21 de setembro de 2024

Médicos criam correntes solidárias para atender a moradores atingidos pelas chuvas no Sul do ES

Preocupação dos especialistas é com doenças que podem estar incubadas, com sintomas que devem começar a aparecer agora, mais de 10 dias após enchente. Além da precariedade para o atendimento, eles enfrentam ações de desinformação com a população. Médica Giulia Gregório integrou uma equipe de voluntários de Muniz Freire e realizou atendimento em Apiacá.
Arquivo Pessoal
Após as fortes chuvas que atingiram e devastaram 13 cidades do Sul do Espírito Santo, médicos se preocupam com as “doenças da enchente”, que podem começar a aparecer depois de dez dias, tempo em que permanecem incubadas. Enquanto os trabalhos de reconstrução e limpeza seguem, médicos se voluntariaram para auxiliar e ajudar com atendimentos de saúde, tira-dúvidas e mutirões de moradores. Para agilizar, pacientes são atendidos na rua e em teleconsultas.
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Entre as doenças mais comuns para quem tem contato com a água contaminada estão a leptospirose, hepatite, gastroenterites, verminoses, alergias de pele, entre outras.
Consultório na rua

A médica clínica geral Giulia Gregório trabalha no município de Muniz Freire, também no Sul do Espírito Santo. Segundo ela, a Secretaria de Saúde municipal entrou em contato e explicou que estavam precisando de voluntários para uma ação que seria feita na cidade de Apiacá, localidade também bastante atingida pelas chuvas, onde duas pessoas morreram.
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A médica Giulia Gregório atendeu por livre demanda moradores da região rural em uma praça de Apiacá. Espírito Santo.
Arquivo Pessoal
No dia 26 de março, uma equipe com médicos, enfermeiros, técnicos de Enfermagem, psicólogos, assistente social e dentistas foi formada e levada para a cidade.
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Os profissionais foram divididos em dois grupos para atender comunidades rurais com menos infraestrutura, a cerca de 6km do centro de Apiacá.
“Você já chega na cidade e vê um cenário de caos, fica tentando entender qual é a situação para conseguir ajudar de alguma forma. A equipe recebeu funções diferentes e um colega começou um levantamento de casa em casa para saber o nome, quantas pessoas moravam ali, o que tinham perdido. Sentei na pracinha e atendi por livre demanda as pessoas que iam chegando”, contou a médica.
Município de Muniz Freire envia equipe de voluntários para atendimento médico em Apiacá
Os voluntários de Muniz Freire levaram o que foi possível em relação a equipamentos e medicação. Segundo Giulia, uma equipe já retornou nesta semana com mais material.
A ideia é que o trabalho continue até que a Prefeitura de Apiacá consiga se organizar para receber as informações e balanço do que foi feito e, assim, dar prosseguimento aos serviços.
“Levamos o pouco que foi possível. Conseguimos analgésico, dipirona, anti-inflamatórios. Consegui prescrever algumas coisas, como hipertensivos, por exemplo, para quem chegava com pressão alta, sem tomar remédio ou pelo estresse da situação. O que não foi possível manejar, deixei anotado para depois passar para algum responsável tentar a medicação. As de difícil acesso deixei prescrito e orientado sobre onde poderiam tentar conseguir”, relata a clínica geral.
A médica saiu de Apiacá disposta a voltar quando precisar, entende que tem muito o que se fazer para ajudar na reconstrução e organização da cidade e com as famílias.
“É um baque forte, em nunca tinha passado por nada semelhante. Chegar lá e ver a cidade totalmente destruída, casas com lama, o comércio inteiro devastado, dá uma sensação de impotência, de querer fazer mais e não conseguir. E, ao mesmo tempo, deixa a gente reflexiva e grata pelas coisas que temos”, disse a médica.
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Giulia lembrou que na noite do dia 22 de março também choveu muito na cidade de Muniz Freire. Ela chegou a comentar com a família como estava assustada.
“Eu fiquei impressionada, nunca tinha visto tanta chuva. Não conseguia remover pacientes do hospital, o Samu não chegava ou então não saía. Foram muitas horas de chuva forte e ininterrupta”, lembrou Giulia.
Doenças que podem surgir
Pessoas que tiveram contato com a água suja precisam estar atentas a sintomas de doenças que podem começar a aparecer.
Reprodução/TV Gazeta
Giulia Gregório fez um alerta sobre as principais doenças que podem aparecer para quem teve contato com a enchente e a lama e quais são os sinais de alerta.
