19 de janeiro de 2025

Criação da Fundação IBGE+ provoca crise no órgão de pesquisa federal: ‘Está insustentável’, diz ex-presidente


Na última semana, dois diretores importantes do IBGE pediram demissão. O sindicato dos servidores acredita que a criação da fundação, que é autorizada a captar recursos da iniciativa privada, pode prejudicar a autonomia do órgão. A presidência do IBGE promete recorrer à Justiça contra ‘desinformação e mentiras’. Um dos prédios do IBGE, no Rio de Janeiro (RJ)
Licia Rubinstein/Agência IBGE Notícias
Diretores entregando cargos, acusações entre o presidente e servidores e uma comunidade científica em alerta sobre o futuro do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Esse é o cenário atual do órgão federal responsável por desenvolver pesquisas como o Censo e divulgar dados econômicos como o PIB e o IPCA. O IBGE é fundamental para orientar políticas públicas nacionais e regionais.
Segundo funcionários ouvidos pelo g1, a atual crise no IBGE teve início em julho do ano passado, quando o presidente Marcio Pochmann criou a Fundação de Apoio à Inovação Científica e Tecnológica do IBGE, a Fundação IBGE+. A fundação foi batizada por alguns servidores como ‘IBGE Paralelo’.
A nova instituição é um braço do IBGE, mas tem autorização para receber dinheiro de empresas privadas, por exemplo, para realizar pesquisas contratadas. A Fundação IBGE+ é um órgão de caráter público-privado e foi criada com o objetivo de suprir a falta de dinheiro público para manter a estrutura do órgão federal.
Porém, muitos funcionários e ex-presidentes acreditam que abrir o IBGE para o financiamento privado pode fazer o órgão perder autonomia e credibilidade no longo prazo.
“O IBGE produz um bem público. Ele tem que divulgar para todos, ao mesmo tempo, seja o governo, trabalhadores, empresas e a sociedade em geral. Toda vez que uma empresa financia alguma coisa ela quer que o resultado seja dela. (O IBGE+) É um grandioso conflito de interesse”, comentou a ex-presidente Wasmália Bivar.
Além das preocupações, fatores como a falta de diálogo entre a presidência e seus diretores, somada a insatisfação de servidores com os rumos do instituto são apontadas como motivos para um racha dentro do órgão.
A crise chegou ao ápice no início desse ano, quando a diretora de pesquisas Elizabeth Hypolito e o diretor adjunto João Hallack pediram exoneração e entregaram seus cargos. Segundo o colunista Lauro Jardim, do Jornal O Globo, outros diretores importantes devem pedir demissão nos próximos dias.
Wasmália Bivar, ex-presidente do IBGE
Lilian Quaino/G1
Na opinião da economista Wasmália Bivar, ex-presidente do IBGE entre 2011 e 2016, a situação atual está insustentável. Para ela, o atual presidente Marcio Pochmann precisa recuar e tentar dialogar com os servidores, caso contrário, não conseguirá seguir no cargo.
“Infelizmente o presidente está vivendo uma situação muito difícil. Eu não vejo outra saída para ele que não seja dar dois passos atras e dialogar. (…) Com toda boa vontade, as vezes as pessoas erram. Eu não tenho compromisso com meu erro e ele precisa ter essa flexibilidade”, comentou Wasmália Bivar.
“O IBGE é uma instituição grande demais para ter uma gestão tão conflituosa. Hoje está em um nível de conflito que tá insustentável”, completou a ex-presidente.
O g1 ouviu membros do Sindicato Nacional dos Trabalhadores em Fundações Públicas Federais de Geografia e Estatística (Assibge) e servidores do órgão para entender o tamanho da crise. Veja mais adiante na reportagem as críticas dos trabalhadores e como a presidência do IBGE reagiu.
Conselho Diretor não foi consultado, diz associação; Instituto nega
Segundo o Assibge, a insatisfação com a presidência do órgão é grande em praticamente todas as diretorias do IBGE. O principal motivo teria sido a criação da Fundação IBGE+, sem a aprovação do Conselho Diretor.
“Essa medida foi implementada sem consulta aos quadros técnicos, à comunidade científica e à sociedade civil, configurando um precedente perigoso para a interferência de interesses privados no sistema geoestatístico nacional”, dizia um trecho da nota divulgado pelo sindicato.
“Decisões recentes da atual direção do IBGE colocam em risco a soberania geoestatística brasileira”, completou a nota ao falar sobre a Fundação IBGE+.
Ainda de acordo com o sindicato, a criação da Fundação IBGE+ aconteceu “sem a participação dos profissionais que possuem o conhecimento técnico a experiência necessários para avaliar a viabilidade e os impactos de tal criação”.
