Capital teve desaparecimentos, tortura e repressão contra movimentos trabalhistas e estudantis. Brasília havia sido inaugurada há apenas quatro anos quando regime militar foi instalado. Foto registra manifestantes no prédio a Esplanada dos Ministérios em Brasília, em 1985, ano do fim da ditadura.
Orlando Brito
“
O aclamado filme “Ainda estou aqui”, , uma produção original Globoplay, conquistou os espectadores com a história e luta de Eunice Paiva, após o desaparecimento do marido Rubens, no Rio de Janeiro, durante a ditadura militar (1964 a 1985).
O professor da Universidade de Brasília (UnB) Mateus Gamba Torres, que pesquisa a ditadura militar há 20 anos, explica que, mesmo inaugurada apenas quatro anos antes do regime, a jovem capital do país também teve desaparecimentos, tortura e repressão aos movimentos trabalhistas e estudantis.
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Nesta reportagem, veja acontecimentos que marcaram a história da ditadura militar em Brasília:
Revolta dos sargentos
Início do golpe
Invasões na Universidade de Brasília
Prisão de Honestino Guimarães
Resistência na escola Elefante Branco
‘Diretas já’
Comissão da Verdade na UnB
Revolta dos sargentos
Tanque na Esplanada dos Ministérios durante a Revolta dos Sargentos, em 1963.
Memorial da Democracia
Antes mesmo do golpe militar, Brasília foi um dos palcos da Revolta dos Sargentos, em 12 de setembro de 1963. O professor Mateus Torres conta que militares reivindicavam que sargentos, suboficiais e cabos pudessem disputar eleições para cargos políticos.
Mateus Torres aponta que até um ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) chegou a ser feito refém. A revolta foi controlada após cerca de 48h e 500 militares foram presos.
Início do golpe
Tanques do Exército em frente ao Congresso Nacional, em Brasília, em data indeterminada de 1964.
Arquivo Público do DF
Brasília foi decisiva logo nos primeiros dias do golpe, como entre 1° e 2 de abril de 1964, quando o presidente João Goulart (Jango) foi deposto:
Segundo o professor Mateus Torres, o presidente do Congresso Nacional, senador Moura Andrade, realizou uma sessão conjunta com senadores e deputados e declarou vacância do cargo ocupado pelo presidente João Goulart;
Moura Andrade afirmou que Goulart saiu do país e deixou a nação “acéfala” e sozinha;
O professor aponta que, na verdade, João Goulart estava em solo brasileiro, em viagem ao Rio Grande do Sul;
Prevendo o movimento dos militares, Goulart estaria planejando uma solução que não resultasse em uma “guerra civil”;
Após a declaração do presidente do Congresso, os parlamentares foram até o Palácio do Planalto. Lá, o então presidente do STF, Álvaro Ribeiro da Costa, deu posse ao presidente da Câmara dos Deputados, Ranieri Mazzilli, como presidente do Brasil.
📌 Veja aqui como começou a ditadura militar no Brasil.
Invasões na Universidade de Brasília
Polícia reprime estudantes em greve durante a invasão da Universidade de Brasília (UnB) em junho de 1977.
Memorial da Democracia
Durante a ditadura, estudantes e professores da UnB foram presos e perseguidos, alguns até torturados. O professor Mateus Torres lembra que a universidade tinha militares monitorando as atividades, aulas, estudantes e professores.
Esses militares, segundo as pesquisas de Torres, agiam “disfarçados”.
“A UnB, provavelmente, foi a universidade que mais sofreu com a ditadura, em vários aspectos”, diz Mateus Torres.
