cigarro eletrônico é alimentado por pilhas que ativam uma corrente elétrica na bobina do aparelho quando o usuário aperta o botão do vape. A bobina gera calor que aquece o líquido contido no reservatório, e é esse líquido que é vaporizado.
O principal argumento favorável ao cigarro eletrônico é que ele seria apenas um reservatório de nicotina, ao contrário do cigarro convencional. Essa premissa motivou muitos estudos comparativos – que descobriram que a alternativa não é tão inofensiva quanto se pensava.
De acordo com a psiquiatra e pesquisadora da Unicamp Renata Azevedo, o cigarro eletrônico tem demonstrado ter riscos próprios. “Têm surgido dados novos de dados dos componentes do cigarro eletrônico que não estavam claros no início.”
A Organização Pan-Americana da Saúde, escritório regional da OMS no continente americano, considera os cigarros eletrônicos prejudiciais à saúde e alerta para a dependência que eles causam. Segundo a agência, “embora seus efeitos de saúde a longo prazo não sejam totalmente conhecidos, já se sabe que eles liberam substâncias tóxicas que são cancerígenas ou aumentam o risco de doenças cardíacas e pulmonares”.
Um exemplo disso é o propilenoglicol, composto que, quando aquecido, pode produzir lesões na cavidade oral. “Ninguém fuma vape há tanto tempo para ter câncer causado por ele. Não dá tempo. O câncer demora anos para se desenvolver. Mas pesquisas laboratoriais apontam que é possível que essas células da lesão tenham risco de desenvolvimento de câncer. É uma lesão pré-cancerígena”, explica Azevedo.
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Inglaterra aposta na redução de danos
Em abril de 2023, a Inglaterra anunciou que iria distribuir um kit gratuito de vape para um milhão de fumantes como estímulo para pararem de fumar cigarros convencionais. A iniciativa faz parte de um pacote de medidas apresentado pelo governo para reduzir o número de fumantes.
De acordo com o governo britânico, a medida apelidada de Swap to Stop (algo como Trocar para Parar, em tradução livre) faz parte da estratégia de diminuir para 5% o número de fumantes do país até 2030. Segundo o censo britânico de 2022, atualmente 12,7% dos ingleses são fumantes, o que corresponde a 6,4 milhões de pessoas.
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E a preocupação não é para menos. Segundo o estudo Global Burden Study of Disease (Carga Global de Morbidade), que é realizado pela Universidade de Washington, nos EUA, e coleta dados de mortalidade e incapacitação causadas por 107 doenças, o tabagismo é a principal causa de doenças e mortes evitáveis ​​no Reino Unido. Aproximadamente metade dos fumantes morrerão prematuramente, perdendo em média cerca de dez anos de vida.
Estima-se que o fumo seja responsável por 52% dos casos e 25% das mortes por câncer, 35% dos óbitos por doenças respiratórias e 12% das mortes por doenças circulatórias.
“Os vaporizadores são uma estratégia eficaz [para reduzir danos causados pelo fumo]. Como profissionais de saúde, faz parte do nosso dever destacar a vaporização como algo que pode reduzir danos”, disse o diretor médico regional do NHS (National Health Service), o sistema britânico de saúde pública, em documento divulgado pela London Tobacco Alliance, instituição criada por especialistas em saúde pública e autoridades locais para ajudar o governo a cumprir a meta.
“A mensagem é muito clara. Temos evidências nacionais e internacionais para apoiar o cigarro eletrônico. Temos um relatório convincente do governo que nos diz que os vapes são mais seguros do que fumar cigarros, e uma revisão conclui que a vaporização é um dos meios mais eficazes de parar de fumar”, disse no mesmo documento Irem Patel, codiretor clínico do London Respiratory Network, instituição do NHS de medicina respiratória.
Para Azevedo, os dados disponíveis internacionais em relação à cessação tabágica são muito fracos. “O número de pessoas que para de fumar cigarro é considerável, mas o número de pessoas que deixam de ser tabagistas não. O que acontece é uma migração na forma de um uso de nicotina por outra forma de uso de nicotina”.
De acordo com Azevedo, a questão de tratar o vape como um redutor de danos é muito clara: antes dos cigarros eletrônicos se tornarem alternativa ao convencional, é preciso fazer uma análise rigorosa e estudá-lo como terapia. “Se querem que o vape seja interpretado como uma alternativa a parar de fumar, ele tem que tramitar como remédio, como tratamento. Só que isso ainda não aconteceu em lugar nenhum”, completa.
