7 de janeiro de 2025

Fã pode tudo? Como uma nova artista pop questionou fama, exposição e idolatria


Chappell Roan pautou discussão nos últimos meses após publicar desabafos e existir limites. Nesta semana, g1 faz série especial com novos rumos do pop para 2025. Chappell Roan fala sobre relação com fãs
Chappell Roan era um nome relativamente desconhecido no início de 2024. Quase um ano depois, a cantora passou a ter mais de 41 milhões de ouvintes mensais no Spotify – e é considerada a maior revelação do pop em muito tempo.
Se a ascensão dela à fama pareceu abrupta para o mundo da música, para Chappell, foi ainda mais difícil de compreender. Com a exposição, a artista decidiu impor limites na relação com os fãs, e movimentou uma nova discussão na mídia internacional. Entenda como Chappell Roan pode representar uma mudança na indústria pop:
Os ‘ensinamentos’ de Chappell Roan para a relação entre fã e artista
Reprodução
Quem é Chappell Roan?
Nascida em Willard, no estado do Missouri, Kayleigh Rose Amstutz tem 26 anos. Ela adotou o nome de Chappell Roan como sua alcunha artística – sua versão “drag queen”.
ENTREVISTA: Chappell fala ao g1
Ela investe na carreira musical há anos, chegou a perder o contrato com a gravadora e quase desistiu do sonho de ser artista. Mas em 2023, Chappell fez uma nova aposta e lançou seu primeiro álbum, “The Rise and Fall of a Midwest Princess”.
Chappell Roan
Reprodução/ Facebook da artista
Neste ano, a virada veio com força. Desde que a cantora se apresentou em festivais como o Coachella e abriu a turnê de Olivia Rodrigo, seus números mudaram drasticamente. Em junho, ela passou a ganhar entre 100 e 200 mil novos ouvintes por dia no Spotify.
Essa ascensão foi atípica, mesmo para artistas pop na era da internet. Chappell teve ganhou fama de forma muito brusca e exponencial, como não se via há anos na indústria, e não teve tempo para se adaptar a essa nova realidade. Paradoxalmente, ela recebeu mais atenção justamente pela forma que respondeu a isso: com uma postura diferente de muitas celebridades, ela se recusou a entrar na fama às custas de sua vida pessoal.
‘Não é normal’
Em agosto, Chappell publicou uma série de vídeos nas redes sociais em tom de desabafo. “Eu não quero o que diabos você acha que tem direito sempre que vê uma celebridade. Eu não dou a mínima se você acha que é egoísmo da minha parte dizer não para uma foto ou para seu tempo ou para um abraço. Isso não é normal”, disse.
“Não ligo se esse tipo louco de comportamento vem junto com o trabalho, a área de carreira que escolhi. Isso não o torna OK. Isso não significa que eu o queira, isso não significa que eu goste”, completou.
Chappell Roan no VMA 2024
Charles Sykes/Invision/AP
A intenção de Chappell foi falar de um caso próprio, mas a cantora acabou pautando uma dicussão mais ampla. “Chappell Roan e seus fãs podem mudar a cultura de fãs tóxicos e celebridades para sempre”, escreveu a Teen Vogue. “As estrelas pop estão chamando a atenção de fãs ‘bizarros’. Já era hora”, apontou o Business Insider.
Além disso, o tópico era uma espécie de tabu entre as celebridades, já que a convenção “velada” é de que um artista deve aceitar e ser grato pelos seus fãs incondicionalmente. Mas após Chappell, celebridades passaram a se posicionar a favor de alguns limites.
“Isso acontece com todas as mulheres que conheço desse negócio, inclusive eu. As mídias sociais pioraram isso. Sou muito grata que Chappell esteja disposta a abordar isso de uma forma real, em tempo real. É corajoso e infelizmente necessário”, comentou a cantora Hayley Williams.
“‘Limites’ não é uma palavra que nós, da Geração X, fomos ensinados. É algo muito importante para desenvolver em sua própria vida. Mas todo ser humano andando por aí com uma câmera no bolso, isso não ajudou nos limites”, disse a atriz Maya Rudolph à “Variety”.
Fã pode tudo?
Shawn Mendes é cercado por fãs na praia de Ipanema.
JC Pereira/Agnews
Para a professora e pesquisadora de fandoms Aianne Amado, a parte prejudicial (e por vezes, fatal) da fama é um tópico antigo, incluindo casos como John Lennon e Marilyn Monroe. Mas ela acredita que nos últimos anos, “especialmente a partir do escândalo do #FreeBritney, essa questão tem, finalmente, ganhado a relevância que merece”.
Mas se por um lado, a discussão passou a ficar mais presente, por outro, ela também ficou mais complexa. Com as redes sociais, artistas passaram a coexistir com seus fãs em uma mesma linha do tempo, e se tornou praticamente impossível distinguir as esferas pessoais e profissionais.
