20 de outubro de 2024

Ex-vítima de violência doméstica, cearense estuda para ser advogada e atua em projeto que acolhe vítimas do crime

No ano em que a Lei Maria da Penha completa 18 anos, o g1 traz a história de uma cearense que foi assistida pela lei e também reflete sobre os desafios de combater a violência doméstica no Brasil. Conheça a história de Janne Lanne Ferreira Lopes, cearense de 42 anos que cursa direito e atua em projeto que combate a violência doméstica.
Ismael Soares (Sistema Verdes Mares)
Janne Lopes retomou as rédeas da própria vida aos 40 anos. Depois de passar por dois casamentos em que foi vítima de violência doméstica, ela decidiu retornar ao sonho antigo de ser advogada e hoje atua no projeto ‘Vozes Por Elas’, que acolhe e dá amparo jurídico a vítimas do mesmo crime em Fortaleza.
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Este início de reportagem poderia ter sido completamente diferente se Janne não tivesse despertado para a realidade em que vivia e recebido apoio da família e comunidade. Esta não é a história da maioria das mulheres no Brasil. O país registrou, só no ano passado, 1.463 casos de feminicídio.
📣 No ano em que a Lei Maria da Penha completa 18 anos, o g1 traz a história de uma cearense que foi assistida pela lei e também reflete sobre os desafios de combater a violência doméstica no Brasil.
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Janne Lanne Ferreira Lopes, de 42 anos, cresceu assistindo a mãe e as irmãs sofrerem violências dentro de casa. Já nessa época dizia para si mesma que não passaria por aquilo. Sempre quis ser policial, como seu pai, mas trocou o plano pelo curso de Direito e estuda hoje em uma universidade localizada no Bairro Henrique Jorge, em Fortaleza.
“Já passei por dois casamentos e em todos os dois eu sofri abusos de todas as formas”, contou ao g1.
O recomeço de Janne é relativamente recente, mas bem construído. Desde 2022 está de volta à sala de aula e também tem seu próprio negócio. Ela tem dois filhos, um de cada casamento: a menina tem 15 anos e o menino tem apenas três.
É no Centro de Fortaleza que Janne trabalha. Ela tem um bar e lanchonete e também trabalha em eventos na cidade com seu carrinho de lanches. A independência financeira sempre foi um objetivo. Com emoção, Janne relembra as agressões sofridas no 1° casamento:
“Depois de um ano (que estavam juntos) começou a acontecer de forma abusiva verbalmente com palavrões e xingamentos. Foi passando o tempo e teve ameaças, ele foi me batendo. Comecei a pensar que não tinha mais condições de eu ficar porque ele era muito agressivo, principalmente quando bebia. A minha filha era muito pequena e presenciava”.
O g1 entrevistou Janne na sede do projeto ‘Vozes Por Elas’, onde hoje ela atua acolhendo vítimas do crime.
Ismael Soares (Sistema Verdes Mares)
O despertar de Janne aconteceu quando eles já estavam separados. Era sábado e ela tinha ido para um aniversário na vizinha. Voltando para casa da mãe, onde ela e a filha estavam morando, o agressor apareceu inesperadamente. Com a violência, Janne chegou a desmaiar, mas acordou a tempo de pedir socorro.
“Fui me arrastando pelo chão até chegar no compartimento que estava o telefone fixo. Liguei para uma amiga e chamaram a polícia. Foram os policiais que me levantaram do chão, porque não conseguia.”
Até hoje ela guarda os boletins de ocorrência feitos. Janne viveu essa relação por dois anos, de 2012 a 2014. No fim, pediu uma medida protetiva e se separou definitivamente.
“Eu cresci vendo a violência contra a minha mãe e minha mãe sempre calada. A gente era pequeno e não conseguia entender porque estava acontecendo tudo aquilo. Minha mãe e minhas irmãs passaram por violência. E eu achava que comigo nunca ia acontecer, mas a gente nunca tem mais força que o homem. Eu aguentei calada, mas quando foi essa última vez que ele quase me mata, botei um ponto final. E foi difícil, muito difícil.”, explicou Janne.
