25 de setembro de 2024

Da medicina à dança: saiba como é o uso de corpos humanos doados para pesquisas e por que baixa adesão afeta ciência

Na Unicamp, nove corpos adultos foram cedidos em 14 anos. Professor defende que pouca doação impacta na qualidade da formação acadêmica. Alunos de medicina da Unicamp durante uma aula de anatomia
Liga de Anatomia Humana da Unicamp (LiAH)
Pouco difundido no Brasil, a doação de corpos humanos pós-óbito para estudos contribui para o avanço da medicina e para a formação de profissionais mais qualificados, segundo o professor livre-docente em Anatomia na Unicamp Wagner José Favaro. No entanto, com a baixa divulgação e adesão, a prática enfrenta problema: são poucas as pessoas que fazem essa doação.
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De acordo com dados cedidos pela Universidade Estadual de Campinas(Unicamp), em um período de 14 anos, a universidade recebeu nove corpos adultos, sendo 64% do gênero masculino e 36% do feminino, com uma faixa etária média de 70 anos, além de cinco prematuros e dois natimortos.
Não são apenas os cursos como medicina e enfermagem que se beneficiam dessas doações para fins de ensino. Outras áreas que pesquisam a anatomia, como dança, educação física, odontologia, fonoaudiologia, ciências biológicas, física médica e farmácia também fazem proveito.
O g1 conversou com o responsável pelo recebimento de doações de corpos da Unicamp, professor Wagner José Favaro, para entender como funciona o processo de recebimento, manuseio e posterior sepultamento dos corpos e, principalmente, o reflexo desta ação para o desenvolvimento de estudos e para a qualidade das formações na universidade.
👉 Nesta reportagem você vai conferir:
Por que a doação de corpos para a ciência é importante
Como o corpo é usado nas aulas
O que diz a lei sobre a doação de corpos à ciência
Como doar
A Liga de Anatomia
Em um período de 14 anos a Unicamp recebeu apenas 9 corpos adultos, entre homens e mulheres, com uma faixa etária média de 70 anos, além de 5 prematuros e 2 natimortos
Liga de Anatomia Humana da Unicamp (LiAH)
Por que a doação de corpos para a ciência é importante?
Sob as lentes da ciência, afirmar que ao morrer tudo se encerra e que não servimos para mais nada é um grande mito. Para aqueles que estudam as diferentes formas de vida e suas inúmeras particularidades a partir de análises do corpo humano, ter utilidade após a morte sempre foi uma realidade.
Segundo Fávaro, um dos motivos para a baixa adesão é, justamente, a dúvida gerada pela falta de divulgação acerca do que é feito com o corpo após a doação. Um cenário que impacta não apenas no avanço de estudos e pesquisas, mas que interfere também na qualidade da formação do indivíduo como médico.
“As pessoas desconhecem esse tipo de utilidade pós-morte e desconhecem o que se faz com o corpo, quais são os benefícios de se doar o corpo. A falta de divulgação disso e de mostrar a sua importância, além claro, de uma questão conceitual no Brasil, com relação ao luto e a morte, culturalmente é uma sociedade que ainda não entende o impacto de tudo isso” .
De acordo com o professor, a escassez de doações contribui para uma deterioração do ensino médico já que, com o uso frequente de bonecos e simuladores, o estudante perde a tridimensionalidade do corpo humano. Exatamente por isso, entre o perfil dos doadores, predominam as pessoas ligadas à vida acadêmica e que têm melhor compreensão sobre a importância da doação.
Como o corpo é usado nas aulas?
Ainda de acordo com o professor, os usos e ensinamentos mais frequentes são:
Em pesquisas sobre os impactos de determinadas patologias no organismo humano e os possíveis tratamentos;
Em análises do formato do órgão e dos padrões de relações com os demais sistemas em diferentes corpos;
Nas prática e testes de cirurgias robóticas e laparoscópicas;
E, principalmente, para que o médico não perca a noção das diferentes realidades e desafios que cada corpo apresenta em seu estado natural.
“Hoje, cada vez mais, a medicina avança em procedimentos que são minimamente invasivos, técnicas que requerem um conhecimento da anatomia extremamente aprofundado e que outros modelos, como livros, simuladores, bonecos ou manequins, não reproduzem com exatidão o que é o corpo humano”, aponta.
Os estudos funcionam como uma grande cirurgia em que o corpo é dissecado para fins de ensino e análises, podendo ser desmembrado, caso haja necessidade, ou ter os órgãos retirados.
Tudo vai depender do tipo de estudo que será realizado. Depois, uma vez que o corpo já passou uma série de estudos e procedimentos e não está mais adequando para o uso, é feito o sepultamento do material restante.
O que diz a lei sobre a doação de corpos à ciência?
A doação de corpos é uma ação legal, amparada pelo Código Civil brasileiro, por meio da Lei 10.406/2002, que permite a doação com objetivos científicos ou altruísticos e estabelece que o ato de disposição pode ser livremente revogado a qualquer momento durante a vida.
Diferentemente da doação de órgãos, para ceder um corpo não é necessário que a morte seja exclusivamente por causas cerebrais. No entanto, a lei impede o recebimento de corpos provenientes de mortes violentas, como acidentes, homicídios e suicídios.
É realizado uma avaliação prévia que avalia se o corpo possui condições que condizem com as necessidades dos estudos. Entre os pontos levados em consideração estão:
o tempo do óbito;
a existência de alguma doença que possa dificultar a preservação do material;
o número de comorbidades;
idade muito avançada.
Como doar?
Há duas formas de doação para a Unicamp:
a de corpos não reclamados – aqueles sem identificação ou que não apareceu ninguém para dar início ao processo de sepultamento –, que são doados diretamente pelo Serviço de Verificação de Óbitos (SVO);
ou a manifestada em vida pelo indivíduo ou pela família após o óbito.
Quando a vontade é expressada em vida, o doador deve procurar o instituto de biologia da universidade, onde fica localizado o departamento de anatomia, e preencher um termo de doação voluntária, que deverá ser reconhecido em cartório.
Com o termo em mãos e ao sair a declaração de óbito emitida pelo médico, o familiar deve comparecer ao cartório para lavrar a certidão de óbito, onde estará descrita a doação para a instituição.
É importante ressaltar que, por mais que o desejo seja manifestada em vida, quem irá decidir se o corpo realmente será doado será a família.
A Liga de Anatomia
Alunos do curso de medicina da Unicamp
Liga de Anatomia Humana da Unicamp (LiAH)
Com o objetivo de divulgar a possibilidade da doação de corpos para fins de ensino e pesquisa e para a complementar as aulas com integrações práticas de dissecação (examinar o corpo para análise da anatomia), a Unicamp criou a Liga de Anatomia (LiAH).
Fundado por alunos do curso de medicina da universidade, o projeto implementou, no Hospital de Clínicas de Campinas (HC), uma política simples e que contribui para a adesão a prática: perguntar a famílias de recém-falecidos se há o desejo de doar o corpo para a universidade.
Apesar do questionamento ser comum quando se trata de doação de órgãos, o corpo, em especifico dificilmente é mencionado, como acrescenta o professor.
“Essa foi uma iniciativa até mesmo da própria Liga de Anatomia, de criar em Campinas, com sede na Unicamp, um programa de doação de corpos aqui na nossa região. Agora justamente pelo trabalho da liga o HC tem adotado essa política de perguntar se há o desejo de realizar a doação” .
*Sob supervisão de Yasmin Castro.
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