9 de janeiro de 2025

Famílias denunciam cobrança por serviços de embalsamento de corpos nos cemitérios de SP; procedimento não é obrigatório


Empresas como Velar e Grupo Maya dizem às famílias que tanatopraxia é obrigatória e cobram valores fatiados do serviço, que chegam a custar R$ 4.900 na versão ‘prime’. Família com bebê nascido morto também teve que pagar pelo serviço, mesmo fazendo enterro em caixão fechado. Empresas negam que cobram serviço. Família enterra ente querido em cemitério do Morumbi, Zona Sul de São Paulo.
Paulo Pinto/Agência Brasil
Indicada apenas para casos de velórios que se estendem por dias ou em casos de corpos que vão viajar a distâncias superiores a 250 km do local da morte, a tanatopraxia tem sido cobrada indiscriminadamente pelas concessionárias que assumiram o serviço funerário da cidade de São Paulo desde o ano passado, segundo denúncia de famílias paulistanas ouvidas pelo g1.
Notas fiscais obtidas pelo g1 mostram que concessionárias como Grupo Maya e Velar têm cobrado pelo serviço até mesmo de família que fez o enterro em caixão fechado de um bebê nascido morto (veja mais abaixo).
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A tanatopraxia é um conjunto de procedimentos para “embalsamar” corpos de pessoas que morreram a tempos superiores a 24 horas ou 48 horas e preservá-los para a despedida da família e dos amigos. Os legistas ou tanatopraxistas retiram os líquidos do corpo para que não haja vazamentos no transporte ou no velório, além de injetarem líquidos que atrasam a decomposição.
O que o profissional faz?
Uma higienização do corpo de dentro para fora, trocando fluidos, como o sangue, por fluido arterial, que contém formaldeído (o formol), a partir da anatomia do próprio organismo;
Por fora, o profissional melhora a estética do cadáver, por meio de necromaquiagem e, se necessário, reconstrução;
A técnica, no entanto, não é uma preservação a longo prazo, como a mumificação. Ela dura cerca de 72 horas;
O procedimento não reverte nada que já tenha acontecido com o corpo. Assim, se ele já entrou em estágio de decomposição, o processo será apenas adiado.
Segundo os especialistas consultados pelo g1, é um serviço não obrigatório para as famílias e indicado apenas nos casos mencionados acima.
Entretanto, nas agências funerárias da capital paulista, a tanatopraxia tem sido apresentada como obrigatória às famílias, com cobranças altíssimas e “completamente fora da realidade”, segundo quem entende do assunto.
É o caso de Jozilmo Lima, pai de uma criança que nasceu prematura e morta no Hospital São Paulo, em novembro de 2024. Ao procurar uma agência do Grupo Maya para o sepultamento no Cemitério Campo Grande, em Parelheiros, extremo Sul da cidade, teve a cobrança de R$ 1.500 pelo serviço de tanatopraxia no bebê incluída nos custos de sepultamento.
A criança nasceu morta no hospital no dia 22 de novembro, e o velório foi feito no dia 24 – mesmo dia em que deixou o hospital – com caixão fechado.
Mesmo assim, o Grupo Maya cobrou de Jozilmo o serviço de tanatopraxia. Os custos totais do sepultamento da criança foram de R$ 3.252.
“Não me falaram que o serviço era opcional. Queriam me cobrar mais de R$ 4.500, e eu falei que não tinha dinheiro para pagar. Diminuíram R$ 1.000, mas eu sabia que estava sendo roubado. Porque já é o terceiro filho natimorto e prematuro que, infelizmente, tenho que enterrar. Na última vez, três anos atrás, paguei R$ 800 para fazer todo o enterro. Agora me cobraram mais de R$ 3 mil”, disse.
Nota do Grupo Maya mostra cobrança de R$1.500 por bebê nascido morto em São Paulo.
Reprodução
“É um absurdo. Num momento de fragilidade, a gente é vítima desse tipo de golpe. Isso é muito revoltante”, comentou.
O g1 consultou o médico legista Celso Domene, ex-presidente da Associação dos Médicos Legistas de São Paulo. Ele afirma que a cobrança obrigatória desse tipo de serviço para crianças natimortas é “ilegal e abusiva”.
