25 de dezembro de 2024

McDonald’s e supermercados são acusados de usar trabalho análogo à escravidão no Reino Unido

Sinais de alerta passaram despercebidos enquanto as vítimas trabalhavam em um restaurante e em um fornecedor de supermercado, segundo reportagem investigativa da BBC. Nove vítimas da escravidão moderna foram forçadas a trabalhar em uma franquia do McDonald’s no leste da Inglaterra
Reprodução/Facebook
Pavel estava sem-teto na República Tcheca, vivendo em condições precárias e à procura de uma oportunidade que o tirasse da miséria.
Quando foi abordado por uma quadrilha que prometia um emprego bem remunerado no Reino Unido, ele acreditou que aquela era sua chance de recomeçar a vida, de ter estabilidade e dignidade.
Porém, Pavel rapidamente descobriu que a promessa de um futuro melhor não passava de uma armadilha que o aprisionaria em um ciclo de trabalho exaustivo, exploração e humilhação em uma franquia do McDonald’s, segundo revelou uma reportagem investigativa da BBC.
Assim como Pavel, outras 15 vítimas foram enganadas e levadas ao Reino Unido pela quadrilha liderada pelos irmãos Ernest e Zdenek Drevenak, todos vindos da República Tcheca e em situação de vulnerabilidade.
Alguns já haviam enfrentado falta de moradia ou problemas com vício, o que os tornava alvos fáceis para os traficantes de seres humanos.
A quadrilha não apenas confiscou seus passaportes, mas também usou o medo e a violência para mantê-los sob controle.
“Eles tratavam suas vítimas como gado”, disse a detetive Melanie Lillywhite, da Polícia Metropolitana, que participou das investigações, descrevendo as condições desumanas que Pavel e seus colegas enfrentaram.
Segundo Lillywhite, as vítimas eram alimentadas apenas o suficiente “para mantê-las funcionando” e controladas por “algemas invisíveis” — monitoradas por câmeras de segurança, impedidas de usar telefones ou a internet e incapazes de falar inglês.
Pavel foi alvo da gangue quando estava sem-teto na República Tcheca
BBC
‘Tínhamos medo’
Pavel foi forçado a trabalhar em uma filial do McDonald’s na cidade de Caxton, no condado de Cambridgeshire, no leste da Inglaterra, por até 70 horas semanais, recebendo apenas algumas libras por dia de seus exploradores, enquanto o resto de seu salário era desviado para contas bancárias controladas pela quadrilha.
Era uma rotina de exploração e cansaço extremo, que deixou marcas permanentes em sua saúde física e mental.
“Você não pode desfazer o dano à minha saúde mental, isso sempre vai me acompanhar”, disse Pavel à BBC.
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Ele conta que vivia com medo, não apenas do trabalho exaustivo e das condições de vida insalubres, mas também das ameaças constantes dos traficantes.
“Nós tínhamos medo”, afirmou. “Se fôssemos fugir para casa, [Ernest Drevenak] tem muitos amigos na nossa cidade, metade da cidade era amiga dele.”
O controle da quadrilha sobre as vítimas era meticuloso. As vítimas não falavam inglês, e suas candidaturas de emprego eram preenchidas pelos próprios traficantes, que até acompanhavam as entrevistas como tradutores, garantindo que tudo corresse conforme os planos da quadrilha.
A exploração também era evidente nos salários, que eram pagos em contas bancárias em nome de outras pessoas.
Pavel, à esquerda, e Roman renunciaram ao anonimato para compartilhar suas histórias de tráfico para o Reino Unido e de serem forçados a trabalhar em uma filial do McDonald’s
Reprodução/Facebook
No caso de Pavel e outras vítimas que trabalhavam no McDonald’s, os salários de quatro homens, totalizando 215 mil libras (cerca de R$ 1,6 milhão em valores atuais), foram transferidos para uma única conta controlada pela quadrilha.
