15 de novembro de 2024

Das rodas de samba aos ‘passinhos’: conheça locais essenciais na valorização da herança da população negra em Mogi das Cruzes


Nesta sexta-feira (15), o g1 começa a publicar uma série de reportagens especiais para o Dia da Consciência Negra, comemorado na quarta-feira (20), a fim de evidenciar experiências, saberes e tradições que são, há séculos, passados de geração para geração. Samba na Vila Industrial, em Mogi das Cruzes
Roberto Inácio/Divulgação
Herança. Segundo o dicionário Michaelis, o termo significa “transmissão de caracteres ou qualidades de qualquer dos ascendentes aos descendentes; hereditariedade” ou, também, pode ser “conjunto de crenças, técnicas, saberes, tradições etc. que um grupo social transmite a outro ao longo das gerações”.
Nesta sexta-feira (15), o g1 começa a publicar uma série de reportagens especiais para o Dia da Consciência Negra, comemorado na quarta-feira (20), a fim de evidenciar experiências, saberes e tradições que são, há séculos, passados de geração para geração.
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A música, claro, é uma delas. Segundo o professor de ciências humanas Rui Mendes Ferreira Moreira, o samba e a black music podem ser considerados os principais estilos musicais que se originaram dos grupos de resistência.
“[Eles funcionam] Como um grito de liberdade, ao dizer que existem esses grupos ali presentes e devem ser conhecidos e respeitados. O samba é fortalecido por gêneros musicais africanos que se incorporam e surge no Brasil. Ele é uma miscigenação cultural e musical. Já a black music é especialmente conhecida e popularizadas nas camadas negras africanas norte-americanas. Surgiu nos EUA e se popularizou como um incremento de resistência negra americana”, explicou.
Em Mogi das Cruzes, dois espaços foram importantes para manter as tradições: o Frô e o samba na Vila Industrial.
Famoso na vida noturna da cidade, o Frô começou a funcionar em um prédio na Rua Barão de Jaceguai. E anos depois foi para um imóvel em cima de um cinema na Avenida Voluntário Fernando Pinheiro Franco.
“O Frô tem importância para a cultura black, ele foi meio que um ninho para o hip hop começar na região. Além disso, lá foi uma escola para a moda. As roupas foram trocando, o pessoal começou a se vestir diferente… A pessoa via um corte de cabelo num clipe musical e, no outro dia, chegava [no Frô] daquele jeito. O Frô era uma união de diversidades de cultura negra.”, conta Cadú Araújo, diretor e professor do Instituto Bust a Move Hip Hop.
Cadú tem 42 anos e escutou falar a primeira vez do Frô quando tinha apenas 12, em 1994. “Tinha dois irmãos, vizinhos meus, que ficavam ouvindo rap, com um som muito alto, todos os dias. Às vezes, eu olhava pela janela de casa e via que chegava uma galera na casa deles e todo mundo ficava lá, trançando o cabelo um do outro, passando gel, enrolando o cabelo… Os caras faziam isso aí e falavam que, à noite, iam ‘para o salão'”.
Ele acabou fazendo amizade com os vizinhos e, pouco a pouco, eles soltavam detalhes de como era o salão. Anos depois, quando o professor estava prestes a completar 15 anos, viu o anúncio do show do Sampa Crew no Frô e pensou que seria a oportunidade perfeita para conhecer o espaço.
“Eu arrumei um trampo temporário, escondido da minha mãe, de entregar panfleto. Era os panfletos do Sampa Crew. Além de eu ganhar a entrada, eu ganhei um trocado, que usei para comprar uma camiseta branca e uma calça cargo para ir ao show. Quando chegou no dia, não me deixaram entrar porque eu era menor de idade. Eu fiquei muito triste, mal pra caramba”, lembra.
Por fim, o dançarino encontrou a solução. “Peguei amizade com um dançarino e ele me falou que tinha um esquema para eu entrar no Frô. Eles forjaram um RG para mim e eu entrei”.
“Uma vez por mês, no primeiro ou último sábado do mês, tinha o flashback. Aí, nesse dia, vinha gente de São Paulo inteiro, até fora de São Paulo, já veio gente de Santos, até do Rio de Janeiro. Tudo para poder rachar, batalhar, ver os caras mais tops de São Paulo dançando”.