Segundo ela, tétano, hepatite – principalmente a A – leptospirose, verminoses e gastroenterite são as principais doenças que podem estar incubadas e apresentar sinais a partir de agora.
“Depois de cerca de 10 dias, sintomas como febre, náuseas, mal-estar, icterícias, prostração, dificuldades de andar e diarreia são alertas para que a pessoa procure um pronto-socorro ou unidade de saúde”.
A médica lembra também que existe um alerta sobre os casos de dengue.
“Em todo o estado, e nos municípios do interior, não é diferente. Os casos de dengue estão aumentando. E essas localidades ainda estão com água e com muito lixo nas ruas. Sabemos que o aedes aegypti gosta de água limpa, mas, hoje em dia, já foram identificados casos de reprodução até em água suja. Então, vale um alerta para a doença também”, lembrou Giulia.
Mobilização nas redes sociais
Grupo de médicos que se voluntariaram para ajudar vítimas da chuva em Mimoso do Sul já conta com 43 participantes. Espírito Santo.
Arquivo Pessoal
Assim que viu as notícias e vídeos sobre a tragédia, a médica infectopediatra Euzanete Coser começou a buscar uma forma de ajudar, e percebeu que poderia contribuir com a sua especialidade.
Quatro dias depois da chuva, divulgou nas redes sociais que abriria dois horários por dia na agenda para orientar moradores das cidades atingidas em consultas on-line, já que o seu consultório fica em Vitória.
Troca de mensagens da médica Euzante com pessoas atingidas pela chuva em Mimoso do Sul que já atendeu. Espírito Santo.
Arquivo Pessoal
Nos grupos de médicos, começou uma onda de incentivo e adesão à ideia. Outros profissionais, de outras especialidades, se manifestaram dizendo que queriam participar. E assim um grupo foi criado com cinco, depois dez colegas, e hoje conta com 43 médicos dispostos a atender voluntariamente.
“Além de pediatras, são cardiologistas, ginecologistas, endócrinos, gastro… E de vários estados do país. A consulta on-line permite isso”, disse a infectopediatra.
Em sua iniciativa individual, Euzanete já atendeu duas pessoas nesta semana e disponibilizou o consultório inclusive para consultas presenciais.
“Me emocionei quando marquei o primeiro paciente. Você pode ajudar com uma orientação simples, as pessoas estão precisando de cuidado médico, mas também de atenção”.
Sentiu na pele a força da chuva
Médica Poliana Guarçoni é de Mimoso do Sul e estava na cidade quando começou a chover. Espírito Santo.
Arquivo Pessoal
Outra médica que está dedicando tempo e conhecimento às vítimas da enchente é a endocrinopediatra Poliana Guarçoni, nascida e criada em Mimoso do Sul, uma das cidades mais atingidas pela enxurrada.

Apenas no município, 18 pessoas morreram e uma seguia desaparecida até a publicação desta reportagem. Segundo o Centro Nacional de Monitoramento e Alerta de Desastres Naturais (Cemaden), foram 231,8 milímetros de chuva em menos de 24 horas.
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Poliana Guarçoni, que atualmente mora em Viçosa, Minas Gerais, estava com viagem marcada para visitar a família no fim de semana. Ela contou que recebeu da mãe, no dia 22 de março, uma mensagem pedindo que a filha não fosse para a cidade, porque existia uma previsão de chuvas intensas.
Poliana, respeitou a preocupação, mas foi mesmo assim, dirigindo, sozinha, e chegou à cidade por volta das 21h, quando a chuva estava começando.
Água da chuva atingiu o lustre do primeiro andar da casa da família da médica Poliana Guarçoni, em Mimoso do Sul. Imagem mostra também como a sala ficou depois que a água abaixou. Espírito Santo.
Arquivo Pessoal
Às 2h, foi acordada pela mãe avisando que a água estava entrando na garagem e que era melhor tirar o carro de lá. Quando abriu o portão, uma onda invadiu a casa. Conseguiu colocar o veículo na parte alta da rua, mas retornou com a água na cintura, que depois chegou ao pescoço e, por fim, ocupou todo o primeiro andar da residência. Situação inimaginável para a família. (veja imagem acima)
“Quando saí de casa pela primeira vez, a sensação era de impotência. Eu ficava pensando como ajudar, vendo tudo destruído. Procurei pelo secretário de Saúde, achando que fosse atender como médica, mas vi que ainda não era possível imediatamente, não sobrou uma unidade de saúde, não tinha espaço, medicamento, era preciso limpar e reconstruir primeiro”, lembrou a médica.
