28 de dezembro de 2024

Do bonde de burro ao metrô: como o transporte público evoluiu em Salvador, que completa 475 anos

Primeiro transporte coletivo da capital baiana foi um bonde de tração animal e surgiu 300 anos depois da fundação da cidade. Dos 475 anos de fundação, completos nesta sexta-feira (29), Salvador “só” teve transporte público nos últimos 175. Dos bondes movidos por burros ao Veículo Leve Sobre Trilho (VLT), que ainda não saiu do papel, o crescimento da cidade foi acompanhado pela mudança na forma como os moradores se locomovem. Ao longo dos anos, o serviço evoluiu, mas misturou pioneirismo e atraso, de acordo com especialistas ouvidos pelo g1.
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Atualmente, a capital baiana tem:
🚌 230 linhas de ônibus, com 1.700 coletivos circulando diariamente;
🚇 2 linhas de metrô, com 38 km de extensão, 22 estações e 35 trens;
🚉 3 linhas do BRT, com cerca de 15 km de extensão e 44 veículos em operação.
O transporte coletivo foi criado em 1662, em Paris, capital da França, pelo filósofo e matemático Blaise Pascal (1623-1662), conhecido por ter inventado a primeira máquina de calcular. Cerca de 200 anos a mobilidade urbana se apresentou em Salvador através de um bonde movido por burros.
Abaixo, nesta reportagem, você vai ver algumas fases que marcaram essa história e quais são as perspectivas para o futuro do sistema na capital baiana.
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O que são os bondes de burro, o primeiro transporte público de Salvador?
Bondes de tração animal circulavam no Largo do Teatro (atual Praça Castro Alves)
Acervo IGHB
Em 1849, 300 anos após a fundação de Salvador, a primeira empresa de transporte público de Salvador foi criada. Conforme Cybèle Santiago e Karina Cerqueira escreveram no livro “Sobre arcos e bondes: resgatando a memória urbana de Salvador”, o responsável pela façanha foi Rafael Ariani, um judeu de origem italiana, naturalizado brasileiro.
Os bondes de burro, também chamados de gôndolas, eram equipamentos movidos à tração animal, cujas rodas deslizavam sobre trilhos e eram puxados por dois a quatro muares. O sistema foi criado nos Estados Unidos (EUA) e posto em funcionamento em 1832, em Nova Iorque.
Em 1845, houve a primeira tentativa de implantar bondes de burro em Salvador, porém, a cidade não estava preparada. “As condições das vias eram péssimas e os animais acidentavam-se muito, chegando inclusive a morrer, além dos veículos serem frequentemente danificados”, escreveram Cybèle e Karina.
Bilhete do antigo bonde de burro que circulava em Salvador
Coleção Rafael Dantas
O Brasil foi o quinto país do mundo a ter bondes à tração animal, após França, Chile e México, além dos EUA. Salvador foi a terceira cidade brasileira a dispor desse tipo de serviço, atrás do Rio de Janeiro e Porto Alegre.
Uma das primeiras linhas de bondes de burro na capital baiana foi o Largo do Teatro – hoje, Praça Castro Alves – x Largo da Vitória. Antes disso, só existiam espécies de “transportes individuais” em Salvador. Eram carruagens, cavalos e cadeirinha de arruar ou liteira. Nesses últimos, negros escravizados transportavam os brancos no ombro.
“Era uma época que a estrutura da cidade era sem calçamento. Tinha lama, quando chovia era um horror. Não existia esgotamento sanitário, ia tudo para a rua. E muitas ladeiras, como é até hoje”, disse o historiador Rafael Dantas.
Qual a importância dos bondes para a locomoção em Salvador e por quê eles foram abandonados?
Um bonde de tração elétrica circula ao lado de um bonde puxado a burros, no início do século XX
Acervo IGHB
Os bondes de burro surgiram no mesmo século que a escravidão foi abolida no país, o que tornou inviável a utilização da cadeirinha de arruar, por exemplo. Além disso, a densidade populacional das grandes cidades aumentou naquela época.
“A circulação por todas as áreas a preços acessíveis era fundamental, de modo que se tornou necessário um meio de transporte adequado a todos. Em Salvador, isso era especialmente importante, por conta do espraiamento da cidade e da sua topografia, muito acidentada”, escreveram Cybèle e Karina.
Um dos primeiros bondes elétricos que circularam em Salvador era da empresa Siemens & Halske
Acervo Siemens-Museum
Ainda no século 19, em 6 de junho de 1897, os bondes elétricos começaram a ser introduzidos em Salvador e dividiram espaço com os bondes de burro. Porém, gradativamente, o segundo modal foi perdendo espaço até desaparecer por completo no início do século 20.
A primeira linha dos novos bondes foi implantada na Cidade Baixa, do Comércio até Itapagipe. Na época, os bondes chamavam muita atenção. Parte da população sequer tinha acesso à energia elétrica, e não havia iluminação pública.