“A tanato é indicada para casos onde vai haver contato, encontro da família com o ente que morreu. Se um corpo vai viajar para longas distâncias, se vai haver velório público tempos depois do falecimento. Nesses casos, o corpo precisa estar em bom estado para as despedidas. A cobrança de uma criança que nasce nessas condições e tem enterro em caixão fechado não é só abusiva, ela é ilegal e imoral”, afirmou o legista aposentado.
A ex-superintendente Serviço Funerário de São Paulo, Lucia Salles, afirma que a cobrança indiscriminada da tanatopraxia nas concessionárias paulistanas é fruto da falta de fiscalização da SP Regula – a agência que cuida dos serviços privatizados da capital.
“Essa cobrança indiscriminada não é de hoje. Ela vem desde que o Serviço Funerário passou para a iniciativa privada. Quando o município cuidava disso, a lógica era de proteção do cidadão e cobrava-se apenas o necessário. Agora, a lógica do lucro das empresas fala mais alto, e o cidadão está fragilizado, sendo vítima de extorsão dentro de um equipamento público”, afirmou.
“A SPRegula não fiscaliza nada e as pessoas fragilizadas, passando pelo pior momento de suas vidas, que é a morte de um ente querido, viram vítimas perfeitas das empresas”, completou Salles.
O que diz a SP Regula
O g1 procurou a SP Regula, que, por meio de nota, reconheceu que “a tanatopraxia não é obrigatória” na capital paulista.
“De acordo com os contratos de concessão, esses procedimentos são considerados serviços complementares, que podem ser realizados por clínicas particulares ou por outras instituições públicas e pelas agências funerárias”.
“É fundamental que os prestadores de serviço funerário atuem com ética e respeito, considerando o momento de fragilidade. No que diz respeito às concessionárias, o munícipe que se sentir pressionado ou constrangido a contratar serviços extras deve registrar sua reclamação por meio do Portal SP156 ou da Ouvidoria Geral do Município. Todos os casos são rigorosamente apurados”, declarou a agência.
O Grupo Maya também foi procurado e disse que “a tanatopraxia é recomendada em velórios que ocorram 24 horas ou mais depois do óbito, seguindo critérios técnicos que atestam que o procedimento é fundamental para a conservação adequada do corpo”.
Em relação ao bebê do Jozilmo Lima, a concessionária afirmou que “o caso relatado enquadra-se nessa situação”.
A empresa não respondeu, contudo, o motivo de ter feito a cobrança para alguém que teve o sepultamento em caixão fechado, por tratar-se de criança natimorta.
Preços da Velar SP
Agência funerária do grupo Velar SP no bairro da Liberdade, Centro de São Paulo.
Divulgação/VelarSP
Situação semelhante viveu a socióloga Selene Cunha. Em maio de 2023, uma tia dela morreu e ela precisou contratar os serviços da concessionária Velar. A empresa cobrou R$ 1.800 pela tanatopraxia.
Selene disse que se recusou a pagar a taxa e os empregados da Velar afirmaram que ela não poderia fazer velório com caixão aberto sem a realização do procedimento pago.
“Minha tia morreu na madrugada e nós íamos enterrá-la no mesmo dia. Bati o pé e disse que não pagaria e não havia problema em realizar o velório com caixão fechado. Fui para o cemitério com essa expectativa. Mas chegando na sala de velório, o caixão estava aberto normalmente. Ali eu percebi que estavam querendo me cobrar um serviço desnecessário”, afirmou.
O g1 teve acesso a várias notas fiscais da Velar, onde a concessionária criou vários tipos de tanatopraxia e faz a cobrança por tempo de demora entre a morte e o sepultamento do cadáver.
Em um dos casos, a família pagou R$ 4.900 por uma “tanatopraxia prime, de 24h a 48h”.
Velar SP cobra R$ 4.900 por uma “tanatopraxia prime, de 24h a 48h” em São Paulo
Reprodução
No outro caso, onde o paciente morreu de broncopneumonia no hospital, a “tanatopraxia de 24h a 48h” teve o preço de R$ 2.300.
Em outro terceiro caso, uma “tanatopraxia especial” teve o valor de R$ 1.500.
Velar SP cobra R$ 2.300 por uma “tanatopraxia de 24h a 48h” em São Paulo
Reprodução
Lucia Salles, que era do antigo Serviço Funerário, afirma que essa cobrança categorizada também é ilegal.
