19 de setembro de 2024

Jornadas de até 14 horas de trabalhadores por app precarizam tempo de lazer, diz Unicamp

Pesquisador investiga o impacto do modelo de trabalho de transporte ou entrega por aplicativo no tempo livre e de lazer dos trabalhadores, e como isso afeta a saúde e sociabilidade. Em jornadas de até 14h, trabalhadores por app tem tempo de lazer precarizado
Uma pesquisa da Unicamp sobre a rotina de trabalhadores por aplicativo mostra que as jornadas de trabalho durante um dia típico podem atingir 14 horas enquanto o tempo de lazer, quando existe, fica concentrado em uma “forma de distração precária”, que inclui o consumo de redes socais, e causa impactos na saúde.
Segundo o pesquisador, a jornada extenuante impõe falta de controle do trabalhador sobre o tempo de descanso e pressão por bater metas elevadas, cenário que compromete o lazer e o bem-estar.
“Muitos dos trabalhadores que eu entrevistei só param quando se acidentam”, conta Bruno Modesto Silvestre, doutor em educação física e autor da pesquisa.
O estudo aponta que, apesar da jornada superior a 12 horas por dia, os trabalhadores do transporte e entrega por aplicativo defendem que “fazem o próprio horário sem responder a um chefe”, mas chegam a completar turnos equivalentes aos de operários da Revolução Industrial no século 19.
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“A realidade do trabalhador ‘uberizado’ acaba sendo tão bruta quanto a Revolução Industrial, pois além de trabalhar de sol a sol, e às vezes de lua a lua, quem trabalha por aplicativo não tem nem os finais de semana e os feriados […] É uma relação muito precária de trabalho” .
‘De sol a sol, e às vezes, de lua a lua’: o impacto da uberização para trabalhadores por aplicativo
Arquivo EP
O tema pesquisado por Silvestre está em debate tanto no Supremo Tribunal Federal (STF), quanto nos poderes Executivo e Legislativo, que vão se debruçar sobre o projeto de lei que discute a regulamentação do modelo de trabalho.
A proposta pretende ampliar os direitos do trabalhador e garantir a segurança jurídica, mas críticos acreditam que ela pode reduzir a autonomia e abrir a possibilidade de outros setores utilizarem o PL e pagarem menos por hora trabalhada.
⏰ 12 horas de trabalho sem feriado ou fim de semana
Silvestre investigou o impacto do modelo de trabalho por aplicativo no tempo livre e lazer dos trabalhadores durante a pesquisa de doutorado defendida em setembro de 2023.
Para isso, foram 80 entrevistas com motoristas e entregadores das regiões de Campinas (SP) e Recife (PE) entre os anos de 2016 e 2023.
Nesta pesquisa ele levantou, em um dia típico, os seguintes números:
🚗 motoristas de aplicativo tem 13,99 horas de trabalho;
🏍️ entregadores motociclistas, 12,52 horas de trabalho;
🚴 entregadores ciclistas, 12,51 horas de trabalho.
Ciclistas relatam que trabalham em média 12,51 horas em dias típicos.
Kid Júnior/G1
Quando avalia o tempo destinado ao lazer, identifica que ele acontece entre 30 e 80 minutos durante os dias de trabalho.
Em dias de descanso, as horas são gastas com o consumo de mídia de massa, em especial programas assistidos na TV ou smartphone, além de redes sociais:
🚗 motoristas: 153,5 minutos em mídia de massa e 94,5 minutos nas redes sociais;
🏍️ motociclistas: 155,63 minutos em mídia de massa e 71,25 minutos nas redes sociais;
🚴 ciclistas: 169,38 minutos em mídia de massa e 53,13 minutos nas redes sociais.
Esse comportamento, segundo o pesquisador, “ampliou o processo de fragilização nos exercícios físicos e culturais”, reduzindo o tempo gasto com atividades esportivas e outros hobbies como atividades culturais:
🚗 motoristas: 34 minutos com hobbies e 21 minutos em atividades esportivas;
🏍️ motociclistas: 5,38 minutos com hobbies e 15 minutos em atividades esportivas;
🚴 ciclistas: 46,88 minutos com hobbies e 33,75 minutos em atividades esportivas.
“São jornadas do início da Revolução Industrial que são danosas aos trabalhadores. É como se fosse uma volta ao passado, mas com um trabalho extremamente ligado à tecnologia”, avalia o pesquisador.
Além disso, a pesquisa indica que, para a grande maioria destes trabalhadores, o tempo de folga não ocorre aos fins de semana, e evidencia uma prática dos motoristas e entregadores que burlam a limitação de 12 horas existentes nos aplicativos, alternando o uso entre diferentes apps ao longo do dia para esticar o tempo de trabalho.
Entre os motociclistas, o tempo médio de trabalho em dias típicos é de 12,52 horas.
Acervo EP
🧰 Consequências
Para o pesquisador, as consequências desta jornada extenuante de trabalho impactam negativamente na vida cotidiana do trabalhador de diferentes formas, da saúde debilitada pelas horas gastas, alimentação ruim e sono prejudicado à sociabilidade.
Silvestre conta que um dos entrevistados, que faz entregas de bicicleta, só encontrou um período sem trabalhar quando caiu após colidir contra um ônibus. E antes mesmo de tirar o gesso já tinha voltado para pedalar nas ruas.
Para o pesquisador, o cenário “é consequência de um problema ainda maior de política pública”, pois o direito ao lazer, que é previsto na Constituição, nunca foi efetivado. “Acaba sendo um direito social de segunda ordem”, diz.
Assim, ele conclui que o que chama de “uberização” contribui para a generalização de uma forma de lazer também precária, um lazer residual que acontece em todas as categorias, chegando ao máximo de acabar com férias, finais de semana e feriados.
“É uma relação, uma forma de vida que infelizmente se expande para todas as categorias, é o nosso modelo de sociedade nesse momento. E se coloca como um triste horizonte para praticamente todos os trabalhadores”, finaliza.
*Sob a supervisão de Arthur Menicucci e Fernando Evans
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