Já a presidência do IBGE negou que a fundação tenha sido criada sem consulta de especialistas do órgão.
“Não só foram feitos os debates junto a órgãos federais e no Conselho Diretor do IBGE, como todos os diretores e diretoras deste Conselho acompanharam as discussões, aprovaram a totalidade dos documentos e assinaram a ata de criação da Fundação IBGE+, registrada em cartório e aprovada por unanimidade, em ato documentado em texto e imagens”, informou o IBGE, por meio de uma nota.
Home offfice e outros pontos do conflito
A motivação maior para o racha entre presidência, diretores e funcionários é, sem dúvidas, a criação da Fundação IBGE+, contudo, outros problemas também emergiram nos últimos meses.
Entre as reclamações dos trabalhadores estão duas mudanças relacionadas ao dia a dia do trabalho dos servidores. A primeira delas, a mudança do regime de trabalho, deixando o home office e adotando o regime híbrido, com alguns dias trabalhando de forma presencial.
Além disso, outra mudança de rotina também perturbou os funcionários. Servidores que trabalhavam no Centro do Rio de Janeiro foram transferidos para o Horto Florestal, no Jardim Botânico, na Zona Sul, um local considerado de difícil acesso pelos trabalhadores.
Contudo, apesar dos servidores se colocarem contra as mudanças, essas ações isoladas não seriam responsáveis por provocar a saída de diretores indicados pelo presidente e a insatisfação grande de uma categoria. Essa é a opinião da ex-presidente Wasmália Bivar.
“Existem ouras insatisfações, mas essa nunca teriam alcançado o nível que alcançou se não fosse o IBGE+. Foram agravantes”, disse Bivar.
“Eu acredito muito honestamente, conhecendo os técnicos do IBGE, que jamais a crise teria alcançado essa dimensão se não existisse o IBGE+. Essa não é a primeira vez que existem reclamações por condições de trabalho e nunca a insatisfação tomou a dimensão que tomou agora”, completou a ex-presidente.
Em um comunicado divulgado à imprensa, o IBGE comentou sobre essas duas reclamações.
“Até 2023, a quase totalidade dos institutos nacionais de estatística do planeta já havia retornado ao trabalho presencial. O IBGE era uma das exceções, ainda que com uma peculiaridade: parte significativa da força de trabalho que atua na coleta dos dados já havia retornado ao trabalho presencial integral, nos cinco dias úteis da semana, além de superintendentes, chefes de agências, setores administrativos e diretores. Ou seja, apenas parcela reduzida do quadro ainda se encontrava em regime totalmente remoto”, dizia parte do comunicado.
O IBGE alegou ainda que as determinações desencadearam “reações, até então, inéditas do sindicato e de parte dos trabalhadores da unidade da Avenida Chile, no centro do Rio de Janeiro, em defesa de interesses particulares e contrariados pelo fim do regime remoto integral, o popular home office”.
Sobre a mudança do local de trabalho de parte da equipe, o IBGE escreveu:
“A transferência temporária dos servidores e servidoras alocadas na unidade da Avenida Chile permitirá ao IBGE economia anual de aproximadamente 84% em relação aos R$ 15 milhões anualmente gastos em aluguel e custos de manutenção que esta unidade consumia no início da atual gestão. Estes recursos serão revertidos para reformas das unidades do centro e da Avenida Canabarro, obra esta que se inicia neste mês de janeiro.
Entretanto, apesar dos ganhos evidentes e substanciais com esta mudança temporária, parte dos servidores e servidoras da unidade da Avenida Chile, e o sindicato, difundem informações inverídicas sobre condições de acesso e de trabalho na unidade do Horto, que contará com sistema de vans para transporte entre o imóvel e a principal rua do bairro, que possui ampla oferta de transporte público e serviços, como restaurantes e comércio local.”
O que dizem os citados
Em nota, o Ministério do Planejamento e Orçamento (MPO), órgão que o IBGE está vinculado, informou que respeita a autonomia administrativa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), segundo disposto no Decreto-Lei nº 200, de 25 de fevereiro de 1967.
“O MPO também acompanha, de forma contínua, as atividades de suas unidades vinculadas, entre elas o IBGE, e mantém canal aberto de diálogo com seus representantes”, dizia outro trecho da nota.
O g1 entrou em contato com o IBGE e questionou sobre a crise e as reclamações dos funcionários, além de tentar entender o motivo dos pedidos de exoneração de diretores escolhidos pelo presidente do órgão.
Contudo, até a última atualização desta reportagem, não houve resposta do IBGE.
