28 de dezembro de 2024

‘Como reitora, passei por situações nas quais eu tive que colocar o homem no lugar dele’, diz Márcia Abrahão da UnB

Primeira reitora da UnB e atual presidente da Andifes, Márcia Abrahão conta que enfrentou situações de machismo e assédio durante trajetória profissional e que, por suas reações, foi chamada de autoritária. Reitora da Universidade de Brasília, Márcia Abrahão
Beto Monteiro / Secom UnB
Na semana em que se comemorou o Dia Internacional da Mulher, o g1 conversou com duas mulheres que ocupam cargos de destaque no Distrito Federal para falar sobre um tema polêmico: poder e assédio.
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No sábado (9), a entrevistada foi a vice-governadora do Distrito Federal Celina Leão (PP) . Neste domingo (10), a primeira reitora da Universidade de Brasília (UnB), Márcia Abrahão, conta sua experiência.
“Como reitora, passei por situações que eu tive que colocar o homem no lugar dele. E aí a gente é chamada de autoritária. […]. Se o homem faz isso, ele é firme. Se a mulher faz, ela é autoritária, ela é grosseira”, diz a reitora da Universidade de Brasília (UnB), Márcia Abrahão.
Por ter ingressado na área de Geologia, em 1982 – um curso majoritariamente masculino na época – e ter traçado uma carreira que a levou a ser a primeira reitora da UnB, Márcia Abrahão conta que durante toda a sua trajetória acadêmica e profissional enfrentou o machismo. Atual presidente da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes), ela diz que precisou lidar com “microagressões de gênero” incansavelmente.
“Tive que lutar por cada detalhe. Por exemplo, na UnB, na Reitoria, a placa da frente da da sala é reitor. Foi um custo para eu conseguir mudar para reitora.”
Leia abaixo a entrevista com Márcia Abrahão.
Poder x assédio
g1: A relação entre poder e assédio é muito presente em diversos âmbitos da sociedade. Como a senhora percebe esse contexto? Ao longo da sua vida, passou por situações em que se sentiu assediada? Se estiver confortável, pode nos contar como foi?
Márcia Abrahão: Eu já passei por essa situação em vários momentos, em várias fases da minha vida: como estudante, com um professor que não aceitava a mulher ainda mais geóloga, como profissional, por exemplo, na Petrobras, quando estávamos em campo e era uma equipe sísmica, que eu era geofísica da Petrobras no interior da Bahia, e era um acampamento só de homens.
Nós chegamos três mulheres, três mulheres geólogas, as três formadas na UnB, com o “espírito da UnB” que não aceita preconceito, e tivemos que nos rebelar dentro da equipe sísmica, conversar com o chefe por causa da atitude dos homens que andavam de toalha no meio do acampamento.
Na vida profissional ouvi homens que falavam “Ah, não, deixa que eu dirijo” ou “Você, não precisa dirigir, deixa que eu vou para andar num lugar mais difícil”. Então, há esse tipo de coisa na vida de uma geóloga.
Mas também tive pessoas incríveis, como o meu orientador. Por exemplo, eu estava morrendo de medo de falar que eu estava grávida da minha filha, já estava terminando o mestrado. Aí ele falou “Poxa, que bom. Parabéns!”. Então, há homens que têm um outro olhar.
Como reitora, passei por situações que eu tive que colocar o homem no lugar dele. E aí a gente é chamada de autoritária. Quando a gente fala “Olha aqui, pode deixar que eu sei o que eu tô fazendo” – se o homem faz isso, ele é firme. Se a mulher faz, ela é autoritária, ela é grosseira. E eu já passei por isso como reitora e até como presidente da Andifes.
Já passei por situação de machismo de tentar inverter o que a gente está fazendo para trazer uma imagem, que não é uma imagem verdadeira. Mas é porque no fundo ele não aceita que uma mulher esteja no comando.
g1: Como ser mãe durante o mestrado e o doutorado influenciaram na sua carreira e na sua visão de gestora?
Márcia Abrahão: Ser mãe e para mim, hoje como gestora, é muito importante eu ter passado pelo que eu passei, até pra ver o que as pessoas sentem e o que as mulheres passam. Então, por exemplo, quando eu fui fazer minha prova de mestrado, eu tinha acabado de ter o exame de gravidez do meu filho. Tinha entrevista e eu morria de medo, porque a geologia é um curso muito de homens, até hoje tem muita resistência em várias áreas, não em todas, mas em outras tem.