As vítimas trabalhavam longas horas no McDonald’s — até 70 a 100 por semana. Uma delas chegou a trabalhar um turno de 30 horas. A Organização Internacional do Trabalho (OIT) da ONU diz que horas extras excessivas são um indicador de trabalho forçado.
Enquanto isso, outras vítimas foram forçadas a trabalhar em uma fábrica de pães do tipo pitta, ou pão sírio, a Speciality Flatbread Ltd, com instalações em Hoddesdon, Hertfordshire, e Tottenham, no norte de Londres.
A fábrica fornecia produtos de marca própria para os principais supermercados do Reino Unido, como Asda, Sainsbury’s, Tesco, Co-op, Waitrose e M&S.
Nove vítimas trabalharam lá entre 2012 e 2019, e todas enfrentaram condições de trabalho igualmente abusivas.
Elas viviam em acomodações apertadas e improvisadas, como um barracão com vazamentos ou um trailer sem aquecimento.
Enquanto lutavam para sobreviver com apenas algumas libras por dia, os ganhos de seu trabalho eram usados pela quadrilha para financiar uma vida de luxo — incluindo carros caros, joias e até uma propriedade na República Tcheca.
Pagamentos em contas alheias
Durante anos, sinais claros de escravidão moderna foram ignorados tanto pelas autoridades quanto pelas empresas envolvidas.
“Me preocupa muito que tantos sinais de alerta tenham sido ignorados e que talvez as empresas não tenham feito o suficiente para proteger trabalhadores vulneráveis”, disse Sara Thornton, ex-comissária independente contra a escravidão, que revisou as descobertas da BBC.
Entre os sinais estavam os pagamentos dos salários em contas bancárias alheias e o uso de intérpretes da própria quadrilha nas entrevistas de emprego, o que deveria ter levantado suspeitas.
Além disso, as horas de trabalho excessivas — até 100 por semana — e as condições de vida precárias dos trabalhadores eram claras evidências de que algo estava errado.
Em várias ocasiões, as vítimas fugiram para casa, mas acabaram sendo encontradas e traficadas de volta para o Reino Unido.
A exploração terminou em outubro de 2019, depois que as vítimas entraram em contato com a polícia na República Tcheca, que então alertou seus colegas britânicos.
Os líderes de gangues Zdenek Drevenak, à esquerda, e seu irmão Ernest controlavam suas vítimas com medo e violência
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Como a maioria dos McDonald’s, a filial de Caxton é uma franquia, o que significa que uma empresa independente paga à gigante do fast-food para poder operar o restaurante.
Enquanto as vítimas trabalhavam lá entre 2015 e 2019, o local foi administrado por dois diferentes franqueados. A reportagem da BBC contatou ambos, mas eles não responderam aos pedidos de entrevista.
O McDonald’s do Reino Unido se recusou a conceder uma entrevista à BBC, mas emitiu uma declaração em nome da corporação e de seus franqueados, afirmando que o atual franqueado, Ahmet Mustafa, só foi “exposto à profundidade total desses crimes horríveis, complexos e sofisticados” no curso da sua cooperação com a polícia e a acusação.
A empresa também informou que encomendou uma revisão independente em outubro de 2023 e implementou medidas para melhorar a capacidade de “detectar e dissuadir potenciais riscos, como: contas bancárias compartilhadas, horas excessivas de trabalho e revisar o uso de intérpretes em entrevistas”.
A gangue usou os salários das vítimas para financiar a compra de carros de luxo e uma casa de três andares na República Tcheca
MET Police/ Reprodução
‘Práticas preocupantes’
A empresa de panificadora Speciality Flatbread Ltd, onde muitas vítimas também foram exploradas, encerrou suas atividades em 2022.
Nenhum dos supermercados detectou a escravidão enquanto as vítimas trabalhavam na fábrica, entre 2012 e 2019.
