27 de dezembro de 2024

‘Meu calendário era meu ciclo menstrual’: ansiedade, frustração e esperança no mundo das tentantes

Psicólogas ouvidas pelo g1 dão dicas de como lidar com os desafios das tentativas sem sucesso de engravidar. A ansiedade, frustração e esperança do mundo das tentantes
“E aí, quando vem o bebê?”
Por trás de uma resposta evasiva a essa pergunta, algumas mulheres acumulam testes negativos de gravidez, vergonha, ansiedade e frustrações com as tentativas sem sucesso de engravidar.
O g1 conversou com as chamadas tentantes – mulheres que estão tentando ter filhos. Em alguns casos, a dificuldade tem uma causa diagnosticada, que pode ser tanto na mulher como no homem, ou em ambos.
Em outros, mesmo após uma bateria de exames, não há nada que evidencie o motivo do insucesso. Depois de concluída a investigação do casal e não encontrada qualquer causa que poderia afetar a fertilidade, a medicina chama o caso de Infertilidade Sem Causa Aparente (Isca).
Anailza tenta há 6 anos
Este é o caso da auxiliar de produção Anailza da Silva Ferreira, de 38 anos, e do marido, do interior de São Paulo. Eles decidiram engravidar quando ela fez 32 anos. “Eu achei que ia ser rápido, que em uns dois, três meses eu já estaria grávida”.
No entanto, desde que parou de tomar anticoncepcional, há cerca de seis anos, começaram as tentativas frustradas. “Já teve mês que atrasou sete, oito dias [a menstruação]. Eu vou na farmácia, compro o teste de gravidez, mas dá negativo”, conta Anailza, que disse já ter feito mais de 30 testes ao longo dos últimos anos.
Anailza Ferreira, de 38 anos, conta já ter feito mais de 30 testes de gravidez ao longo das tentativas
Fábio Tito/g1
Depois de procurar orientação médica e passar por exames, nada foi encontrado no casal que pudesse prejudicar a concepção.
“Essa é a parte que mais me faz sofrer. Se fosse descoberto uma causa, um porém. ‘Você tem isso, sua trompa está obstruída, seu útero está virado,’ seja lá o que for, eu ia ficar satisfeita. Mas no meu caso é tudo normal, não foi encontrado nada que impeça a gente de gerar uma vida”.
Endometriose, baixa produção de espermatozoides e 10 anos de espera
Já a cabeleireira Daniele da Silva Tavares, de 39 anos, da Zona Norte da capital paulista, teve o diagnóstico logo que procurou ajuda médica, há quase 10 anos: endometriose. Além disso, o marido também tem baixa produção de espermatozoides.
“Vamos tentar de novo, de novo, todo mês é isso. Quando você está tentando, você vive em prol disso, sabe? Mais uma chance, mais uma chance, mais uma chance. E o tempo vai passando”, contou a cabeleireira.
Daniele Tavares, de 39 anos, é ‘tentante’ é quase 10 anos. “Quando você está tentando, você vive em prol disso, sabe?”
Fábio Tito/g1
‘Meu calendário era o meu ciclo menstrual’
A pediatra Geiza Sucharski, de 38 anos, de Barueri, na Grande São Paulo, também contou que a vida girava em torno desse objetivo.
“O meu calendário já não era contado mais nos meses do calendário habitual, o meu calendário era o meu ciclo menstrual”, contou.
Ela e o marido, também médico, combinavam de nunca marcar plantões durante o período fértil de Geiza, quando acontece a ovulação e há a chance de concepção caso aconteça relação sexual.
A pediatra Geiza Sucharski, de 38 anos, não tinha como escapar do universo da maternidade quando vivia a ansiedade de tentar engravidar.
Fábio Tito/g1
“Esse assunto martelava na minha cabeça todo dia, 24 horas por dia”, disse Geiza. A pediatra não tinha como escapar. Faz parte de sua rotina de trabalho acompanhar partos, ajudar mães a amamentar e atender recém-nascidos.