A UnB teve quatro invasões:
9 de abril de 1964: nove dias após o golpe, segundo a UnB, os militares chegaram em 14 ônibus, invadiram salas de aula e revistaram estudantes. Os militares ainda buscaram 12 professores que deveriam ser presos e interrogados;
11 de outubro de 1965: invasão aconteceu em resposta a uma greve iniciada em 8 de setembro, que criticava a demissão de professores. A universidade conta que os militares chegaram de madrugada e proibiram a entrada no local. À época, 223 dos 305 professores se demitiram;
29 de agosto de 1968: foi considerada a invasão mais violenta. Alunos protestavam contra o assassinato de um estudante no Rio de Janeiro, quando militares invadiram o campus e detiveram mais de 500 pessoas na quadra de basquete — 60 delas foram presas. Um estudante chegou a ser baleado na cabeça e ficou em estado grave;
6 de junho de 1977: segundo a UnB, estudantes e professores fizeram uma greve contra a repressão. Militares invadiram a universidade e realizaram prisões.
👉 Em 1964, o reitor Anísio Teixeira foi obrigado a se aposentar. Em 11 de março de 1971, ainda durante a ditadura, Anísio desapareceu, sendo encontrado morto três dias depois.
📌 O reitor da UnB entre 1976 a 1985, foi um militar: José Carlos Azevedo, capitão de mar e guerra.
Prisão de Honestino Guimarães
Documento de identificação de Honestino Guimarães no curso de futurologia ministrado por Gilberto Freyre na Universidade de Brasília
Reprodução
A invasão de 1968 foi uma das ocasiões em que o líder estudantil Honestino Guimarães foi preso. Em entrevista ao g1, em 2018, o amigo de infância de Honestino e ex-aluno da UnB, Cláudio Antônio de Almeida, contou como foi a invasão.
🔎 Em 29 de agosto de 1968, Cláudio estava na aula de economia quando ouviu os gritos: “Prenderam o Honestino! Levaram o Honestino!”
“Saímos da sala, mas ele já tinha sido levado pela polícia. Foi arrastado, carregado e muito espancado”, disse Cláudio.
Estudantes da UnB são detidos dentro do campus em agosto de 1968, na ditadura militar.
Arquivo Central/AtoM/UnB
Naquela invasão, Cláudio e Honestino foram presos. À época, Cláudio viu Honestino “muito machucado, mas sem dizer uma palavra”. Em seguida, ele próprio acabou detido por policiais e foi levado para uma das cadeias no Setor Militar Urbano (SMU).
Preso, Cláudio lembra que foi levado para a mesma cela onde estava Honestino, “que tinha sido torturado”, afirma. “Ele ficou preso por muito tempo nas dependências do Exército.”
“Não nos deixavam dormir, jogavam água na gente e os coronéis nos interrogavam dia e noite. Estava esgotado, sem comer ou dormir. Tudo isso na base de pancadas. […] Atualmente, ali no SMU, prefiro nem passar, porque são as piores lembranças da minha vida”, contou Cláudio ao g1.
🔎 Honestino Guimarães passou a viver clandestinamente e assumiu a presidência da União Nacional dos Estudantes (UNE). Ele desapareceu em 1973 e sua morte foi reconhecida em 1996. O corpo dele nunca foi entregue à família.
🔎 Além de Honestino, os estudantes da UnB Paulo de Tarso Celestino da Silva e Ieda Santos Delgado entraram para a lista oficial dos chamados desaparecidos políticos.
Resistência na escola Elefante Branco
Estudantes na escola Elefante Branco em Brasília, em 1971.
reprodução
Antes de entrar na UnB, Honestino foi aluno do Centro de Ensino Médio Elefante Branco, uma escola pública tradicional da Asa Sul. Fundada em 22 de abril de 1961 – três anos antes da instalação do regime militar – o colégio teve participação ativa na resistência estudantil.
Segundo a União Brasileiras dos Estudantes Secundaristas, Honestino fundou, em 1962, o grêmio estudantil da escola. No ano seguinte, o Elefante Branco foi alvo de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Câmara dos Deputados, criada para “apurar as irregularidades do sistema educacional de Brasília, especialmente no ensino médio”.