Além da própria dificuldade emocional em desatar um casamento, muitas mulheres que passam por violência dependem economicamente dos agressores.
A pesquisa “Redes de apoio e saídas institucionais para mulheres em situação de violência doméstica”, divulgada em 2022 pelo Ipec (Inteligência em Pesquisa e Consultoria Estratégica) mostra que a maioria das mulheres brasileiras não consegue sair de relações violentas por depender economicamente do parceiro e uma em cada quatro insiste no relacionamento por vergonha de que terceiros descubram sobre os episódios de agressão.
Essas mulheres também estão dentro de um ciclo repetitivo de violência. De acordo com o Instituto Maria da Penha (IMP), esse ciclo foi identificado pela psicóloga norte-americana Lenore Walker e tem três principais fases. Acompanhe abaixo:

Para sair da primeira relação abusiva, Janne contou com o apoio da família e de amigos. Hoje em dia os dois não têm mais contato e o homem não paga pensão alimentícia.
“Depois disso fiquei dentro da casa dos meus pais. Eu não ia trocar o certo pelo duvidoso e (queria) ter minha paz, porque não tinha. Eu vivia sob ameaça, xingamentos, pressão psicológica. Eu vivia a vida dele completamente. No fundo ainda dói, porque nunca acaba, fica no nosso psicológico. Mas sinto um alívio muito grande de não ter que estar perto, ouvir a voz.”
A mulher ainda guarda os registros de ocorrência. Durante a entrevista, realizada na sede do ‘Vozes Por Elas’, Janne emocionou-se, mas achou impotante compartilhar sua história com outras mulheres.
Ismael Soares (Sistema Verdes Mares)
“A gente nunca conhece realmente uma pessoa”
Janne contou com o apoio da família para sair das situações de violência. De acordo com especialistas, esta ajuda tem grande importância para a recuperação das mulheres.
Ismael Soares (Sistema Verdes Mares)
O segundo casamento de Janne Lopes também lhe rendeu mágoas físicas e emocionais. Os dois se conheceram em 2015. Com este, ela passou quase 10 anos. O agressor foi se revelando aos poucos. Como era mais velho, ela acreditava que a maturidade seria um bônus. Infelizmente, não foi isso que aconteceu:
“Quando ele se aproximou de mim, fez amizade. Ele disse que já tinha visto o pai da minha filha (o primeiro agressor) e que não gostava. Eu achei que uma pessoa com mais idade poderia ter uma cabeça melhor. Eu tinha traumas, sentia medo, tanto que passei um tempo sem querer nada com ninguém.”
Janne conta que no começo ele aceitou bem a filha dela. Com o tempo, no entanto, ele passou a apresentar uma mudança de comportamento em relação à menina, impedindo que a mãe desse atenção e fosse próxima à criança.
“Ele começou a sair e me deixar só com minha filha e chegava tarde bêbado. Me tratava com xingamentos, agressão verbal. E eu tinha que ficar calada para não chamar atenção da minha filha e dos vizinhos. Na época, fiquei desempregada de novo.”, explicou Janne.
“Então, eu vi que ali também não ia dar certo. Precisava me preparar para poder deixar ele e ter uma vida com minha filha. Mas ele sempre me atrapalhava. Desde o início, eu tinha um sonho e estava me preparando para fazer o concurso da polícia. Ele sempre me atrapalhava e nunca me ajudava. Eles mexem com o psicológico da gente que a gente fica sem atenção para nada”.
Na educação, Janne encontrou uma maneira de retomar a vida e voltou a sonhar em ser advogada. Ela estuda em uma faculdade de Fortaleza e concilia o curso com o trabalho e família.
Ismael Soares (Sistema Verdes Mares)
Mais uma vez, o despertar de Janne veio junto de uma agressão física. Também na rua, em meio aos vizinhos, ele bateu na mulher. Com ele, ela tem um filho pequeno:
“Ele sempre me tratou com abuso, sempre como uma empregada. Eu tinha que fazer tudo e tinha que ser na hora que ele queria. Comecei a trabalhar mesmo grávida. Minha mãe me alertou dizendo que tinha medo de um dia acordar e receber uma notícia ruim. Foi quando eu vi que tinha que fazer alguma coisa para sair”.