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Quarta geração do cigarro eletrônico, também conhecido como vape
Reprodução/Profissão Repórter
Mudança na forma de fumar e perigo para adolescentes
No Brasil, o percentual de adultos fumantes vem apresentando uma expressiva queda ao longo das últimas décadas devido às inúmeras ações desenvolvidas pelo governo, como a proibição do fumo em ambientes fechados, que vale em todo o país desde 2014. Em 1989, 34,8% da população acima de 18 anos era fumante, contra 12,6 % em 2019, ano com os dados mais recentes.
Por outro lado, dados da Pesquisa Nacional de Saúde Escolar (PeNSE) do IBGE, realizada em 2019, revelam que 16,8% dos adolescentes de 13 a 17 anos já experimentaram cigarros eletrônicos.
“Embora os fabricantes neguem isso, ele tem toda a pegada de adolescente. Ele é bonito, parece um gadget (dispositivo), como os adolescentes gostam. O cheiro e os sabores também são muito atrativos. O ritual sempre foi um ritual de charme, o cigarro ganhou o espaço que ganhou por conta disso. Esses apelos são importantes [para a o sucesso do cigarro eletrônico]”, avalia Azevedo.
Esse dado acende o alerta para uma mudança no comportamento dos brasileiros em relação ao tabagismo. Um país que se tornou referência no combate ao fumo, com índices sempre em queda, agora vê um aumento no consumo de um outro tipo de cigarro.
“As taxas de tabagismo caíram drasticamente nas últimas décadas e há o temor de isso se perder porque quem não era tabagista está se tornando”, explica Azevedo.
Adolescentes começam a fumar mais cedo
Um estudo de 2021 do Instituto Nacional do Câncer (INCA) também revelou que os cigarros eletrônicos podem ser uma porta de entrada para o tabagismo. Um movimento que concretiza exatamente o oposto do que se pretendia com o produto quando foi criado.
A pesquisa, que fez uma análise de outros 25 estudos desenvolvidos em diversos países, mostrou que “o uso de cigarros eletrônicos aumentou em quase 3,5 vezes o risco de o indivíduo experimentar o cigarro convencional, e em mais de 4 o risco de passar a utilizar, posteriormente, cigarro convencional”, explica a coordenadora de Prevenção e Vigilância do INCA, Liz Almeida.
Para Renata Azevedo, a questão financeira pode explicar essa migração. “No Brasil, vape é caro para adolescente, cigarro é mais barato. Então, depois que você desenvolve a dependência, não consegue manter o vape e migra para o cigarro. É o inverso da porta de saída que se tinha imaginado no começo”, explica.
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Tratamento no SUS
Referência no combate ao tabagismo e na redução de iniciação ao fumo, o Brasil oferece tratamento gratuito para quem quer parar de fumar, pelo Sistema Único de Saúde (SUS). O protocolo consiste em duas frentes de atuação: terapia cognitivo-comportamental e farmacológica.
Tudo começa nos encontros em grupo, que funcionam como sessões de terapia. Recomenda-se a participação em pelo menos quatro reuniões. A partir delas, os pacientes passam por uma avalição para entender o grau de tabagismo e como prosseguir para o tratamento farmacológico.
Essa parte do tratamento tem dois braços. O primeiro deles é a reposição de nicotina, com adesivos. “A gente repõe o equivalente ao que o paciente fuma e vai fazendo uma redução gradual a cada mês ao longo de três meses”, explica Azevedo.
O segundo é o uso de bupropiona, uma substância complementar presente em antidepressivos, que diminui a vontade de fumar. “Em sua pesquisa inicial, descobriu-se que os pacientes com depressão que faziam o uso desse fármaco começaram a referir que estavam fumando menos. Foram avaliar e perceberam que pela sua estrutura ela ajuda a diminuir a vontade de fumar e evita o ganho de peso”, conta a pesquisadora da Unicamp.
O tratamento está disponível em mais de 4 mil unidades de saúde, segundo o próprio SUS. Para ter acesso, é preciso solicitar informações em centros de saúde locais. Se o protocolo for realizado no local, será agendado um horário. Caso contrário, o paciente será encaminhado para uma unidade que execute o procedimento.

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