A rede de supermercados Sainsbury’s informou que deixou de usar a empresa como fornecedora de marca própria em 2016, enquanto os demais só interromperam os contratos depois que a polícia resgatou as vítimas em 2019.
A rede de supermercados Asda disse à BBC que estava “decepcionada que um caso histórico tenha sido encontrado em nossa cadeia de fornecimento”, acrescentando que “reverá cada caso identificado e agirá com base no que aprender”.
A Tesco e a Waitrose relataram que detectaram “práticas de trabalho preocupantes” e retiraram a fábrica de suas listas de fornecedores em 2020 e 2021, respectivamente.
A Co-op afirmou que fez “um número” de inspeções não anunciadas, incluindo entrevistas com trabalhadores, mas não encontrou sinais de escravidão moderna, acrescentando que a empresa “trabalha ativamente para combater essa questão chocante… tanto no Reino Unido quanto no exterior”.
A rede de supermercados M&S disse que suspendeu e retirou a empresa da sua lista de fornecedores em 2020 depois de “tomar conhecimento de possíveis violações de padrões de trabalho ético através da linha de ajuda contra escravidão moderna”.
O Consórcio Britânico de Varejo afirmou que o bem-estar dos trabalhadores era “fundamental” para os varejistas, que disse agirem rapidamente quando preocupações são levantadas.
“No entanto, é importante que a indústria varejista aprenda com casos como este para fortalecer continuamente a diligência devida”, declarou a entidade.
O diretor da Speciality Flatbreads, Andrew Charalambous, não respondeu a pedidos de comentário por escrito, mas em uma ligação telefônica com a BBC afirmou que apoiou a polícia e a acusação, acrescentando que a empresa foi “minuciosamente auditada pelos principais escritórios de advocacia” e que “tudo o que estávamos fazendo era legal”.
Ele acrescentou: “Do nosso ponto de vista, não violamos a lei de forma alguma, dito isso, sim, talvez você esteja certo em que talvez houvesse alguns sinais reveladores ou coisas assim, mas isso seria para o departamento de RH que estava lidando com isso na linha de frente.”
Nove vítimas viviam numa casa no norte de Londres; algumas foram forçadas a dormir num anexo no jardim
MET Police/ Reprodução
Para Pavel, mesmo com a condenação da quadrilha e o fim do pesadelo, as marcas da exploração continuam. Ele sente que foi “parcialmente explorado pelo McDonald’s” porque a empresa não agiu diante dos sinais claros de que algo estava errado.
“Eu pensei que, se estivesse trabalhando para o McDonald’s, eles seriam um pouco mais cautelosos, que iriam notar isso”, disse Pavel, desapontado.
Dois ex-colegas de trabalho confirmaram à BBC que as horas excessivas trabalhadas por Pavel e outros homens — e o impacto disso neles — eram evidentes, mas nada tinha sido feito.
A legislação britânica contra a escravidão exige que grandes empresas — incluindo McDonald’s e os supermercados, mas não a fábrica — publiquem declarações anuais delineando o que farão para combater a questão.
A ex-primeira-ministra Theresa May, do Partido Conservador, que introduziu a legislação contra a escravidão moderna em 2015, reconheceu que a lei falhou em proteger as vítimas neste caso e que precisa ser reforçada.
“Este caso é francamente chocante”, afirmou May, destacando que grandes empresas precisam fazer mais para investigar suas cadeias de fornecimento.
Ela atualmente lidera a Comissão Global sobre Escravidão Moderna e Tráfico Humano e diz estar comprometida em revisar quais novas leis são necessárias “para garantir que as empresas tomem medidas”.
O governo do Reino Unido — controlado atualmente pelo Partido Trabalhista, que faz oposição ao Partido Conservador de May — também se manifestou, dizendo que estava “comprometido em combater todas as formas de escravidão moderna” e prometendo “perseguir quadrilhas e empregadores com todos os meios à nossa disposição, enquanto garante que as vítimas recebam o apoio necessário”.
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