Ainda nos primeiros dias, após a madrugada de chuva, Poliana foi apresentada a uma pessoa da Força Nacional, especialista em pós-tragédia que a ajudou a entender quais eram os gargalos e como poderia ajudar.
Médica de Mimoso do Sul que mobiliza ajuda voluntária andou de barco pela cidade alagada
“Não é só me disponibilizar para fazer um atendimento médico. É preciso reconstruir as unidades de saúde, todas! Além de ajuda para triagem dos remédios e doações que estão chegando, fazer a escuta das pessoas que estão enfrentando um momento de choque, e monitorar as doenças que podem acometer as pessoas que tiveram contato com a água suja, e que vão começar a manifestar os sintomas agora”, enumerou a médica.
Poliana acionou um grupo da igreja, para tentar organizar um mutirão e reconstruir ao menos uma das cerca de seis unidades de saúde da cidade. A iniciativa vai acontecer, mas ainda sem data definida porque precisam de mais voluntários – como pedreiros – para ser colocada em prática. Quem puder ajudar e quiser ser voluntário, pode fazer contato pelas redes sociais.
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Além disso, viu que consultas on-line funcionariam nesse primeiro momento, enquanto os espaços de atendimento na cidade estão inviáveis. Contatou a presidente da Sociedade Espírito-Santense de Pediatria (Soespe), criou um grupo de médicos e explicou as necessidades, cruzando a sua iniciativa com a da Euzanete Coser. Hoje, elas estão juntas no mesmo grupo criado.
“Uma pessoa da Secretaria de Saúde ficou responsável por reunir informações dos moradores de Mimoso do Sul com registros nas unidades de saúde e fazer uma triagem. Na medida em que a demanda for aparecendo, colegas médicos vão ser acionados”, explicou.
Médica voluntária mostra limpeza da casa da mãe atingida pela chuva em Mimoso do Sul
A médica acredita na reconstrução da cidade.
“Tudo é muito triste, as pessoas perderam tudo. Meus irmãos têm comércios. Lá em casa perdemos a história, as fotos, lembranças guardadas com tanto carinho. Mas agora é hora de recomeçar. A cidade precisa de médicos, pedreiros, farmacêuticos. Já existe também um projeto da Força Nacional para atuar com a saúde mental dos moradores. Aos poucos vai dar certo”, falou Poliana.
Desinformação atrapalha no combate às doenças
Cidade de Mimoso do Sul, no Espírito Santo, totalmente alagada após enchente.
Reprodução/TV Gazeta
Além de reforçar o alerta para doenças que podem estar incubadas, a médica Poliana Guarçoni alerta ainda para uma ação de desinformação que foi registrada em diferentes regiões de Mimoso do Sul.
Moradores relataram que carros de som estão circulando pela cidade distribuindo e mandando as pessoas tomarem remédios que seriam eficientes na prevenção das doenças da enchente. Mas a orientação é falsa.
“Eu soube primeiro por familiares que já estavam procurando o remédio para tomar. A indicação seria um antibiótico comumente utilizado no tratamento de leptospirose e ivermectina.”
A médica chegou a contatar várias pessoas para comprovar primeiro que essa prática estava acontecendo em várias ruas, de diferentes regiões da cidade. Depois, acionou um grupo com médicos infectologistas para cravar os problemas que essa orientação falsa pode provocar.
“Estão indicando um antibiótico e a ivermectina. Esse antibiótico seria utilizado no tratamento da leptospirose, de 12h em 12h, mas as pessoas estariam usando de 8h em 8h. Existem efeitos colaterais, isso é perigoso, e até conhecidos chegaram a tomar e a passar mal”, alertou.
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Bebê nasce dentro de casa em meio a temporal que destruiu Mimoso do Sul
De acordo com a médica, a orientação em caso de algum sintoma é procurar atendimento no hospital da cidade, evitando a automedicação.
Serviços de saúde começam a ser restabelecidos
Alguns serviços de saúde começaram a ser retomados em Mimoso do Sul. Desde a enchente, já foram realizados, nas Atenções Primária e Especializada, mais de 1.300 atendimentos emergenciais, ofertados em 12 pontos de apoio, na sede e no interior, graças a um esforço conjunto de aproximadamente 150 profissionais.
Médico atendendo paciente em Mimoso do Sul: serviços de saúde começam a ser restabelecidos após enchente
Sesa/Divulgação
A força-tarefa é composta por vários profissionais. Também atuam equipes da Secretaria Municipal de Saúde, médicos e enfermeiros voluntários, oriundos dos municípios capixabas de Presidente Kennedy e Governador Lindenberg. Membros da Força Nacional do Sistema Único de Saúde (SUS) estão na cidade.
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