Embora as pesquisas mostrem que não há uma ‘inundação’ de migrantes, as percepções são outra questão. Mas que história os números contam? Macron corrige Trump sobre gastos com a Ucrânia
As recentes observações do primeiro-ministro francês François Bayrou de que havia no país um “sentimento de submersão” por estrangeiros causaram indignação em representantes da esquerda, mas foram bem recebidas pelos conservadores e pela extrema direita.
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“As contribuições estrangeiras são positivas para um povo, desde que sejam proporcionais”, disse Bayrou em uma entrevista à televisão no final de janeiro.
“Mas assim que você tem a sensação de ser submerso, de não reconhecer mais seu próprio país, seu estilo de vida e sua cultura, há uma rejeição”, declarou, antes de acrescentar que a França estava “se aproximando” desse limiar.
Com o uso da palavra “submersão”, que também pode ter o sentido de “inundação”, Bayrou empregou termos mais comumente usados pelo partido de extrema direita Reunião Nacional (RN), atualmente o maior partido no Parlamento, em seus discursos anti-imigração.
O RN, anteriormente conhecido como Frente Nacional, há muito tempo sustenta que essa “inundação” de migrantes é uma realidade na França.
Isso ecoa a noção da “grande substituição” (grand remplacement) — um termo cunhado pelo autor e teórico da conspiração Renaud Camus, que afirma que os imigrantes, e os da África em particular, substituirão gradualmente as populações brancas e cristãs da Europa.
Os dados oficiais da Agência nacional de estatísticas da França (Insee, na sigla em francês) não apoiam essa afirmação. Em 2023, os imigrantes representavam 7,3 milhões da população francesa de 68 milhões — ou 10,7%. Em 1975, eles representavam 7,4%.
A proporção de estrangeiros aumentou de 6,5% para 8,2% no mesmo período de 50 anos. Cerca de 3,5% são da União Europeia, e o restante de países não pertencentes à UE. Estima-se que 0,25% tenham entrado ilegalmente no país.
“Se analisarmos os números, é difícil dizer que há uma multidão esmagadora de estrangeiros”, diz Tania Racho, pesquisadora de direito europeu, que também trabalha para uma ONG que combate a desinformação sobre questões migratórias.
Houve uma progressão constante na proporção de estrangeiros, explica ela, com um aumento de “cerca de 2% nos últimos 10 a 15 anos”, enquanto o número anual de recém-chegados à França, que gira em torno dos 300 mil, permaneceu razoavelmente estável.
Esse aumento reflete uma tendência global, e vários outros países têm proporções mais altas de residentes estrangeiros do que a França, diz Racho.
Por exemplo, 16% da população da Suécia é composta de estrangeiros, enquanto na Alemanha esse número é de 15%. Os Estados Unidos, o Reino Unido e a Turquia também têm uma porcentagem maior de residentes estrangeiros do que a França.
Já uma pesquisa do demógrafo François Heran descobriu que o aumento na França se deve em grande parte à migração econômica e de estudantes, e que os pedidos de residência por reunião familiar diminuíram.
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Uma sociedade pós-verdade
Imigrantes aguardam para deixar a ‘Selva’, um acampamento de refugiados em Calais, na França. O campo, que serviu como base para migrantes que buscam entrar no Reino Unido e é um símbolo da crise migratória na Europa, começou a ser demolido nesta segunda
Philippe Huguen/AFP
No entanto, ressalta Racho, o debate não está necessariamente baseado em números.
“Na verdade, não se trata de números, mas sim da sensação de considerar que há muitos estrangeiros na França. E é mais complicado em um nível científico medir um sentimento”, aponta.
Pesquisas mostram que os franceses tendem a superestimar o número de estrangeiros no país, colocando o número em 23% em vez do dado real de 8,2%.
“Estamos em um mundo em transformação, onde a realidade científica não é mais a base das decisões políticas”, diz a pesquisadora. “Isso é verdade nos EUA e, infelizmente, também está acontecendo na França”, completa Racho.
Ela cita um exemplo do ministro do interior da França, Bruno Retailleau. Quando questionado recentemente sobre a afirmação do CEPII, um instituto público de pesquisa em economia global, de que “os estudos eram unânimes em concluir que a imigração não tinha impacto sobre a delinquência”, o ministro respondeu: “A realidade desmente esse estudo”.
Pesquisas versus ‘sentimentos’
Policiais franceses guardam área enquanto um imigrante, ao fundo, ameaça cortar o pulso com uma faca sobre o teto de seu barraco durante operação para desfazer o campo de imigrantes que ficou conhecido como ‘Selva’, em Calais, no norte da França
Pascal Rossignol/Reuters
Uma pesquisa realizada on-line para o canal de televisão francês BFMTV após os comentários de Bayrou, que entrevistou 1.005 pessoas, constatou que quase dois em cada três franceses (64%) achavam que ele estava certo ao se referir a uma “sensação de inundação de migrantes”. No entanto, pesquisas mais amplas e aprofundadas mostram um quadro mais matizado.
A recém-publicada Pesquisa Social Europeia de longo prazo 2023-2024 — que entrevistou 40 mil pessoas em 31 países — sobre atitudes em relação à imigração constatou que 69% dos franceses não têm uma sensação de inundação migratória e concordam que “muitos ou alguns imigrantes de um grupo étnico diferente [da maioria] devem ter permissão para vir e viver no país”.
Outro estudo realizado pela Destin Commun, a filial francesa do think tank britânico More in Common, constatou que cerca de 60% dos franceses disseram não ter opinião sobre a migração, enquanto 20% achavam que ela estava ligada à identidade nacional.
“A verdade é que esses 20% se manifestam mais”, observa Racho. “Eles são mais [ativos] nas redes sociais, há mais cobertura da mídia sobre as pessoas que têm uma opinião forte sobre a questão, [em vez de] os 60% que não têm”, diz a pesquisadora.
Na temática da identidade, Bayrou pediu um debate nacional não apenas sobre migração, mas sobre o que significa ser francês.
“O que está fermentando há anos é [a questão], o que significa ser francês?”, disse ele à emissora RMC.
“Que direitos isso lhe dá? Quais são os deveres que isso exige de você? Quais são as vantagens que você recebe? Com o que você se compromete quando se torna membro de uma comunidade nacional?”, lançou o premiê.
“Pode ser interessante ter um debate real e profundo, se isso for possível. Isso realmente depende da maneira como é tratado”, disse Racho.
Em um debate anterior sobre identidade nacional, lançado em 2009 sob o comando do ex-presidente de direita Nicolas Sarkozy, foram realizados cerca de 350 debates públicos durante três meses, dos quais não resultaram medidas concretas.
Na época, Bayrou se opôs à iniciativa, dizendo: “Nada é pior do que transformar a identidade em um assunto de confronto político e uso partidário… A nação pertence a todos”, declarou.
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