No comunicado divulgado anteriormente, o IBGE informou:
“O processo de reconhecimento do IBGE como Instituição de Ciência e Tecnologia, e a consequente e legalmente necessária constituição de uma fundação de apoio, a permitir a busca de recursos não-orçamentários essenciais para a urgente e imprescindível modernização e fortalecimento tecnológico, já foi amplamente publicizado em Comunicados e documentos disponíveis no Portal do IBGE e em site próprio da fundação.”
“”Entretanto, cabem neste ponto esclarecimentos adicionais frentes a alegação recente do sindicato nacional dos servidores (ASSIBGE), de que a criação da Fundação nem passou pelo Conselho Diretor, órgão máximo deliberativo do Instituto, e composto majoritariamente por servidores da casa. Não só foram feitos os debates junto a órgãos federais e no Conselho Diretor do IBGE, como todos os diretores e diretoras deste Conselho acompanharam as discussões, aprovaram a totalidade dos documentos e assinaram a ata de criação da Fundação IBGE+, registrada em cartório e aprovada por unanimidade, em ato documentado em texto e imagens”
“A Fundação IBGE+ é também alvo de forte campanha de desinformação por, possivelmente, evidenciar conflitos de interesses privados existentes dentro do IBGE, sendo estes, inclusive, objeto de manifestação do Ministério Público Federal, conforme Ofício nº 503/2024 PR-RJ/GMGBA, disponível Anexo I e seus documentos anexos, em resposta ao Ofício nº 6/2024/PF-GAB/PFE-IBGE/PGF/AGU da Procuradoria Federal Especializada Junto ao IBGE, disponível no Anexo II, e corroboradas por conclusão da Coordenação de Recursos Humanos do IBGE, conforme Nota Técnica Nº 45/2024/DE/CRH/IBGE, disponível no Anexo III, além da ação de órgãos de controle interno do Instituto. Possivelmente, diante deste fato, a atual gestão enfrenta fortes reações.”
Em resposta a esse comunicado, o Sindicato Nacional dos Trabalhadores em Fundações Públicas Federais de Geografia e Estatística (Assibge) soltou outra nota afirmando que o “presidência do IBGE prefere atacar servidores em vez de abrir diálogo e buscar soluções”.
“O IBGE atravessa uma grave crise interna derivada majoritariamente pela criação da fundação de direito privado IBGE+, instalada sem que fosse ouvido o quadro técnico da instituição. A ASSIBGE – Sindicato Nacional tem se manifestado de forma reiterada quanto aos riscos de que, posta em operação, o novo ente possa comprometer a autonomia técnica do órgão oficial.
As recentes exonerações na Diretoria de Pesquisas do órgão, somadas às insatisfações manifestadas por outros membros da direção demonstram, de forma irrefutável, que não se trata de uma corriqueira discordância entre gestão e sindicalistas, ou mesmo algum descontentamento de parcela minoritária dos servidores. A insatisfação alcançou a mesa do Conselho Diretor do IBGE, a qual o presidente divide com os diretores.
Num contexto em que as redes sociais são alimentadas e consumidas de forma frenética, a atual crise acaba por fornecer o pano de fundo para graves e mentirosas alegações de que a autonomia técnica do IBGE estaria comprometida, lançando dúvidas sobre a credibilidade dos dados divulgados, algo que o sindicato tem desmentido com veemência em todas as oportunidades.
A entidade sindical vê com inaudito espanto a presidência do IBGE lançar combustível sobre uma crise que resvala, quando menos no ambiente das redes, naquela que é o maior patrimônio construído ao longo de quase 90 anos do IBGE, sua credibilidade, sempre defendida pelo sindicato, que combate a nova fundação justamente por vê-la como uma potencial ameaça a tal patrimônio imaterial e inalienável.
Em vez de esclarecer, a nota da presidência repete a mesma litania de outras notas, afirmando que a criação da fundação decorre do reconhecimento do IBGE como instituição de Ciência e Tecnologia, argumento que já amplamente refutado, seja porque tal reconhecimento não exige a criação de um novo ente, seja porque documentos internos revelam que a direção buscava meios de instalar uma fundação de direito privado desde muito antes do reconhecimento como instituição de Ciência e Tecnologia.
Não podendo refutar tais argumentos da ASSIBGE-Sindicato Nacional, a presidência do IBGE opta por empregar um tom infantil, classificando, genericamente, toda a discordância como mentira, e sugerindo que o sindicato estaria aliado com beneficiários de eventuais situações de conflitos de interesses, que poderiam vir à tona com o início dos trabalhos do IBGE+.”

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