20 de setembro de 2024

Máfia do cigarro controla venda em 45 das 92 cidades do RJ e cresce à base da bala: polícia apura 20 crimes violentos ligados a disputas

Negócio movimenta mais de R$ 200 milhões só no Rio, e sonegação causa prejuízo de bilhões. Bandidos se associam a tráfico e milícia para controlar territórios, e polícia apura se Adilsinho, novo patrono do Salgueiro, está por trás da máfia que não para de crescer. Máfia do cigarro controla 45 das 92 cidades do RJ e se expande à base da bala
Dezenas de homicídios, desaparecimentos, tentativas de assassinatos, dívidas resolvidas a bala. Propinas, lavagem de dinheiro, contrabando e sonegação fiscal. Essa é uma parte da lista de crimes da máfia do cigarro ilegal, que tem crescido nos últimos anos no Rio e já controla ao menos 45 dos 92 municípios do estado (veja abaixo a lista das cidades).
Em quase metade do Rio de Janeiro, incluindo a capital e a Baixada Fluminense, a venda de cigarro paraguaio está proibida, e só os maços produzidos pela quadrilha podem ser vendidos.
Durante semanas, o RJ2 levantou dados junto à polícia e à Justiça para traçar o panorama de um dos setores mais lucrativos do crime organizado – e que tem relações com a contravenção, com as milícias, com o tráfico de drogas e até com o carnaval.
Trata-se de um negócio de bilhões: de 2018 a 2023, segundo dados do Inteligência em Pesquisa e Consultoria Estratégica (Ipec) só de sonegação fiscal, o mercado do cigarro falsificado deixou de pagar R$ 10 bilhões em impostos em todo o Brasil em cinco anos – mais de R$ 2 bilhões só no Rio de Janeiro.
Antes, os maços eram contrabandeados do Paraguai. Hoje, os bandidos já falsificam aqui no Rio. A máquina de seis toneladas que sumiu da cidade da polícia é prova disso. Nesta segunda-feira (1), uma operação teve buscas contra suspeitos para tentar esclarecer o crime.
Mortes, desaparecimentos e sequestros
Em comunidades, a regra é clara: só pode entrar cigarro do bando. Quem desrespeita, corre risco de vida.
A quadrilha transformou a ilegalidade em monopólio. Um negócio lucrativo e disputado com extrema violência.
Quem atravessa o caminho dos interesses do grupo sofre ameaça de morte e extorsão. Se não aceita participar, morre.
Um levantamento feito pelo RJ2 nas delegacias de homicídio da capital e da Baixada Fluminense contabilizou, de 2022 para cá, ao menos 20 ocorrências entre mortes e tentativas de assassinato, desaparecimentos e sequestros ligados à máfia do cigarro.
Entre as ocorrências, foram ao menos:
6 em municípios da Baixada (São João de Meriti, Belford Roxo, Nilópolis, Nova Iguaçu e Duque de Caxias)
6 na Zona Oeste do Rio
5 na Zona Norte 1 no Centro da capital
Dono de tabacaria assassinado
Como o dono de uma tabacaria no Recreio, na Zona Oeste. Segundo as investigações da Delegacia de Homicídios, Cristiano de Souza foi morto porque se negou a vender cigarros da máfia.
A quadrilha descobriu que ele comprou uma máquina para fabricação própria de cigarros e planejava expandir os negócios.
Em junho do ano passado, Cristiano foi assassinado, por volta do meio-dia, numa rua tranquila do bairro.
Camelô desaparecido e mulher sequestrada
Anderson Reis dos Santos foi outra vítima. O camelô vendia cigarros paraguaios em Nilópolis e foi ameaçado pela quadrilha.
A mulher de Anderson chegou a ser sequestrada como forma de intimidar o camelô; o crime aconteceu em dezembro de 2022.
Anderson não teria cedido aos interesses do grupo. O camelô está desaparecido, mas informações colhidas pela polícia demonstram que ele teria sido assassinado pela quadrilha.
‘Matei para caralh*’, diz bandido em áudio
Diálogo que consta na investigação mostra bandidos falando sobre crimes
Reprodução/TV Globo
Um áudio que consta na investigação de um dos assassinatos ligados à máfia do cigarro mostra como o bando age:
“Fod***, deixa o corpo aí mesmo (…) Eu quebrei (matei) uns três, aí foi fod*. Matei pra caralh*. Taquei fogo no corpo dele, e o povo achou que era balão (risos)”, revela o áudio.