“O procedimento de tanatopraxia é um só. Feito da forma correta, com os produtos certos e que obedecem a regulamentação e o respeito ao meio ambiente, dura no mínimo 72 horas. Tanato especial, prime, 24h, 48h horas não existe. É só mais uma forma de cobrança ilegal que não tem nenhuma fiscalização da prefeitura”, afirmou.
A reportagem teve acesso a um parecer técnico de uma perita judicial do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, que faz parte de uma ação que contesta a cobrança ilegal da tanatopraxia por parte de uma funerária do estado.
No documento, a perita diz enfaticamente que o serviço fracionado ou categorizado é “uma clara tentativa de superfaturar um procedimento”.
“Ao que tange aos documentos apresentados, e prints de conversa a tabela de valores para preparações de 24h, 48h, é inadequada, seguindo essa linha de raciocínio, o que se pode ver é uma clara tentativa de superfaturar um procedimento que, após a sua execução, feita de forma adequada, a conservação dar-se-a por pelo menos 72h, sem vazamentos, sem mal cheiro e tão pouco iniciar o processo de decomposição”, escreveu.
“Tanatopraxia é tanatopraxia em qualquer lugar do mundo, sendo excludente a preparação por período. Essa prática é inadequada tanto aos olhos da justiça quanto para o consumidor que via de regra não é grande entendedor das práticas de serviço funerário”, completou.
No documento judicial, a perícia diz ainda que o preço médio da tanatopraxia no país é de R$ 400 e esmiuça o preço do material.
“Tanatopraxia tem o valor médio de R$ 400,00 (quatrocentos reais). Não é um procedimento obrigatório em nenhuma cidade do país, exceto em casos de translado aéreo, pois é uma exigência da ANAC, ou transporte terrestre de média duração, ou KM exigida por lei municipal”, disse.
“Trata-se de um procedimento técnico cujo a troca de fluidos corpóreos por fluidos a base de formoldeido, com a utilização de maquinário específico para injeção e aspiração dos mesmos. Fluidos esses com custo médio de R$ 45,00 o litro (valor máximo), salientando que não se utiliza mais de um litro para preparo de corpos em qualquer situação, e o procedimento é padronizado. Corpos clínicos, corpos necropsiados a quantidade de fluido varia de 600ml a 1lt. Tendo em vista a utilização de insumos, como serragem, papel, algodões, mantos de cetim, papelão o custo médio de um procedimento, não ultrapassando o valor de R$ 400,00 por corpo”, argumentou.
O advogado de Direitos Humanos Adriano Santos, ex-vereador do PT, afirma que já passou da hora dos parlamentares da cidade investigarem as denúncias contra o sistema funerário da cidade.
“Desde o ano passado, as denúncias de cobranças irregulares, má prestação de serviços e preços abusivos só cresceram. Sem contar as multas já aplicadas pela prefeitura e as infrações registradas pela SPRegula que estão paradas. Já passou da hora dos vereadores criarem uma CPI sobre o assunto na cidade”, disse.
“Mesmo fora da Câmara, estou pressionando os membros do meu partido a levarem isso pra frente, em nome do direito dos paulistanos. Do jeito que está, não pode continuar”, afirmou Adriano Santos.
O que diz a Concessionária Velar SP
Por meio de nota, a concessionária Velar disse que “não oferece serviços fora do escopo do contrato, que prevê a cobrança de serviços tabelados e serviços complementares, conforme prevê o contrato de concessão assinado com a Prefeitura”.
“O serviço funerário é contratado pelas famílias para cuidar do processo para uma despedida digna. A Velar SP presta as informações de forma clara e adequada sobre os diferentes produtos que oferece, para que a família possa optar por aqueles que lhe forem mais adequados”, afirmou a empresa.
A Velar SP também afirma que “todos os serviços de tanatopraxia prestados pela empresa são devidamente autorizados por nossos clientes”, apesar de admitir que a obrigatoriedade só é necessária em caso de corpos que passarão por viagem.
