Relatório mapeou a fraude no sistema educacional. Repórteres do ‘Fantástico’ percorreram três estados do Nordeste para mostrar quem são os mais prejudicados. Dezenas de pessoas mortas matriculadas na escola, com presença registrada e notas.
Sessenta e oito milhões de brasileiros não concluíram nem a educação básica no país, um número alarmante. No entanto, o volume de alunos matriculados na Educação de Jovens e Adultos (EJA) em 2022 chamou a atenção da Controladoria Geral da União (CGU), que acendeu o alerta em 35 cidades de 13 estados brasileiros, revelando possíveis irregularidades e fraudes no sistema educacional.
O Fantástico teve acesso ao relatório da CGU que mapeia essa fraude. Nossos repórteres percorreram três estados do Nordeste para mostrar quem são os mais prejudicados com esse esquema.
“Foi uma amostragem. Nós escolhemos esses 35 municípios, sobre os riscos maiores de que nesses municípios haveria irregularidades”, diz o ministro da CGU, Vinícius Marques de Carvalho.
“Foi a partir da pandemia que a maioria dos municípios começam a inserir informações falsas no censo escolar para receber irregularmente recursos do Fundeb”, diz Juraci Guimarães, procurador regional da República.
O presidente do INEP, Manoel Palácio, explicou que a fiscalização dos dados é responsabilidade das comissões instituídas em cada município.
O censo escolar, alimentado com os dados enviados pelas prefeituras e governos estaduais, serve de base para a liberação de verbas federais, como o Fundeb, o fundo de manutenção e desenvolvimento da educação básica e valorização de profissionais da educação.
Em 2022, as prefeituras receberam, em média, R$ 5 mil por cada aluno matriculado na EJA. A fraude prejudica a política pública de educação, desviando recursos importantes.
“Nós temos uma quantia de recursos para dar conta de oferecer a essa população a sua emancipação pelo estudo. Se alguém frauda esse número para receber mais recurso, o cobertor é curto, vai ter gente que vai perder esse recurso tão importante para essa política pública tão relevante no Brasil”, diz Carvalho, ministro da CGU.
Nas últimas duas semanas, o Fantástico percorreu mais de dois mil quilômetros em três estados do Nordeste, região com maior número de cidades investigadas.
Girau do Ponciano, no agreste alagoano, tem 36 mil pessoas. Em 2022, segundo o relatório da CGU, mais de 12 mil estavam matriculados na EJA. Isso é 35% da população.
Esse é o terceiro maior número de alunos nessa modalidade de ensino no país, perdendo apenas para capitais São Paulo e Rio de Janeiro.
De acordo com o relatório, estima-se que existam mais de 3 mil alunos fantasmas em Girau: pessoas matriculadas na cidade e em outros locais ao mesmo tempo e pessoas mortas sem nenhuma falta, com notas e aprovação.
O prefeito de Girau é Bebeto Barros, que era vice na gestão passada, quando foi feita a lista. Segundo a CGU, a cidade teria recebido de forma indevida R$ 18,5 milhões. Procurado, o prefeito não atendeu a reportagem.
Em nota, a prefeitura disse que vai abrir uma investigação interna para apurar eventuais irregularidades.
O Fantástico segue viagem para Paquetá, no Piauí, um município com menos de 4 mil habitantes.
A lista da EJA é tão inflada que é como se quase metade da cidade estivesse matriculada. Proporcionalmente ao tamanho, esta pequena cidade tem o maior número de matrículas da EJA do país. A reportagem foi atrás de nomes que aparecem na lista.
Um dos nomes, Luiz Reis dos Santos, já havia falecido em 2017, mas constava como matriculado em 2022 e 2023.
Outro nome, Valdeci Roque Cruz, também falecido em 2018, constava na lista de alunos. A filha de Valdeci, que é professora na mesma escola, afirmou que ele foi retirado do censo assim que faleceu.
A prefeitura de Paquetá recebeu dinheiro do governo federal pela inscrição de Valdeci, como se ele estivesse vivo e estudando normalmente, segundo a CGU.