Quem também acompanhava essa cena de perto era o controlador de acesso Gilson Batista da Costa, de 53 anos. Ele conta que passava o domingo quase que inteiro da danceteria.
“Nós [ele e o grupo de dança chamado ‘Embalos do House’] chegávamos na matinê, que começava umas 15h de um domingo, e acabava às 18h. Nós íamos para casa, e à noite, tinha outro baile e, então nós voltávamos para o local, [a festa] ia das 19h até às 23h30… Era, praticamente, o final de semana era dentro do Frô”, conta.
“Era um baile familiar, nós nos sentíamos na nossa segunda casa dentro do baile. Era um refúgio, um porto-seguro, porque lá nós íamos buscar novas amizades, uma paquera… Era uma adrenalina quando chegava o domingo! A gente se preocupava muito com o visual que íamos usar para poder estar ali e impactar, bem, bonito…”, diz.
Concurso de dança no Frô Avenida, em Mogi das Cruzes
Gilson Batista da Costa/Arquivo pessoal
Dos passinhos para as rodas de samba
O músico Sebastião Xavier Filho, de 65 anos, conta que assistiu à apresentação de uma escola de samba pela primeira vez ainda nos anos 60, em Mogi das Cruzes.
Mais tarde, em 1976, surgiu a “Unidos da Vila Industrial” e, neste momento, Sebastião e família decidiram participar ativamente da organização do grupo. Com o tempo, ele se tornou compositor de samba enredo, figurinista e depois assumiu a função de carnavalesco.
Xavier conta que, por conta do pai dele também ser músico, a relação com a arte já vem desde a infância. Para ele, a proximidade com o samba aconteceu naturalmente. Inclusive, o gênero musical abriu portas para que o artista pudesse conhecer referências, como Zé Kety, Wilson Moreira, Jorge Aragão e até Ivone Lara. “Com a qual, tive a oportunidade de gravar um samba num disco coletânea, com outros tantos sambistas que sempre admirei”, afirma.
“A discriminação que o samba sofreu ao longo dos anos, sendo considerado pela elite como ‘coisa de favelado’, ‘pobre ou ‘coisa de preto’ transformaram o samba, não só enquanto gênero musical, mas também como manifestação cultural do nosso povo. Hoje o samba se tornou um patrimônio imaterial e se tornou um espaço de resistência cultural e de convivência e integração social também”, diz.
“Para mim, a importância de um espaço como esse, está diretamente ligado a tudo que vivi na minha vida, meus amigos, pessoas com as quais eu convivo e aprendi a conviver há de muito tempo. Foi num samba que me reconheci como artista popular e, por meio disso, pude realizar muitas coisas, além das quais receber o reconhecimento das pessoas”.
Sebastião Xavier Filho se tornou compositor de samba enredo, figurinista e depois assumiu a função de carnavalesco
Roberto Inácio/Divulgação
Mas o que são os ‘espaços de resistência’?
Segundo o professor de ciências humanas Rui Mendes Ferreira Moreira, os espaços de resistência são formalizados por grupos de herança negra que tem uma função fundamental na herança negra ou, também, de pequenos grupos sociais que transmitem as heranças culturais entre as gerações, garantindo a igualdade, justiça, preservação e proteção da cultura ali existente.
“O resgate desses grupos e sua preservação e presença é o garantidor que essa herança viva, reviva e fundamente uma sociedade sem preconceito e dogma que limite a dignidade cultural. [Os espaços] São fundamentais para nossa história humana e cultura do Brasil, já que gere uma sociedade multicultural que vivemos”, explica.
O especialista diz que os grupos de resistência podem ser, por exemplo: quilombos, comunidades indígenas, comunidades habitacionais e casas culturais que herdaram singularidades sociais desses grupos. Além disso, grupos religiosos, casas de danças ou manifestações culturais também são exemplos.
“A herança negra é muito presente e importante para as gerações novas. Não podemos apagar isso da sociedade ou deixar em memórias nos museus, devemos manifestar e respeitar”.
Apresentações de dança no Frô Avenida, em Mogi das Cruzes
Gilson Batista da Costa/Arquivo pessoal
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