“Eu chegava em casa triste por ser pediatra, por estar vendo outras famílias vivendo um momento que eu dava tudo pra viver”, conta Geiza.
Ansiedade, comentários invasivos e inveja de amigas grávidas
Se tivesse um sentimento para definir as tentantes, seria ansiedade. “Fui trabalhando na minha cabeça até para isso não mexer com o meu psicológico e eu entrar numa depressão”, contou a cabeleireira Daniele.
E essa sensação que acompanha as tentantes vai na contramão de um dos principais palpites dados a quem quer engravidar: “relaxa que engravida”.
“Como se fosse simples não pensar naquilo que você mais deseja”, diz Geiza. E mais, a ideia de que a mulher está cometendo um erro ao ficar ansiosa pode fazer com que se sinta culpada por seus sentimentos e torne ainda mais angustiante a espera do resultado positivo.
A psicóloga Bruna de Marchi, especialista em tentantes, disse que o primeiro passo é acolher esse sentimento. “A ansiedade é esperada nesse momento”. Segundo ela, o que a mulher pode fazer é tentar tornar os pensamentos mais racionais e focados no presente. “A ansiedade tem muita ligação com o futuro. Será que a mulher não está antecipando algum futuro catastrófico?”
A psicóloga Jamile Jaber, especialista no assunto, disse que também é importante evitar controlar tudo, como todas as datas relacionadas ao período fértil.
“Embora seja útil usar dispositivos como testes de ovulação para orientação, é importante não se fixar obsessivamente neles”.
Um fator que contribui para a ansiedade são os comentários invasivos. “Quando você vai ser mãe, Anailza? Todo mundo [da família] é, menos você, e você é uma das mais velhas”, escutou a auxiliar de produção.
É o que também viveu Daniele, que já ouviu até que o marido era “ralo”. “Qualquer comentário, quando a mulher está tentando, entristece a pessoa”, disse.
No consultório das psicólogas, também é comum o sentimento de vergonha e até inferioridade em relação às outras mulheres. “Tem mulher que diz que se sente como uma ‘árvore seca’, sem utilidade, e isso machuca muito”, disse Bruna de Marchi.
“E, muito pelo contrário, vejo o quanto tem de força, resiliência e comprometimento nessas mulheres”, afirmou a psicóloga.
Outra angústia comum é o desconforto quando alguma amiga da tentante conta que está grávida.
“Não é um sentimento que define uma pessoa. E, na maioria das vezes, não é nem inveja, é porque a notícia fez a mulher entrar em contato com aquela dor”, disse de Marchi.
Relações sexuais mecânicas
Com o passar do tempo e as tentativas frustradas, o sexo entre o casal, essencial para o êxito da gravidez, pode se tornar um fardo.
“A relação sexual pode ser associada também a esse fracasso, e pode trazer até repulsa”, explicou a psicóloga Bruna de Marchi. “Tem mulher que na hora da relação já está fazendo a conta dali a quantos dias poderá fazer o teste de gravidez”, contou.
“O estresse pode tornar as relações sexuais mecânicas, focadas apenas na gravidez, o que pode afetar emocionalmente uma das partes”, disse a psicóloga Jamile.
A dica das especialistas é tentar ter relações fora do período fértil também, para que a vida sexual do casal não foque apenas na procriação.
Pernas para cima e dicas furadas
Além do desgaste emocional causado pelas tentativas sem sucesso, as tentantes ainda recebem uma enxurrada de dicas e falsas promessas – inclusive em redes sociais.
“Várias pessoas falaram para mim, ‘depois da relação, você levanta as pernas, não levanta pra nada’. Eu segui tudo. Mas nada deu certo até agora”, conta Anailza.
A ideia por trás da crença popular é que fazendo isso a mulher está facilitando o caminho do espermatozoide para chegar no lugar em que vai acontecer a fecundação. No entanto, as médicas explicam que a dica é mito – não tem posição que favoreça a subida do espermatozoide.