O Fantástico ainda descobriu um aluno matriculado em Paquetá e ao mesmo tempo preso em Rondônia, além de um sargento aposentado do Distrito Federal e sua esposa, localizados em Goiás.
De volta ao Piauí, na prefeitura de Paquetá para buscar explicações sobre os mortos na lista. O prefeito atual, Clayton Barros, é do mesmo grupo político do prefeito anterior, hoje deputado estadual, Thales Coelho.
A reportagem tentou falar com o prefeito Cleiton Barros sobre a fraude na EJA. O assessor jurídico da prefeitura, Daniel Leonardo, afirmou que todos os alunos matriculados comparecem às aulas e que a lista de presença foi enviada ao Ministério Público para investigação.
A prefeitura enviou uma nota dizendo que os nomes de mortos na lista foram retirados em 2020, mas que, por um erro do sistema, continuaram ali. A nota diz ainda que o problema foi relatado ao INEP e os nomes retirados depois.
O ex-prefeito Thales Coelho, agora deputado, informou que não teve conhecimento de irregularidades na EJA durante sua gestão.
A reportagem foi a São Bernardo, no Maranhão, de 27 mil habitantes. Lá, teve acesso a uma mensagem de áudio de uma agente de saúde espalhando informações falsas para captar alunos para a EJA.
A equipe tentou falar com a ex-secretária de Educação, Raquel Carvalho, e com o ex-prefeito João Igor, mas não obteve resposta.
Em São Bernardo, uma família inteira estava matriculada na EJA de 2022, apesar de não estudarem mais. O lavrador José Agripino de Souza afirmou que ninguém autorizou a matrícula.
O procurador regional da República, Juraci Guimarães, classificou a situação como um escândalo no sistema de educação, especialmente em um estado pobre como o Maranhão.
“É um escândalo no sistema de educação, políticas públicas existentes, de uma deficiência, ainda mais num estado pobre como o estado do Maranhão, com altos índices de analfabetismo”, diz Juraci Guimarães, procurador regional da República.
A gestão atual da cidade não quis comentar o caso.
No Maranhão, dez cidades são investigadas por fraudes na EJA pela CGU, Ministério Público Federal e Tribunal de Contas do Estado.
Após as investigações, prefeituras dessas cidades afirmaram ter corrigido os dados inflados de matrículas. No Maranhão, o número de alunos matriculados na EJA em 2024 caiu 30% em relação a 2023, e em São Bernardo, a redução foi de mais de 67%.
Em Alagoas, na cidade de Olho d’Água Grande, o município informou ao MEC que 106 alunos se matricularam na EJA em uma pequena escola no povoado de Gravatá, mas moradores afirmam que o número nunca passou de 30.
A lista de alunos incluía pessoas falecidas, como o filho do Sr. José, Cícero, que morreu em um acidente de moto em 2022, e não morava na cidade.
A prefeita é Suzy Higino, que também não estava na prefeitura.
A coordenadora pedagógica Claudirene Cordeiro explicou que todos os alunos matriculados na EJA regular também fizeram a EJA profissionalizante.
No entanto, a CGU constatou que a cidade não conseguiu comprovar a realização dos cursos e recebeu indevidamente mais de 3 milhões de reais de verba pública. A prefeitura justificou que os cursos não foram realizados devido à chuva e encaminhou fotos dizendo que foram realizados no ano seguinte.
Segundo a CGU, o prejuízo com essa fraude passou de 66 milhões de reais. O procurador regional da República, Juraci Guimarães, destacou a necessidade de procedimentos mais restritos de autoverificação e controle para dificultar a inserção de dados falsos.
Apesar das fraudes, o pescador Mosaniel, que concluiu a EJA, agora cursa Ciências da Natureza na Universidade Federal do Piauí. Ele destaca a importância do EJA como um programa que resgata sonhos e oferece oportunidades de estudo para aqueles que tiveram que abandonar a educação.
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