“A tanatopraxia proporciona uma despedida e velório sem intercorrências provocadas pela passagem do tempo desde o falecimento. Após a morte, o corpo humano passa pelo processo de decomposição, tanto pela ação de micro-organismos como de autólise e apresenta, previsivelmente, em algumas ou em várias horas, sinais como vazamentos de sangue e fluidos corpóreos, inchaços e mau cheiro. Essas situações ferem a sensibilidade de pessoas no velório, agravam o estado emocional de familiares e prejudicam a despedida e a memória que guardarão do ente querido”, argumentou.
Sobre os preços fracionados praticados pela concessionária, eles dizem que a diferença de preços se dá porque são feitos por “profissionais capacitados e em ambiente preparado”.
Veja a íntegra da nota da Velar SP
“A concessionária não oferece serviços fora do escopo do contrato, que prevê a cobrança de serviços tabelados e serviços complementares, conforme prevê o contrato de concessão assinado com a Prefeitura.
O serviço funerário é contratado pelas famílias para cuidar do processo para uma despedida digna. A Velar SP presta as informações de forma clara e adequada sobre os diferentes produtos que oferece, para que a família possa optar por aqueles que lhe forem mais adequados.
A tabela de preços dos serviços básicos é contratual e todas as nossas agências funerárias, assim como o site da concessionária, têm expostos cartazes sobre os serviços disponíveis, gratuidades e a tabela de preços. A família pode optar ou não por produtos e serviços complementares.
Todos os serviços de tanatopraxia prestados por nossa empresa são devidamente autorizados por nossos clientes, após dadas todas as informações, inclusive de que não são obrigatórios (Resolução SS-28 de 25/02/2013 item 7.3.5), do Poder Executivo de SP). A tanatopraxia é obrigatória, por exemplo, em translado em portos, aeroportos ou alfândegas de acordo com RDC-033 de 08/07/2011.
A tanatopraxia proporciona uma despedida e velório sem intercorrências provocadas pela passagem do tempo desde o falecimento. Após a morte, o corpo humano passa pelo processo de decomposição, tanto pela ação de micro-organismos como de autólise e apresenta, previsivelmente, em algumas ou em várias horas, sinais como vazamentos de sangue e fluidos corpóreos, inchaços e mau cheiro. Essas situações ferem a sensibilidade de pessoas no velório, agravam o estado emocional de familiares e prejudicam a despedida e a memória que guardarão do ente querido.
Em relação aos diferentes preços praticados, informamos que os procedimentos são realizados por profissionais capacitados e em ambiente preparado. Vários fatores são analisados para definir o procedimento mais adequado, tais como causa morte, estado do corpo (há casos de necessidade de reconstrução facial, por exemplo), tempo de óbito e duração de velórios. Esses fatores, uma vez considerados, exigem o uso de produtos e quantidades diferentes, maior tempo de execução e até de profissionais específicos para que o procedimento seja o mais seguro possível.
Essas variáveis orientam as diferenças de preços nos procedimentos”.
Lei em Curitiba
Por conta de cobranças abusivas como estamos vendo na capital paulista, a cidade de Curitiba (PR) aprovou em 2018 uma lei na Câmara Municipal sobre o assunto.
De autoria da ex-vereadora Maria Leticia Fagundes (PV), que é médica legista, a lei 15.161 determina que tanto funerárias quanto o poder público informem de maneira clara quais os serviços são realmente indispensáveis na hora de fazer a preparação do corpo para o funeral.
A regra foi criada, segundo a autora, por justamente as funerárias da capital paranaense induzirem as famílias a pagarem por um serviço que não é necessário na hora da dor.
Sancionada pelo prefeito Rafael Greca (PSD), a lei impõe multa às empresas flagradas cobrando pela tanatopraxia sem a real necessidade.
Na cidade, o serviço só pode ser cobrado nos seguintes casos:
I – quando o corpo necessitar de transporte via térrea para outro município com distância superior a 250 quilômetros;
II – quando o corpo for transladado por via aérea ou marítima e o tempo decorrido entre o óbito e a inumação ultrapassar 24 horas;
III – quando houver indicação do médico assistente que assinou a Declaração de Óbito;
(Nos casos de indicação médica para a tanatopraxia, elencado no inciso III, esta deverá ser comprovada por laudo assinado pelo médico responsável pela Declaração de Óbito ou por laudo do Instituto Médico do Paraná;
(Nos casos de morte violenta – suicídios, homicídios e acidentes – não será realizado nenhum procedimento de conservação do corpo).

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