Uma amiga minha falou “Não fale que está grávida. Se você falar que está grávida na entrevista, você não vai passar”. E eu fiz uma péssima entrevista e eu não falei que estava grávida. Também não me perguntaram, né? “Você está grávida?’” [risos].
Mas foi difícil. Assim que eu comecei o mestrado, tinham disciplinas que eu tinha que fazer trabalho de campo e eu não pude ir. Depois, isso acabou prejudicando. […] No doutorado, a minha filha tinha acabado de nascer e eu tinha que ir para o campo, que era no norte de Mato Grosso – uma área que tinha muita malária na época – e eu amamentava. […] Então, eu só pude ir para o campo no ano seguinte, em julho do ano seguinte.
Acabou atrasando o meu campo e quando eu fui, eu amamentava ainda porque ela não queria parar de mamar. E eu fui daqui de Brasília de carro até Mato Grosso, tirando leite no caminho para ir desmamando. Foi assim que eu desmamei ela, nesse período, nesse caminho.
Então, tem várias situações. Por exemplo, tanto no mestrado, quanto no doutorado e depois, com os filhos pequenos. Eu estava no laboratório, fazendo uma análise e eu tinha que parar de repente, porque a escola ligava falando que criança tinha passado mal.
Já como professora, eu dava aulas às quartas, durante a tarde, e eles faziam as oficinas infantis que tinham lá na UnB, no CO [Centro Olímpico]. Na hora do intervalo da minha aula, eu levava eles, ia dar aula, depois buscava no intervalo, deixava em casa correndo e voltava para dar aula. Não tinha tempo nem de beber água. Era uma logística danada, sorte que eu morava ali perto, na 205 Norte. Então, tem muitas situações que as mulheres passam. E aí você escuta o colega com piadinha, como se a gente tivesse de corpo mole e esse tipo de coisa.
g1: Então a senhora enfrentou o machismo durante todo percurso, de estudante, pós-graduanda, mestre, doutora, no mercado de trabalho, como reitora e como presidente da Andifes?
Márcia Abrahão: Durante todo o percurso. Na verdade, nós temos que estar o tempo inteiro atentas, porque todo dia tem um homem que não aceita uma mulher num cargo de destaque, seja como gestora, seja como profissional, como colega. Uma colega que se sobressai, têm homens que não aceitam. Ainda bem que têm homens que aceitam e que ensinam isso para outros homens.
Hoje em dia, as mulheres estão mais atentas. Quando a mulher não está atenta, ela tem uma amiga, ela tem uma prima, ela tem uma irmã que faz ela abrir os olhos. E isso é muito importante. Mas acho que, infelizmente, a nossa sociedade brasileira ainda é muito machista.
Ainda é uma sociedade que tem muitos homens que não aceitam mulheres que estudam, mulheres que têm cargos, e isso a gente tem que combater no dia a dia. Mas o que eu vejo hoje é que as mulheres estão mais atentas e mais donas das suas vidas.
g1: Conte um pouco de sua trajetória na universidade e na comunidade acadêmica. Ao longo desse tempo, como foram as suas experiências, em um ambiente que, por muito anos, foi dominado por homens.
Márcia Abrahão: Tive que lutar por cada detalhe. Por exemplo, na UnB, na Reitoria, a placa da frente da da sala é reitor. Foi um custo para eu conseguir mudar para reitora. Há pouco tempo, eu consegui mudar uma outra placa para gabinete da reitora, mas somente no segundo mandato. As assinaturas no Sei, que é o nosso sistema de assinaturas online, todas no masculino.
Lutei para conseguir mudar, para colocar pelo menos o “azinho” [ª]. Hoje em dia, por exemplo nessa trajetória toda – e até por eu ter uma profissão que eu tive que me impor também profissionalmente como geóloga – eu vejo que as pessoas me respeitam. Mas vejo também que muitas pessoas usam o fato de eu ser mulher, de eu falar mais firme, para dizer que “Tá vendo, é autoritária”, ou “Tá vendo, tem que ser do jeito dela”, e eu faço gestões super democráticas, tanto na UnB como na Andifes.