Isso se intensificou graças à influência de nomes como Taylor Swift, que construíram um nome ao borrar a fronteira entre vida e carreira.
“Ao contrário de Roan, existem artistas como Taylor, que gostam da proximidade e incentivam a ideia de amizade entre artista e audiência. E, estando na posição em que ela se encontra atualmente na indústria, acredito que muitos fãs passam a usá-la como paradigma de como o ídolo deve ser e como essa relação deve ser estabelecida”, afirma Aianne.
O problema é que esse sentimento que os fãs criam por um ídolo, sobretudo aquele que se expõe muito nas redes ou em suas letras, é de uma natureza totalitária e platônica – sem limites, aponta a psicanalista Cínthia Demaria.
“O sujeito, ídolo, assume um lugar de objeto para o outro [público], e o outro se vê no lugar de poder devastá-lo, consumir e devastar essa imagem a todo custo. Como a gente vê com outros personagens da mídia, da música, que se tornaram objetos da indústria cultural – como Amy Winehouse, Kurt Cobain, etc. A perda da privacidade coloca essas pessoas sujeitas à superexposição”.
Bebe Rexha é atingida por celular durante apresentação em Nova York
Reprodução/Twitter
A psicanalista acredita que as redes sociais intensificaram e centralizaram essa exposição. Graças à internet, o público (tanto fãs, quanto haters) passou a ter a sensação de que é permitido fazer e falar de tudo com uma celebridade.
“No caso de um desconhecido ou alguém que você tem laços, você não coloca tudo a perder [em uma interação]. No amor platônico com o ídolo, você não tem nada a perder. E isso te autoriza a ultrapassar um limite. E com um artista, você fala o que quiser, faz o que quiser, e acredita que não vai ser penalizado”.
Aianne acrescenta que a relação de idolatria “ainda é unidirecional”, mas parece mais recíproca para o fã. “O ídolo não tem ideia ou ação sobre o fã individualmente, porém o fã passa a ter acesso ao seu íntimo, sua rotina (muitas vezes demonstradas pela própria celebridade, em um story gravado olhando para a tela, ainda de pijama no seu quarto). Isso aumenta o senso de proximidade que o fã sente”.
Uma mudança na indústria?
Chappell já se tornou famosa com as redes sociais e após uma série de acontecimentos centrais na indústria, incluindo a exposição do caso Britney Spears. E assim, a jovem cantora preferiu bancar a imagem de “chata” e “difícil” que se permitir passar pelo escrutínio midiático.
“Não concordo com a noção de que devo uma troca mútua de energia, tempo ou atenção a pessoas que não conheço, não confio ou que me assustam — só porque estão expressando admiração. As mulheres não lhe devem uma razão pela qual não querem ser tocadas ou conversadas”, disse Chappell em um de seus vídeos.
Chappell Roan
Reprodução/Instagram
Para Aianne, Chappell representa uma geração de artistas adepta a discussões de saúde mental e do direito da mulher sobre seu próprio corpo. E por isso, “vai contra a maioria ao prezar pela separação entre sua persona artística e sua persona no dia a dia, com família e amigos”.
Cínthia acredita que a posição da artista pode frustrar o público por ir contra o “amor totalitário” dos fãs, que não compreende limites. “Quando a gente idolatra alguém platonicamente, ela não tem defeito. Mas o encontro real, quando esse amor platônico é furado, ele vai ser sempre frustrante. A pessoa é um sujeito, não tá à disposição o tempo inteiro. O que Chappell faz nessa posição é muitas vezes de frustrar essa expectativa, que ela não vai aceitar ser amada e devastada sem consequências”, explica.
E será que essa posição dela pode causar uma mudança real na indústria? Para Aianne, a resposta tem indicado caminhos positivos. “Por muitos anos, o mercado acatou essa visão e exigia uma postura complacente das celebridades, o que só reforçava esse pensamento. Mas esse discurso vai ao encontro da marca que ela (em sua personagem) estabeleceu com o público, e se trata de um debate caro à geração que a acompanha”.
Mas Cínthia acredita que uma mudança na relação entre fãs e artistas não é tão simples. “Nada justifica uma pessoa pública ser atacada, assediada. É muito importante isso ser levantado, mas não exime Chappell dessa idolatria. E como a idolatria é um amor totalitário, ele não tem garantias. A gente sabe o que fala, mas não sabe o que o outro ouve. Então, um espaço precisa ser criado [pelo artista], de uma privacidade, já que se perde a privacidade com a fama”.

Mais Notícias