Matriculado no curso de enfermagem em Ribeirão Preto (SP) Igor Hagerdon Reis precisou da ajuda de amigos e familiares para custear viagem até São Paulo (SP) e ser analisado. Jovem diz que processo é excludente por causa dos custos e gera incerteza. Aluno de Jaboticabal, SP, faz vaquinha para participar de banca de heteroidentificação da USP
Arquivo Pessoal
Aos 26 anos, Igor Hagerdon Reis, autodeclarado pardo, conquistou a vaga no curso de enfermagem na Universidade de São Paulo (USP) em Ribeirão Preto (SP) e apesar de já estar frequentando as aulas, foi convocado para uma oitiva presencial com a banca de heteroidentificação em São Paulo (SP).
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Sem recursos, ele precisou contar com a ajuda de familiares, amigos e até de pessoas da própria faculdade para viabilizar a viagem de Jaboticabal (SP), onde mora, para a capital.
“É bem complicado porque eles [USP] poderiam ter adiantado esse processo. O aluno tem que se locomover pra São Paulo entendendo toda essa questão logística, de dinheiro, pegar ônibus. Muita gente perdeu vaga por conta dessa dificuldade.”
Convocação
O jovem, natural de Guariba (SP), conta que realizou a matrícula virtual no dia 5 de março e no sistema constou que ela havia sido deferida.
No entanto, após cinco dias, Igor recebeu um e-mail da universidade solicitando uma oitiva presencial para confirmar sua autodeclaração, já que a análise feita nas fotos disponibilizadas por ele para a banca havia sido inconclusiva.
“Eu sempre me considerei pardo, na verdade, preto/pardo. A minha avó é negra, tem toda essa questão. Minha mãe é branca, mas meu pai é pardo, então eu me identifico assim, além de todas as questões fenotípicas presentes (…) Mas eles [banca] ficaram na dúvida se eu era preto, pardo ou branco, por isso me convocaram presencialmente em São Paulo.”
Aluno de Jaboticabal, SP, faz vaquinha para participar de banca da USP
Arquivo Pessoal
Após receber o e-mail, Igor conta que viveu dias de insegurança e medo de perder a vaga no curso de enfermagem, por mais que já estivesse frequentando as aulas. No início de março, o g1 contou a história da estudante Isabele Amaral Batista, de Barrinha (SP), que perdeu as duas vagas conquistadas na USP em Ribeirão Preto após ser reprovada na banca que rejeitou sua autodeclaração de parda.
“Eu passaria pela banca com a incerteza da minha vaga ser deferida ou indeferida, sendo que no sistema está como deferida. Eu tenho nome na lista de chamada, eu até tirei foto no campus com a galera”.
Para deixar a situação ainda mais complicada, como o aluno optou pela modalidade Fuvest de ingresso na universidade, a oitiva com a banca de heteroidentificação seria de forma presencial em São Paulo (SP), o que demandou uma despesa a qual ele não tinha como arcar.
Aluno de escola pública e se dividindo entre o trabalho e os estudos em casa para realizar o sonho do diploma na área da saúde, juntar o dinheiro para bancar a viagem de 342 km até a capital não era simples. Apenas para pagar as passagens de ônibus de Ribeirão Preto a São Paulo seriam necessários cerca de R$ 250.
Foi com a ajuda de familiares, amigos, veteranos, docentes e funcionários da Faculdade de Enfermagem que ele conseguiu viajar e ter a autodeclaração como pardo confirmada.
“Eu tive que mobilizar bastante gente que gosta de mim, que entende minha trajetória pra tornar isso possível, mesmo sabendo que poderia ser um não”.
Aluno de Jaboticabal, SP, faz vaquinha para participar de banca da USP
Arquivo Pessoal
Em nota ao g1, a USP informou que o candidato deve enviar fotografias que vão ser analisadas por duas bancas distintas, que não sabem o veredito uma da outra.
Caso o aluno não seja aprovado nessa fase, ele é convocado para uma oitiva presencial, no caso de aluno que ingressou pela Fuvest, ou virtual, se o aluno foi aprovado pelo Provão Paulista ou Enem.
Matrícula deferida no sistema
Preocupado com a sua permanência no curso, Igor procurou a USP por e-mail e pediu um posicionamento sobre a data da oitiva presencial, já que precisaria faltar ao trabalho, e também se seria possível que fosse feita de forma on-line.