Orgulhosa, Janne posa com a blusa do projeto ‘Vozes Por Elas’, que integra desde 2022.
Ismael Soares (Sistema Verdes Mares)
Em 2022, Janne se matriculou na faculdade e viu sua vida se transformar. O sonho de ser policial precisou ser interrompido, mas ela disse ter optado pelo Direito justamente para ajudar outras mulheres que também passam por violência.
“É uma satisfação muito grande para mim. Acho que escolhi a faculdade certa. Tem muitas mulheres que não conhecem seus direitos, onde procurar ajuda. Nosso papel é passar tudo isso para elas e orientá-las também de que formas podem estar sendo agredidas, violentadas.”
“Para o meu futuro agora preciso construir um lar para mim e para meus filhos. Estou atrás disso dia e noite. Dar uma boa educação para eles. Mostrar para minha filha o perigo que as mulheres passam. E ensinar para meu filho como ele deve tratar uma mulher. Não quero que ele maltrate nenhuma mulher.”
‘Vozes por Elas’: projeto combate a violência doméstica e contra a mulher na periferia de Fortaleza
A equipe do projeto ‘Vozes Por Elas’ é composta por alunos e professores da universidade. Eles têm sede na própria UniGrande e atuam no Bairro Henrique Jorge e adjacências.
Ismael Soares (Sistema Verdes Mares)
Janne Lopes hoje integra o projeto de extensão ‘Vozes Por Elas’, que é realizado por alunos do curso de Direito da UniGrande Fortaleza em parceria com a Defensoria Pública do Ceará. O projeto oferta esses seguintes serviços:
Acompanhamento de processo judicial
Encaminhamento para autoridades especializadas
Assistência jurídica integral
Promove atendimento psicossocial
Janaína Rabelo, mestre em Direito pela Universidade Federal do Ceará (UFC) e uma das professoras que coordena o projeto, conta que a ideia – além de acolher mulheres – é também trazer conhecimento sobre o que é a violência e “quebrar os estigmas” que envolvem o tema:
“Porque está em todo momento: está na roda de conversa, dentro da faculdade, no campo de futebol. Em todos os setores da sociedade, a gente acaba recebendo algum tipo de violência doméstica ou de todos os tipos.”, contou Janaína ao g1.
Hoje, o ‘Vozes Por Elas’ também atua em parceria com Organizações Não Governamentais (ONGs) localizadas nos Bairros Parangaba e Bom Sucesso. “Temos sempre uma roda de conversa com elas, levando através de um diálogo tranquilo o que é a violência para que elas possam reconhecer. A mulher precisa realmente entender que ela está passando por uma situação de violência e ela terá forças para romper esse ciclo.”, disse Janaína.
A professora também já passou por situação de violência e conta que esse foi um dos combustíveis para iniciar o projeto em parceria com a outra coordenadora:
“A ideia do grupo é justamente ser uma voz para essas mulheres que muitas vezes são dependentes economicamente, têm filhos com esses homens e acabam não tendo forças (para romper a relação). A gente conheceu situações de mulheres que não denunciavam porque os filhos pediam. Ou outras mulheres que, por exemplo, tiveram câncer e os maridos abandonaram porque não queriam ficar com mulheres ‘mutiladas'”.
Para acessar os serviços gratuitos do projeto, há três maneiras para entrar em contato:
Presencial: Rua Porto Alegre, 1404 – Bairro Henrique Jorge
Telefone: 85 9 87693856
Redes sociais

Informação e educação no combate à violência doméstica
Violência contra a mulher cresce no Brasil
A Lei Maria da Penha prevê cinco tipos de violência doméstica e familiar contra a mulher: física, psicológica, moral, sexual e patrimonial. Thallita Nóbrega, defensora Núcleo de Enfrentamento à Violência contra a Mulher (Nudem) da Defensoria Pública do Estado do Ceará, aponta que conscientizar as mulheres sobre seus direitos é o primeiro passo para combater as violências:
“Principalmente essa violência psicológica faz com que ela não saia desse ciclo de violência e não procure seus direitos. Daí a importância de a gente tentar quebrar esse ciclo através da informação repassada para elas”.