Mais de 80 tiros em execução
A forma como essa outra vítima foi morta relata a brutalidade do grupo. Tiago Barbosa estava a bordo de um BMW avaliada em mais de R$ 1 milhão em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, quando o veículo foi atingido por mais de 80 tiros.
Nem a blindagem do carro foi capaz de impedir a execução. O inquérito aponta a disputa pelo controle da venda ilegal de cigarros como motivo para o assassinato.
Adilsinho investigado
Máfia do cigarro: Polícia aponta integrante do jogo do bicho como chefe do esquema criminoso
Investigações da Polícia Civil e Federal mostraram que o homem por trás do monopólio da venda de cigarro ilegal no Rio é Adilson Oliveira Coutinho Filho, o Adilsinho.
O nome dele ou de pessoas ligadas a ele aparecem nas investigações da maioria dos homicídios investigados na capital e na Baixada Fluminense em decorrência da disputa do cigarro.
Os detalhes de como age a quadrilha da qual ele foi acusado de chefiar foram revelados por duas investigações recentes – do Gaeco, órgão do Ministério Público do Rio, e da Polícia Federal.
Nas operações “Smoke Free”, de novembro de 2022, e “fumus”, no ano anterior quase 70 mandados de prisão foram expedidos pela Justiça. Entre os alvos, estavam Adilsinho e Cláudio Coutinho de Oliveira.
O advogado de Adilsinho afirmou que reitera que a inocência do seu cliente.
Giro de R$ 45 milhões
As investigações apuraram que o grupo teria movimentado mais de R$ 45 milhões com negócios ilegais e provocado um prejuízo de cerca de 2 bilhões aos cofres públicos com sonegação de impostos.
Nas duas ações, foram cumpridos 125 mandados de busca e apreensão em Duque de Caxias e Campos dos Goytacazes, além da capital.
Entre os endereços visitados pela polícia, estavam fábricas de cigarro de propriedade de Adilsinho.
Ações suspensas no STJ
As duas investigações estão suspensas pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ).
Embora Adilsinho tenha sido denunciado tanto pelo Ministério Público do Rio quanto pelo Ministério Público Federal, seus advogados conseguiram anular no STJ as provas colhidas a partir de uma colaboração premiada.
A defesa argumentou que as operações foram feitas apenas com base no relato de um delator. O colaborador era de um ex-integrante do grupo criminoso.
Como funciona o mercado?
A marca Gift já era vendida ilegalmente no Rio – contrabandeada do Paraguai e rendendo milhões aos responsáveis pelo crime.
Para ter o monopólio da venda ilegal, a máfia do cigarro no Rio passou a falsificar os cigarros em fábricas como a que foi alvo da operação que apreendeu a máquina furtada da Cidade da Polícia Civil, história revelada pelo RJ2 no mês passado.
Nestes locais, a mão de obra era inicialmente paraguaia – para que os cigarros mantivessem a qualidade daquele país.
Mas a fabricação hoje já é feita por brasileiros. Após produzirem os cigarros, a máfia obriga donos de bancas de jornal e comerciantes a venderem o produto falsificado.
Fiscalização nos pontos de venda
Os bandidos fiscalizam constantemente os pontos de venda. Em um diálogo, criminosos trocam fotos sobre um cigarro da marca Gift encontrado no comércio.
“É nosso?” pergunta um deles, enviando fotos da frente, do verso e um vídeo do cigarro.
“Nãão”, responde o comparsa.
As conversas estavam no celular apreendido com José Ricardo Simões, um dos acusados da morte de Marquinhos Catiri.
Ele era apontado como chefe de uma milícia na Zona Oeste e, segundo a Delegacia de Homicídios, a morte foi provocada por desavenças com o grupo de Adilsinho.
O bicheiro chegou a ter a prisão temporária decretada como mandante deste crime. A ordem foi expedida pela 1ª Vara Criminal. Ele chegou a ficar foragido da Justiça, mas dias depois a ordem de prisão foi cassada pela 7ª Câmara Criminal.
Defesa por nova cúpula do bicho
No mundo da contravenção, Adilsinho defende a criação de uma nova cúpula do jogo do bicho e, assim como os antigos bicheiros, quer uma escola de samba pra chamar de sua. No mês passado, assumiu a presidência de honra do Salgueiro.