“A USP não se pronunciou de forma direta, simplesmente eles falaram que a gente precisava ir. Se nós não comparecêssemos, nós iriamos perder a vaga e sem nenhum tipo de flexibilidade”.
Aluno de Jaboticabal, SP, faz vaquinha para participar de banca da USP
Arquivo Pessoal
Igor defende a ideia da banca de heteroidentificação para evitar fraudes, mas questiona as oitivas presenciais, porque geram uma despesa não planejada e as pessoas podem não ter recursos para o deslocamento até a capital.
Ao g1, o jovem contou que a logística da ida para São Paulo e a falta de verba fez com que muitos alunos perdessem a vaga, sem terem ao menos a chance de participar da banca.
“Um questionamento que eu fiz por e-mail foi sobre isso, já que o PPI [preto, pardo e indígena] é voltado para essa questão socioeconômica, voltado para essas vagas de ações afirmativas. Por que não viabilizar o acesso à banca?”.
A sensação para o aluno, que é um dos primeiros da sua família a frequentar uma universidade, é de exclusão.
“É um sonho que você está tendo a oportunidade de realizar, mas com muitas incertezas. Dá um frio na barriga só de pensar que você não vai conseguir, é como se aquele lugar não fosse para você”.
Após a troca de e-mails, no dia 11 de março, a USP divulgou as datas das oitivas presenciais, que aconteceram nos dias 14 e 15.
Aluno de Jaboticabal, SP, faz vaquinha para participar de banca da USP
Arquivo Pessoal
Apesar das dificuldades, Igor conseguiu arrecadar o dinheiro e viajou para São Paulo no dia 14 de março.
“A banca falou que o resultado sairia em 48 horas, então a gente teria que aguardar os e-mails. Na sexta-feira à tarde, eu recebi três e-mails, dando boas-vindas, falando sobre o programa de permanência, com acesso tudo certinho”.
A ficha não caiu
Igor conta que sempre quis fazer um curso na área da saúde e que chegou a fazer cursinho uma época, mas, por conta das condições financeiras, teve que focar apenas no trabalho.
“Desde então eu comecei a trabalhar e a estudar por conta própria. Eu estudava sozinho, em casa mesmo, faz um ano e meio, por aí”.
Apesar da alegria após o resultado, Igor compartilha que o processo foi angustiante.
“Eu estou com medo ainda, parece que a ficha não caiu, parece que eu ainda estou no processo de matrícula, de esperar uma afirmação ‘olha, essa vaga é sua, fica tranquilo que agora é só respirar, estudar que vai dar certo’”.
O estudante agradeceu à Escola de Enfermagem da USP, aos alunos, funcionários e professores, além de amigos e familiares que possibilitaram a ida para São Paulo.
“Quero expressar minha sincera gratidão por todo o apoio e a viabilização que me deram. Muito obrigado, sem esse apoio não seria possível estar onde estou hoje”.
O que diz a USP?
Ao g1, a USP explicou como funciona a aprovação de estudantes por meio de cotas raciais.
Segundo a universidade, de acordo com a resolução que estabeleceu o processo de heteroidentificação, a análise de fotografias é feita por duas bancas de cinco pessoas, que se baseiam apenas em fatores fenotípicos.
Caso a foto não seja aprovada por uma das bancas por maioria simples, é direcionada automaticamente para a outra banca.
Nenhuma das bancas sabe se é a primeira ou a segunda vez que a foto está sendo analisada para garantir uma análise cega das fotografias.
Ao final do processo, caso as duas bancas não aprovem a foto por maioria simples, o candidato é chamado automaticamente para uma oitiva presencial (no caso se aluno que ingressou pela Fuvest) e virtual (se o aluno foi aprovado pelo Provão Paulista ou Enem).
Na oitiva, a análise também é estritamente fenotípica. A banca não faz nenhuma pergunta sobre a vida do candidato e analisa, de acordo com o informado pela universidade, cor da pele morena ou retinta, nariz de base achatada e larga, cabelos ondulados, encaracolados ou crespos e se os lábios são grossos.
A matrícula do aluno só pode ser confirmada após aprovação pela banca de heteroidentificação. É possível entrar com recurso em caso de reprova para análise.
O g1 perguntou à USP o motivo da diferença de tratamento de bancas presenciais ou virtuais aos alunos ingressantes da Fuvest e do Provão Paulista ou Enem, mas a universidade não comentou o assunto.
*Sob a supervisão de Flávia Santucci e Thaisa Figueiredo
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