De acordo com o historiador, os bondes tiveram importância na expansão da cidade. “Enquanto os bondes de burro ficavam nas regiões centrais (Centro Antigo e Centro Histórico), o bonde eletrificado ia desde a região da Barra, Rio Vermelho, até o extremo norte, o Bonfim. Tínhamos uma das mais completas linhas de bondes do Brasil. E tudo isso integrado ao Elevador Lacerda e planos inclinados”, detalhou.
Mapa de linhas de bondes elétricos de Salvador
Acervo UFBA
Salvador se tornou uma referência no uso dos bondes, contudo, os ônibus surgiram na década de 1920, movidos a diesel, e roubaram a cena. Eles eram mais rápidos, não corriam o risco de descarrilhar ou parar caso houvesse queda de energia elétrica.
“Os bondes entraram em decadência na década de 1940. Não havia mais interesse da prefeitura em manter o sistema e alguns dos nossos equipamentos foram vendidos até para o Rio de Janeiro, onde o uso de bondes permanece até hoje. Aqui, simplesmente não houve interesse em manter”, explicou.
Durante alguns anos os dois modais dividiram espaço, e acidentes eram comuns. Um dos mais famosos ocorreu em 1952, na frente de onde hoje está sede das Obras Sociais Irmã Dulce (Osid), no Largo de Roma. Na ocasião, um ônibus e um bonde colidiram e Santa Dulce dos Pobres salvou a vida de 12 pessoas.
“A cidade ainda tinha característica rural. Eram muito comuns os acidentes, tanto de carruagens que atropelavam pessoas como os bondes, que não paravam”, afirmou Rafael Dantas, acrescentando que a última viagem de bonde em Salvador aconteceu em setembro de 1961.
Último modelo de bonde que circulou em Salvador, no Terreiro de Jesus
Acervo Prefeitura Municipal de Salvador
O Elevador Lacerda e do Taboão são transportes públicos? E os planos inclinados?
Apesar da crença de que o Elevador Lacerda é apenas um ponto turístico, na verdade, o equipamento surgiu – e até hoje serve – como um meio de transporte importante para ligar Cidade Baixa e Cidade Alta. O mesmo acontece com o elevador do Taboão e os planos inclinados Gonçalves, Pilar e Liberdade – Calçada (PILC). No total, esses ascensores transportam cerca de 14 mil pessoas por dia, segundo a Secretaria Municipal De Mobilidade (Semob).
“Esses equipamentos são formas de facilitar as dinâmicas urbanas. Salvador sempre teve essa questão da geografia por ter uma Cidade Baixa e uma Alta. Eles foram importantes no deslocamento, mas também no desenvolvimento territorial da cidade, pois através das facilidades entre subir e descer, se movimentar, você ajuda a expandir a cidade. Quando isso é conectado com os bondes, fica melhor ainda”, comentou Rafael.
Antes da existência de elevadores, na época da Colônia, havia guindastes que ajudavam a subir mercadorias. Porém, eles não serviam para transportar pessoas. Quem quisesse se deslocar entre as ‘cidades’ tinha que encarar, principalmente, ladeiras íngremes. Para facilitar o percurso, dava para ir de cavalo ou de carreirinha de arruar.
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Elevador Lacerda à época da inauguração, em dezembro de 1873
Acervo Prefeitura Municipal de Salvador
Saiba como acessar os elevadores e planos inclinados de Salvador:
Elevador Lacerda
Ano de fundação: 1873
Itinerário: Praça Cairu, na Cidade Baixa x Praça Tomé de Sousa, na Cidade Alta
Horário de funcionamento: de segunda a sexta das 7h às 22h. Sábados, domingos e feriados das 7h às 19h
Valor: atualmente, de graça
Fluxo diário: 6.592 pessoas
Elevador do Taboão
Ano de fundação: 1896
Ctinerário: Comércio x Pelourinho
Horário de funcionamento: de segunda a sexta, das 8h às 17h
Valor: gratuito
Fluxo diário: 872 pessoas
Plano Inclinado Pilar
Ano de fundação: 1897
Itinerário: Santo Antônio x Comércio
Horário de funcionamento: de segunda a sexta, das 7h às 17h
Valor: gratuito
Fluxo diário: 423 pessoas
Plano Inclinado Gonçalves
Ano de fundação: 1889
Itinerário: Pelourinho x Comércio
Horário de funcionamento: de segunda a sexta, das 8h às 18h.
Valor: R$ 0,15
Fluxo diário: 1.392 pessoas
Plano Inclinado Liberdade/Calçada
Ano de fundação: 1981
Itinerário: Liberdade x Calçada
Horário de funcionamento: de segunda a sexta, das 6h às 18h, e aos sábados das 07 às 13h
Valor: gratuito
Fluxo diário: 4.728 pessoas
Plano Inclinado Liberdade-Calçada, em Salvador
Jefferson Peixoto/Secom PMS
Por que Salvador demorou para ter metrô e investiu tanto em ônibus?