Conversa apreendida em operação contra a máfia de cigarros
Reprodução/TV Globo
“Jogo de bicho, contravenção é família. É máfia. Maior máfia do Brasil. Não entra ninguém de fora”, diz um dos comparsas.
“O cara tem uma moral do caralh*. Ele (Capitão Guimarães), quando entrou (na contravenção), lembrou Adilsinho, saiu matando os bicheiro todinhos (risos).”, responde outro.
Na conversa acima, apreendida pela polícia no celular de José Ricardo Simões, o acusado de envolvimento na morte do rival Catiri, também fala sobre a ambição da máfia do cigarro e diz que o produto ilegal não interessa aos bicheiros da velha guarda, como Capitão Guimarães.
“Capitão Guimarães não se mete nisso, não, no cigarro. É tudo de Duque de Caxias”, diz.
Caxias é uma referência a Adilsinho, segundo a polícia. O bicheiro controla parte do jogo no município e, recentemente, expandiu os negócios tomando áreas de Zona Sul, Centro e Zona Norte da capital, áreas que eram controladas pelo bicheiro Bernardo Bello.
Luxo e futebol
A receita para a notoriedade também inclui luxo e futebol. Em 2010, Adilsinho fundou um clube – o Clube Atlético Barra da Tijuca, agremiação que chegou a disputar divisões inferiores do campeonato estadual.
No atlético, Adilsinho, além de fundador, também atuou como jogador e batedor oficial de pênaltis.
Convite da festa de Adilsinho tinha vídeo com ares de ‘Poderoso Chefão’
Reprodução
Em 2021, durante a pandemia de Covid-19, uma festa dele no Copacabana Palace chamou a atenção pela aglomeração, em tempos de distanciamento social e pela lista de convidados ilustres
No convite da festa de 51 anos, a trilha do filme “Poderoso Chefão”, que retrata a máfia italiana (veja na reportagem abaixo, de junho de 2021).
Alvo de operação da PF deu festa no Copacabana Palace para 500 pessoas na pandemia
Famosos como Ludmilla, Gusttavo Lima, Alexandre Pires e Mumuzinho foram contratados para cantar no evento. A festa custou R$ 4 milhões, segundo apuração da TV Globo.
“Isso dá muito dinheiro. Isso é bolsa de valores, cigarro, rapaz. Caralh*… não precisa você fazer parada errada, não, pô. Pega suas caixinhas, trabalha com seu pacote. Lugar nenhum você vai ganhar o que você ganha no cigarro. Lugar nenhum. Nem concurso público, nem nada”, diz homem em um dos áudios da investigação
No submundo do crime, o monópolio da venda cigarro ilegal passa por territórios dominados por milícia e tráfico. Não se vende produto ilegal nessas áreas, sem negociações entre as quadrilhas.
“O produto brasileiro não pode ser mais barato que R$ 5″. É o preço mínimo”, diz Edson Vismona, presidente do Fórum Nacional Contra a Pirataria.
O RJ2 apurou que, em áreas de milícia, o fornecimento do cigarro é feito pela máfia, mas a venda é dos milicianos.
Já em regiões de tráfico, quem vende o cigarro ilegal e quer exclusividade do seu produto deve pagar um pedágio aos traficantes.
Os 45 municípios onde atua a máfia do cigarro:
Areal
Angra dos Reis
Araruama
Arraial do Cabo
Barra Mansa
Barra do Piraí
Campos dos Goytacazes
Duque de Caxias
Engenheiro Paulo de Frontin
Iguaba Grande
Itaguaí
Itaboraí
Itatiaia
Itaperuna
Mangaratiba
Miracema
Miguel Pereira
Mesquita
Magé
Maricá
Mendes
Nova Iguaçu
Niterói
Porto Real
Piraí
Paracambi
Paty do Alferes
Porciúncula
Petrópolis
Pinheiral
Rio Bonito
Rio Claro
Rio das Ostras
Resende
Rio das Flores
Rio de Janeiro
São Pedro da Aldeia
São João de Meriti
Saquarema
São José do Vale do Rio Preto
Tanguá
Teresópolis
Vassouras
Valença
Volta Redonda
O que dizem os citados
A defesa de Adilsinho afirma que ele é inocente.
A TV Globo tenta contata com os outros citados na reportagem.

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