Mas o que a gente percebe é que ainda tem muitos homens que tentam usar qualquer detalhe para desqualificar a mulher, no fundo, o que eles querem é desqualificar. […] A gente ainda tem homens, e eu vivo isso ainda hoje como presidente da Andifes, já vivi com reitores homens, por exemplo, deles me interromperem o tempo inteiro quando estou falando. Então, eu passei por isso, e olha que eu sou presidente há menos de um ano, passei por isso como reitora na UnB com diretor de faculdade me interrompendo o tempo inteiro e interrompendo outras mulheres, e passei por isso na Andifes com reitores que também não aceitam.
Muitas vezes são homens que tentam passar uma imagem de homens que são modernos, que respeitam a mulher. Mas eles escorregam porque eles não são.
Responsabilidade
A reitora Márcia Abrahão em cerimônia de posse
Wilson Dias/Agência Brasil
g1: Como a senhora se sente hoje, sendo uma mulher na posição em que ocupa como reitora da Universidade de Brasília e presidente da Andifes?
Márcia Abrahão: Eu já passei da fase de ficar muito feliz e orgulhosa. Hoje, eu vejo isso com uma imensa responsabilidade, então é uma imensa responsabilidade para outras mulheres. Recentemente eu recebi umas pessoas para uma reunião, para tratar do Conselho de Saúde do Brasil, da Conferência Nacional de Saúde, e eu escuto de outras mulheres “Olha, é muito bom te conhecer, muito bom falar com você, você tem sido um exemplo, eu fico feliz que você está aí”. Então eu vejo a proporção da minha responsabilidade. E agora eu tenho uma responsabilidade muito maior, porque eu sou avó. Então eu vejo como que eu tenho que ser um exemplo para a minha neta, sou avó de uma mulher.
g1: Que conselho a senhora daria para mulheres que querem cargos de liderança no meio acadêmico?
Márcia Abrahão: Primeiro é acreditar no seu próprio potencial. Não escutar as pessoas que dizem que você não tem condições, que você não vai conseguir, que você vai ser mãe. A pessoa fala “Você tem filho, você não consegue fazer isso porque você tem que cuidar do seu filho”. Sim, nós temos que cuidar dos nossos filhos, mas podemos também optar por não ter filhos. Essa tem que ser uma opção da mulher, não pode ser uma imposição da sociedade. E a outra coisa que eu acho fundamental é a gente sempre ter mulheres aliadas. As pessoas costumam dizer que a mulher não é aliada de mulher, mas mulher é muito aliada de mulher.
É muito importante nós termos as nossas redes de amigas, continuarmos com as nossas amigas, saindo com as nossas amigas, conversando com as nossas amigas. Não deixarmos que os homens impeçam a gente de ter amizades. Esse é um primeiro sinal de violência. É naquele relacionamento de mulher e homem em que o homem não permite que ela tenha amigas e que não estude e que não trabalhe. Então, é ficar atenta a todos os sinais, confiar nas mães e confiar em outras mulheres e persistir, isso é fundamental.
Quem é Márcia Abrahão
Márcia Abrahão, reitora da UnB, fala sobre quem é e como quer ser lembrada no cargo que ocupa
Márcia Abrahão nasceu no Rio de Janeiro, em 1964, mas cresceu em Brasília. Em 1982, passou no vestibular da UnB para o curso de Geologia e, após finalizar a graduação, passou no concurso da Petrobras, em 1987.
Pediu demissão após um ano e meio e, quando se casou, voltou para Brasília. Inclusive, ela é casada duas vezes — com o mesmo marido, Antônio. Em 1988, passou no mestrado na área de Geologia na UnB. Seu primeiro filho, Tomás, nasceu depois de um ano.
Márcia Abrahão passou no concurso do Banco Central durante o período da pós-graduação e, no início do doutorado, a filha Renata nasceu. Depois de pedir demissão do Banco Central, Márcia Abrahão passou, em março de 1995, para ser professora substituta da UnB, e em julho entrou como professora permanente.
“Estou lá [na UnB] até hoje, e assim comecei a minha história”, diz Márcia Abrahão.
Graduada, mestra e doutora em Geologia pela UnB, é docente do Instituto de Geociências (IG) desde 1995. Entre 2008 e 2011, foi decana de Ensino de Graduação e coordenou o Reuni – Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais.
Em 2016, tornou-se a primeira mulher eleita reitora da UnB e, em 2020, foi reconduzida ao cargo por mais quatro anos. Em 2023, foi eleita presidente da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes). Atualmente, um dos seus títulos preferidos é “ser avó da Olívia”.
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