Foto de julho de 2023, do mesmo avião, mostrava a inscrição “sistema de desgelo inoperante”. O acúmulo de gelo é um evento que merece muito cuidado, mesmo em avião com tudo funcionando. Em simulador na Áustria, Fantástico mostra funcionamento do avião ATR-72-500
A tragédia da Voepass trouxe, além da dor de 62 mortes, uma série de perguntas. O Fantástico foi até a Áustria para entrar num simulador de ATR-72-500, o mesmo modelo do acidente em Vinhedo (SP), e tentar compreender melhor o que aconteceu no último dia 9 de agosto. Como funcionam os mecanismos para proteger o avião do acúmulo de gelo? Esta situação merece muito cuidado, mesmo num avião com tudo funcionando.
Logo após o acidente, o congelamento das asas foi uma das principais hipóteses apontadas por especialistas como possível causa da queda. Uma situação que também teria sido agravada por uma rápida virada das condições climáticas na rota do voo.
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O Fantástico conversou com um piloto superexperiente que já foi investigador de acidentes aéreos durante 15 anos. Somando todos os aviões que já pilotou, o austríaco Dieter Reinsinger tem 18 mil horas de voo. Ele é piloto de testes de ATR, mas também domina aviões de grande porte.
Após instruir os operadores a equipe “vai para o ar”. O comandante explica as condições de voo a 17 mil pés (cerca de 5.200 mil metros) no momento em que antecedeu o acidente. Com temperatura bem abaixo de zero, é esperado que apareça gelo.
Pilotos bem treinados começam com as providências num avião em que os sistemas funcionam e há três níveis de ações. A primeira deve ser tomada logo depois da decolagem.
“Aqui ficam os botões para ligar os aquecedores dos sensores externos de temperatura e velocidade. Por exemplo, dos tubos de pitot. Eles que indicam a velocidade do avião em relação ao ar, então não podem ser obstruídos por gelo. É um aquecimento elétrico, que fica ligado direto. Tem no para-brisa também. Decolou, liga”, explica o piloto.
Num segundo nível, se necessário, mais aquecimento elétrico é acionado.
“O sistema aquece as hélices, as janelas laterais da cabine de comando, as partes móveis – como o leme e o profundor – as pontas das asas. Essa luz azul me avisa que eu liguei o aquecimento elétrico”, diz o piloto.
Esses sistemas existem porque, na altitude em que os ATR voam (por volta de 6 mil metros), pode surgir água supercongelada. Ou seja, gotas de água que já estão abaixo de zero, mas ainda se mantêm líquidas. Se um avião aparecer ali, perturbando o equilíbrio, a água supercongelada vira gelo. E isso pode acontecer rápido, justamente na borda frontal das asas – uma área crítica para manter o avião voando.
“Estamos dentro das nuvens, muito abaixo de zero, e o gelo está se acumulando. Acende um alerta geral de perigo, que pisca e faz barulho, para chamar a atenção mesmo. E uma outra luz indica que o perigo é o acúmulo de gelo. No ATR, da cabine de comando você consegue enxergar as pontas das asas e a borda frontal, então dá para ver se tem gelo acumulando”, explica.
Também existe um pequeno sensor, uma espécie de miniasa, bem ao lado do comandante, mais ou menos na posição do retrovisor de um carro.
“É só olhar para a esquerda que o comandante vai saber se tem gelo acumulado neste sensor”, diz o piloto.
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No simulador, o gelo vai tomando conta, mesmo com todos os aquecedores elétricos já ligados. E aí surge a hora do terceiro nível de providências.
“Aqui no painel, eu preciso acionar o sistema de desgelo. São peças que inflam, para expulsar o gelo das partes da asas, dos estabilizadores na cauda, e do bocal da entrada de ar dos motores”, diz Dieter.
Como piloto, ele diz que aciona o nível 3 quando tem evidência de gelo – quando vê o gelo se acumulando nas partes mais críticas do avião e antes de começar a perder velocidade.
O ATR tem um monitor de desempenho, instalado depois que aconteceu um acidente nos Estados Unidos em 1994, por causa de gelo acumulado. O sistema avisa quando a velocidade do avião está se degradando.
No simulador, o piloto deixa o gelo acumular intencionalmente para mostrar os avisos que surgem no avião de que as coisas estão ficando mais complicadas e surge uma ordem para que a velocidade seja aumentada para reverter a situação.
O avião passa a voar numa altitude mais baixa, onde o ar é mais quente. Assim, o gelo vai derretendo e sendo arrancado das partes mais sensíveis do avião. E o piloto consegue retomar o controle.
Se os sistemas de aquecimento não funcionarem e os pilotos não baixarem a altitude, as luzes de alerta acendem, os alarmes soam e o manche começa a tremer. E, ainda assim, o manche vai para frente sozinho, por um comando da própria aeronave. Isso baixa o nariz do avião, faz com que ele ganhe velocidade e consiga sair do estol.
Mas o ATR 72-500 que fazia o voo 2283 da Voepass, no dia 11 de agosto, não seguiu voando, mesmo com todos esses recursos que, em tese, deveriam proteger o avião.
“A gente não sabe o que aconteceu lá em cima. Mas, numa perda de controle, uma situação de estol, combinada com um deslocamento lateral, pode resultar num parafuso. Aviões com mais de um motor nem passam por testes entrando em parafuso. Com tantos sistemas de proteção e tantos alarmes, um parafuso é um evento muito, muito improvável “, diz o piloto.
Em uma foto de julho de 2023, do mesmo avião que caiu em Vinhedo, mostra a inscrição “inoperante” no sistema de desgelo. Em outra fotografia de outro avião da Voepass, também aparece com a inscrição “sistema de degelo inoperante”. Já uma foto sem data registra o ART com o indicador do nível de combustível inoperante.
Foto de julho de 2023, do mesmo avião da Voepass que caiu mostra a inscrição “inoperante” no sistema de degelo.
reprodução Fantástico
Em uma última imagem, é possível ver um dispositivo crucial para um voo seguro: o monitor do desempenho do avião. O piloto gira um seletor para indicar o peso total da aeronave e o sistema vai informando se o desempenho no ar está correto – se o gelo não está prejudicando o voo. Mas nesta parte aqui falta o botão do seletor. O sistema criado justamente para aumentar a segurança contra o gelo teve problema neste avião da Voepass.
Em nota, a Voepass disse que as falhas do sistema anti-gelo da aeronave PS-VPB, detectadas em julho de 2023, foram todas sanadas. Afirma também que, durante a operação do voo 2283, todos os sistemas estavam em funcionamento e que somente as investigações oficiais poderão apontar as causas do acidente.
Com experiência de 15 anos como investigador de acidentes, as primeiras coisas que Dieter pesquisaria no caso do avião da Voepass são as caixas pretas de voz e de dados. “Tem que ver as condições técnicas do avião. E também o treinamento dos pilotos: quando foi o último treino com os equipamentos de antigelo e desgelo? Mas me parece que eles eram experientes. E eu tentaria montar o quebra-cabeças de por que o parafuso foi do jeito que foi. Estudar a distribuição dos passageiros, e se houve algum deslocamento no compartimento de cargas. Eu nem acho que tenha acontecido isso, mas é preciso juntar tudo para entender a inclinação das asas durante o parafuso”, afirma.
No Brasil, a investigação avança. O relatório definitivo pode levar anos, mas o Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes, da Força Áerea Brasileira, estima já para a primeira quinzena de setembro a divulgação de dados importantes, que finalmente expliquem por que o ATR-72, da empresa Voepass, caiu, em parafuso, num condomínio em Vinhedo.
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