Hoje, a Defensoria Pública atua na assistência jurídica integral e gratuita a mulheres vítimas em situação de violência de gênero nos âmbitos doméstico e familiar. O Nudem tem base na Casa da Mulher Brasileira, no Bairro Couto Fernandes, e funciona sob alguns pilares:
➡️ Atendimento pessoal: consultoria, orientação, informação sobre os direitos das mulheres. Por esse pilar de atuação, o núcleo ajuíza ações de âmbito cível, mas resolve também ações decorrentes de calúnia, injúria, difamação, entre outros.
“Aquela mulher se identificou como vítima de violência doméstica, a gente vai analisar a situação e entrar com as ações cíveis cabíveis: divórcio, pensão alimentícia, reconhecimento de solução de um união estável, busca e apreensão de menores, regulamentação de visita, indenização por danos morais e materiais e investigação de paternidade. Inclusive, ela não precisa fazer boletim de ocorrência. A própria Lei Maria da Penha diz que o atendimento pode ser feito sem boletim de ocorrência”, explicou a defensora.
➡️ Educação em direitos: campanhas educativas, palestras, eventos comunitários e mais, com objetivo de explicar para a mulher o que é a Lei Maria da Penha e os tipos de violência.
“A gente sabe que muitas dessas mulheres que se encontram nesse contexto de violência doméstica não têm noção dos seus direitos. Elas nem sabem a quem recorrer, a quem procurar. Na maioria das vezes em que a gente faz palestras nos bairros, elas se identificam, procuram conversar particularmente. Existe um certo medo em relatar”, comentou Thallita Nóbrega.
➡️Atendimento psicossocial: responsável pelo acolhimento inicial dessas mulheres, com intuito de fazer uma escuta qualificada.
“Através do atendimento psicossocial, a gente consegue fazer articulação com toda a rede de apoio para proteger essa mulher e não só a atuação jurídica.”.

Também no Ceará, mulheres que estão em situação de violência podem contar com o suporte do Ministério Público. Além de atuar em assuntos técnicos e jurídicos, o MPCE desenvolve os projetos na linha educativa, preventiva e reflexiva.
A promotora de Justiça Lívia Rodrigues, coordenadora do Núcleo Estadual de Gênero Pró-Mulher do Ministério Público do Estado do Ceará, destaca três iniciativas:
➡️ Educar para prevenir: projeto voltado para para escolas e universidades onde equipes do MP, tanto em Fortaleza quanto no interior, fazem um trabalho de educação sobre o que é a violência doméstica, como funciona a Lei Maria da Penha e como buscar ajuda.
“A gente leva toda essa reflexão para os estudantes porque acreditamos que essa informação é muito importante. Jovens, seres em formação, devem ter esse conhecimento, porque vivenciam muitas realidades dessas difíceis em casa, na própria família. (A ideia é explicar) o que pode estar ao alcance deles, como também mudar um pouco a mentalidade, a cultura do machismo, do patriarcalismo”, explicou a promotora ao g1.
➡️ Dialogando nas empresas: também na linha educativa, equipes do MP fazem palestras sobre a Lei Maria da Penha, o que está previsto em situações de violência no ambiente doméstico e familiar, e outros detalhes.
“Esse diálogo vai mais direcionado para aquele público primordialmente masculino. Normalmente, são empresas que reúnem um público masculino muito grande”.
➡️ Projeto ‘Eu respeito o não’: baseado no protocolo ‘Não é não’, que estabelece que bares, ambientes de entretenimento e com ingestão de bebida alcoólica devem adotar um protocolo de atendimento para mulheres vítimas de violência dentro desses ambientes – como importunação sexual, entre outros.