Com o fim dos bondes, em 1961, Salvador passou 53 anos investindo de forma massiva em ônibus, até o surgimento do metrô, em 2014. Durante esse período, os elevadores e planos inclinados, com exceção do Elevador Lacerda, por motivos turísticos, não foram priorizados. O Elevador do Taboão, por exemplo, passou mais de 60 anos fechado até ser reaberto em 2021. Já o plano inclinado Pilar ficou fechado entre 1984 e 2006.
O Trem do Subúrbio, criado em 1860, também foi perdendo prestígio até a sua desativação total em 2021. No início das operações, servia para ligar Salvador até outras cidades da Bahia. “O trem ligava a capital para Alagoinhas e mudou a ótica de ocupação da cidade para o eixo norte, o eixo do Subúrbio. O trem também era conectado aos bondes e ônibus”, disse Rafael.
Com o passar dos anos, o equipamento ficou restrito entre os bairros de Paripe e Calçada. “As malhas férreas foram sucateadas ao longo dos anos. Ao mesmo tempo, os ônibus foram ganhando espaço, principalmente na década de 1970, época que Salvador atinge 1 milhão de habitantes. A cidade era um caos, tudo cheio e, praticamente, só ficaram os ônibus” .
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Antigo trem do Subúrbio Ferroviário de Salvador,
Ascom/Secretaria da Administração do Estado (Saeb)
Para Elmo Lopes Felzemburg, especialista em planejamento de transporte urbano, Salvador se tornou dependente do ônibus de tal forma que até o metrô precisa de ônibus para funcionar. “Em cidades como Paris e Barcelona, você tem metrô em qualquer lugar da cidade. O metrô é porta a porta, praticamente. Aqui, a estação é de difícil acesso para o pedestre. O resultado é que 80% dos passageiros necessitam dos ônibus para chegar nas estações”, afirmou.
O metrô surgiu em Londres, em 1863, e demorou 151 anos para chegar em Salvador, onde começou a ser construído no ano 2000 e demorou 14 anos para ficar pronto. Atualmente, o metrô transporta 370 mil passageiros por dia útil e é o sétimo maior do Brasil, de acordo com a CCR Metrô Bahia.
BRT, VLT, teleférico e túnel subterrâneo… quais são as perspectivas de futuro para a mobilidade urbana em Salvador?
Metrô de Salvador
Divulgação/CCR Metrô Bahia
Existem projetos de mobilidade urbana para Salvador na Prefeitura e no Governo do Estado. Em abril, é esperada a inauguração da última etapa da obra do BRT, que ligará o bairro Cidade Jardim até a Estação da Lapa. Com a novidade, o sistema passará a ter 25 km de extensão e 102 ônibus em operação. Atualmente, 35 mil usuários são transportados pelo BRT, conforme dados da Semob.
A Prefeitura também já anunciou, em janeiro, que iniciou a implantação do Bus Rapid System (BRS), serviço rápido de ônibus na sigla em inglês. A primeira linha ligará a Estação da Lapa ao aeroporto.
A prefeitura também estuda a viabilidade de construção de um túnel subterrâneo de 1km que liga o Campo da Pólvora ao bairro do Comércio, além de um teleférico de cinco quilômetros de extensão no Subúrbio Ferroviário.
Já o trem do Subúrbio foi desativado em 2021 para implantação do Veículo Leve sobre Trilhos (VLT), cujas obras ainda não começaram. Em dezembro de 2023, o Governo da Bahia publicou uma nova licitação para o VLT com orçamento de quase R$ 4 bilhões e previsão de entrega de parte da obra em 2027, três anos depois da previsão inicial.
Imagem do projeto do VLT em Salvador
Divulgação/Casa Civil
Para Felzemburg, esses investimentos estão atrasados e não são aplicados da forma correta. “Hoje, nós fazemos muitas obras sem preocupação em não impactar a beleza da cidade. Isso vale tanto para o BRT como para o metrô. Criamos aqueles monstros visuais. As estações são horrorosas do ponto de vista visual, estético e do bem-estar da população”, analisou.
Conforme o especialista, é importante que os modais tenham acesso facilitado para a população. “A prioridade está sendo em investir no transporte público, mas ainda não vejo uma rede acessível. Esse VLT, por exemplo, vai ter do lado mar e encosta. É pouca acessibilidade. Vamos fazer um VLT e vamos verificar que não vamos dar conforto e agilidade.”
Felzemburg acredita que situações como essa são resultado da falta de planejamento integrado. “Cada administração que chega dá o seu toque de modificação. Veja o caso do metrô que vai para Cajazeiras. O projeto inicial era seguir em frente numa linha reta e atender outros bairros da região. Hoje, para chegar em Cajazeiras, o metrô entra pelo lado esquerdo da BR-324 e faz uma volta num elevado imenso que não permite acesso fácil aos moradores daquela região”, exemplificou.
Essas intervenções de caráter pontual, para o especialista, não formam uma rede de transporte público eficiente. “O sistema de mobilidade tem que ser em rede, como é telegonia, água, energia… se essa rede não é racional, tem problemas de deficiência. Essa rede exige obras físicas e, se não leva em consideração impacto visual e ambiental na cidade, teremos problemas de deficiência também”.
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