Nova fase das tentativas – Fertilização in Vitro
A Anailza e a Daniele irão começar uma nova fase das tentativas. Elas irão fazer Fertilização In Vitro (FIV), procedimento em que a fertilização do óvulo pelo espermatozoide ocorre em laboratório, e, depois, o embrião é colocado dentro do útero. A partir daí, a gravidez pode ou não se desenvolver.
“Eu sei que eu posso conseguir, como não, mas o que der para tentar eu vou tentar para depois não ficar aquela culpa”, disse Anailza
As duas estão fazendo o tratamento no Hospital da Mulher, na cidade de São Paulo. Este é um dos três do estado que realiza todo o procedimento pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Em clínicas particulares, cada fertilização sai, em média, R$ 25 mil.
“Hoje, depois de quase dez anos nesse processo todo, eu coloco nas mãos de Deus. A resposta que vier foi a vontade dele”, disse Daniele.
Quando procurar ajuda médica?
Segundo a ginecologista especialista em reprodução humana e membro do Conselho Consultivo da Associação Brasileira de Reprodução Assistida (SBRA), Maria do Carmo Borges de Souza, o momento de procurar ajuda médica depende da idade da mulher.
👩🏽‍⚕️Em mulheres de até 35 anos, o casal deve procurar auxílio médico após um ano de tentativas.
👩🏽‍⚕️ Já em mulheres de 35 a 38 anos, após seis meses de tentativas.
👩🏽‍⚕️Para mulheres de 39 anos ou mais, a orientação é procurar ajuda médica assim que houver a decisão de engravidar.
Isso porque para as mulheres com mais de 35 anos não há tempo a perder. “A idade da mulher é um marco importante porque o óvulo da mulher tem a idade dela”, explica a ginecologista.
“Demanda reprimida” no SUS
A FIV está no âmbito de cobertura do SUS desde 2005, mas poucos hospitais públicos realizam o procedimento.
No serviço público, a porta de entrada para tratamentos de reprodução assistida são as Unidades Básicas de Saúde (UBSs).
No Estado de São Paulo, três hospitais realizam esse procedimento: o Hospital da Mulher e o Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), na capital paulista, e o Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto.
Após o diagnóstico inicial de infertilidade na unidade de saúde, a paciente irá aguardar na Central de Regulação de Ofertas de Serviços de Saúde (Cross), que regula a ocupação das vagas nos hospitais do estado.
Para entrar na fila da reprodução assistida, a mulher deve estar no máximo a um dia de completar 38 anos. E, uma vez no tratamento, cada mulher poderá realizar até duas tentativas de Fertilização In Vitro.
“A gente tem uma demanda reprimida, se a gente tivesse estrutura para fazer 10 vezes mais, a gente encheria amanhã o Hospital da Mulher”, disse o médico Artur Dzik, responsável técnico pelo Serviço de Reprodução Humana Assistida do local.
Em 2023, o Hospital da Mulher realizou 189 ciclos de fertilização in vitro, informou a Secretaria Estadual de Saúde.
Carta às tentantes
Após mais uma tentativa, a pediatra Geiza contou que começou a sentir sintomas semelhantes aos pré-menstruais, mas… dessa vez eram diferentes. Ao primeiro atraso da menstruação, ela fez o teste. “Eu falei ‘vai dar negativo, vai dar negativo, não vai dar certo’. E aí apareceu escrito: grávida”.
A pediatra precisou de mais um exame de farmácia e de cinco exames de sangue para se convencer que o período de tentante tinha acabado.
Depois da experiência, ela decidiu escrever uma “carta às tentantes” em suas redes sociais.
“O que eu vivi, todos esses sentimentos, as frustrações, as tristezas mesmo, ser tentante é muito triste, é muito solitário. Algumas tentam por muitos anos. Eu tentei por um ano e quatro meses e na minha percepção foi bastante tempo”.

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