🔎 A resolução da Câmara que solicitou a CPI apontou que um dos motivos para sua criação foi o “predomínio político de comunistas na superintendência do ensino da prefeitura de Brasília”.
O grêmio do Elefante Branco ajudou a organizar grêmios em outras escolas do DF, criou jornais estudantis e realizou protestos, é o que aponta a pesquisa de doutorado apresentada na UnB em 2024, “O ‘Elefante Vermelho’ na capital da ditadura: A Escola Pública do Distrito Federal na Ditadura Militar (1960-1985)”, de Eliane Cristina Brito de Oliveira.
🔎 O grêmio do Elefante Branco leva o nome de Honestino Guimarães e segue ativo no DF.
‘Diretas já’
Movimento das ‘Diretas Já’ completa 40 anos
O “Diretas Já” foi o movimento em que brasileiros foram às ruas das principais cidades para exigir o retorno do voto direto para eleição do presidente da República.
Em 1983, o então deputado federal Dante de Oliveira (MDB-MT) apresentou uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) para restabelecer o voto direto para presidente da República. Em 1984, o Congresso Nacional votou a chamada “emenda Dante de Oliveira”, mas ela foi rejeitada.
No entanto, o movimento “Diretas Já” tomou conta do país. Em São Paulo, no Vale Do Anhangabaú, mais de 1,5 milhão de pessoas se reuniram para acompanhar discursos de políticos de diferentes vertentes, como Leonel Brizola (PDT), Ulysses Guimarães (MDB), Franco Montoro (PSDB), Fernando Henrique Cardoso (PSDB) e Lula (PT).
No ano seguinte, em 1985, parlamentares elegeram Tancredo Neves como novo presidente do país. Essa eleição aconteceu pelo voto indireto, ou seja, sem voto da população. Tancredo superou o candidato Paulo Maluf – deputado apoiado pelo regime militar – por 480 votos contra 180;
O presidente eleito, no entanto, jamais assumiu. Na véspera da posse, Tancredo foi internado no Hospital de Base, em Brasília, com fortes dores abdominais. O vice, José Sarney, assumiu a Presidência no dia seguinte, em 15 de março de 1985;
Em 21 de abril, Tancredo Neves morreu, vítima de uma infecção generalizada;
Somente com a promulgação da Constituição de 1988, o Brasil voltou a ter eleições diretas para presidente.
Comissão da verdade na UnB
Reunião da Comissão Anísio Teixeira de Memória e Verdade da UnB, em 2015.
Isa Lima/UnB
Entre 2012 e 2015, a UnB contou com a Comissão Anísio Teixeira de Memória e Verdade (CATMV-UnB), criada para investigar as violações de direitos humanos na universidade durante a ditadura.
👉 Em seu relatório final, a comissão identificou “numerosas situações e episódios de violações aos direitos humanos”, como:
Graves torturas físicas e psicológicas;
Sequestros;
Prisões ilegais;
Censura e violação de comunicações;
Vigilância, controle e perseguição política, com suspensões, expulsões, demissões, recusas de contratação, de matrícula e de viagens para eventos e pesquisas;
Proibição de livros e de imprensa, de reunião, de manifestação política, artística e de ideias.
“Ali [na UnB] houve também sequestros realizados clandestinamente por forças policiais e militares, dos quais resultariam, para algumas de suas vítimas (ainda que não no ambiente acadêmico, mas em lugares próximos), sessões de espancamentos, fuzilamentos simulados e outras formas de tortura”, aponta o relatório final da CATMV-UnB.
‘Ainda estou aqui’
“Ainda Estou Aqui” recebeu três indicações ao Oscar, incluindo Melhor Filme
O professor Mateus Torres destaca que “não poderia estar mais feliz” com o sucesso de “Ainda Estou Aqui” e a busca dos espectadores por mais informações sobre a ditadura.
“Muita gente que não fazia ideia que a ditadura sumia com as pessoas foi ver o filme”, diz o pesquisador.
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