“A gente já iniciou esse projeto e estamos com uma agenda organizada para fazer uma capacitação para colaboradores de empresas desse ramo de entretenimento. Vamos trabalhar todas as matérias que envolvem essa dinâmica dos fatos: entender o que é uma violência de gênero, entender o que é que a lei do protocolo ‘Não é Não’ estabelece e vamos ter um profissional de psicologia só para ensiná-los como eles podem acolher uma mulher sem revitimizá-la”, comentou Lívia Rodrigues.
➡️ Rede Mulher: ainda em planejamento, este projeto consiste em uma rede articulada de atendimento a mulheres vítimas de violência doméstica e familiar, estabelecendo um fluxo de atendimento dentro do próprio município sem a necessidade de uma estrutura maior ou especializada. Já foi desenvolvido na cidade de Nova Russas.
“Esse trabalho articulado que nós conseguimos fazer resultou na redução de mais de 80% do índice de violência doméstica no município na época em que nós desenvolvemos (de 2016 a 2019). Essa experiência é o que motivou a gente a criar esse projeto Rede Mulher com extensão para todo o estado”, detalhou a promotora.
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Divulgação/Instituto Maria da Penha
A Lei Maria da Penha completou 18 anos em 2024. Ela foi criada em 7 de agosto de 2006 e faz referência à história de Maria da Penha Maia Fernandes, cearense vítima de duas tentativas de feminicídio e que ficou paraplégica após ter sido baleada pelo agressor.
A lei é considerada um marco na defesa dos direitos das mulheres, mas ainda apresenta desafios. Um dos grandes diferenciais é que ela criou mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, como as medidas protetivas, criação de juizados especiais e também modificou o Código Penal.
“Existem diversas leis que protegem as mulheres, mas a mais conhecida é a Lei Maria da Penha. Ela criou formas de reprimir a violência doméstica contra a mulher. Ela não só estabelece quais são os tipos de violência, ela dá diretrizes de como essa mulher deve ser protegida. Ela foi eleita a terceira melhor lei (desse tipo no mundo)”, explicou Thallita Nóbrega, defensora do Núcleo de Enfrentamento à Violência contra a Mulher (Nudem) da Defensoria Pública do Estado do Ceará.
Para Thalitta, ainda precisamos avançar no sentido educativo do tema para garantir que as mulheres conheçam de fato a lei e seus direitos. “Tudo acaba desaguando nessa falta de conhecimento e no fato de ainda vivermos em uma sociedade machista, preconceituosa, que ainda faz diferença dos direitos do homem e da mulher”.
Um levantamento recente do g1 mostra que há um aumento nas denúncias de violência contra a mulher através do serviço Ligue 180. Em 2023 foram 114.848 denúncias.
O 18º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, divulgado em julho deste ano, mostra que todas as modalidades de violência contra mulheres crescem, inclusive os estupros. O feminicídio, por exemplo, subiu 0,8%. Já as agressões decorrentes de violência doméstica subiram 9,8%.
No Ceará, os dados também assustam: o mapa da Segurança Pública 2024 mostra que o estado teve um aumento de 44,83% em 2023 nos casos de feminicídio – número maior que o ano anterior.
É uma sociedade que não reconhece os direitos da mulher. É algo cultural e que tem que ser combatido desde o início da educação das crianças. Nas escolas, seria interessante se tivesse algo relacionado a uma disciplina para falar disso. A maior dificuldade mesmo é pela sociedade onde a gente vive que tem muito que crescer culturalmente para garantir os direitos das mulheres. E quando eu falo mulheres, eu falo também das mulheres transexuais, travestis.
Crianças e adolescentes também são assoladas pelo problema da violência. Nesses casos, o crime de estupro de vulnerável aparece como a maior ocorrência.
De acordo com os dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, houve aumento do número de estupros no Brasil. Em 2023, foram 83.988 casos registrados. Desse total, 76% correspondem ao crime de estupro de vulnerável – quando a vítima tem menos de 14 anos ou é incapaz de consentir por qualquer motivo, como deficiência ou enfermidade.
“Muitas vezes, crianças e adolescentes vivem no ciclo de violência desde sempre, vendo a mãe sendo agredida, vendo a avó sendo agredida. Elas acabam ‘normalizando’ essa situação”, apontou Thallita.
Casa da Mulher Brasileira no Ceará. O local acolhe vítimas do crime.
Divulgação
A violência que é problema de todos
Janaína Rabelo, coordenadora do ‘Vozes Por Elas’, é também professora de Janne Lopes e a ajudou a superar as violências que sofreu. Segundo especialistas, a mulher precisa ter uma rede de apoio segura.
Ismael Soares (Sistema Verdes Mares)
Foi-se o tempo em que ninguém “metia a colher” em briga de “marido e mulher”. As especialistas ouvidas pelo g1 apontam que a família, vizinhos, amigos e colegas de trabalho são importantes para identificar situações de violência.
Essa comunidade também pode dar auxílio de outras maneiras, como acolher as mulheres com uma escuta ativa e também acreditar nelas quando descreve as agressões. Para a promotora de Justiça Lívia Rodrigues, coordenadora do Núcleo Estadual de Gênero Pró-Mulher do Ministério Público do Estado do Ceará, é importante também a vítima estar munida de informação e reconhecer que está passando por situação de violência:
“A mulher precisa identificar que está sendo vítima de uma violência. É preciso primeiro conhecer as modalidades de violência. Não é só a violência física. O Ceará evoluiu muito em políticas públicas de atendimento às mulheres vítimas de violência. Quando você aumenta as políticas públicas, a consequência é ter um aumento de denúncias. Não necessariamente apresentar uma elevação dos índices significa um retrocesso. A informação está sendo mais difundida”, explicou Lívia.
De acordo com a promotora, o núcleo tem observado uma redução de denúncias das violências mais graves contra as mulheres, como lesão corporal e homicídio. No entanto, denúncias de violência psicológica, perseguição e ameaças aumentaram.
“As formas mais graves não estão se concretizando, porque antes disso, já nos primeiros sinais de violência, elas já estão buscando ajuda. Nós observamos esse fenômeno no estado do Ceará.”.
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“O desafio é reverter toda uma cultura”
Para Lívia Rodrigues, a maneira como a sociedade enxerga a mulher ainda é um dos principais obstáculos no enfrentamento à violência (de gênero, doméstica ou familiar).
O desafio, então, consiste também em reverter uma cultura que, nas palavras da promotora, coloca a mulher como objeto de dominação masculina:
“É como se a mulher estivesse ali como um objeto de poder do homem. A mulher tem mais dificuldade de se firmar, de ter o mesmo direito, ocupar as mesmas funções, exercer as mesmas atividades dentro do seu ambiente doméstico, mas também nas empresas, em órgãos públicos. Ela tem uma dificuldade de ocupar funções de gerenciamento, diretoria, supervisão, porque ela enfrenta a grande barreira do machismo e do patriarcalismo. Essa cultura precisa ser trabalhada”.
A especialista do MP ainda aponta que no Ceará o machismo é “muito forte”. Por isso, trabalhar o tema com crianças e adolescentes é uma maneira de cessar as desigualdades. “Principalmente aqueles que estão iniciando um relacionamento ou que já vivenciam situação de violência em casa. Vão achar que aquele é o comportamento normal de um relacionamento. Precisa quebrar realmente aquele pensamento, colocar aquilo como o que não deve ser replicado”.
A Lei Maria da Penha é considerada uma das leis mais avançadas do mundo na proteção à mulher. Ela prevê todos os mecanismos de proteção, estabelece penas mais graves. Ela prevê medidas cautelares que, além de proteger a vítima, obrigam o agressor a outras situações como, por exemplo, a frequentar um grupo reflexivo para homens autores de violência. Eu acho (a violência doméstica) é uma pauta permanente. Enquanto nós não mudarmos a cultura da nossa região, do nosso estado, da forma como uma mulher deve ser vista e deve ser oportunizada – a equidade em todos os sentidos – a gente não pode sossegar.
Acompanhe reportagem do g1 sobre cearense ex-vítima de violência doméstica que hoje combate o crime.
Ismael Soares (Sistema Verdes Mares)
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