Segundo a Defesa Civil, abrigo montado em Parque de Exposições, na capital, tem 3,5 mil abrigados; g1 ouviu relatos de moradores que estão no local. Rio Acre enfrenta segunda pior cheia desde 1971. Mais de 3,5 mil pessoas estão abrigadas no Parque de Exposições, em Rio Branco
Victor Lebre/g1
O local que costuma ser palco de entretenimento da maior feira de negócios do estado, a Expoacre, deu lugar a rostos preocupados e a acomodações improvisadas. No Parque de Exposições Wildy Viana, na capital Rio Branco, foi montado o principal abrigo para moradores de áreas alagadas pela cheia do Rio Acre na cidade.
O abrigo foi montado no último dia 25, e até esta quinta-feira (7) tinha 3.564 desabrigados, segundo a Defesa Civil Municipal. Nos últimos dias, cada vez mais famílias chegaram ao local.
No abrigo, os relatos vão de elogios a críticas às instalações e a rotina no local. O g1 ouviu alguns dos moradores que, em comum, têm o desejo e a esperança de retornar para casa. Muitos já estão acostumados às cheias anuais no estado.
É o caso da idosa Maria Antonieta, de 74 anos, que está com a filha e dois netos no abrigo, e já havia perdido vários pertences na enchente de 2023. Neste ano, ela conseguiu retirar os objetos de casa antes da água invadir. Apesar dos transtornos, ela diz que a família está bem.
“Não tinha barco, não tinha nada pra gente sair. A solução foi pedir. E no ano passado, como que foi? No ano passado, foi tudo destruído. Cama, guarda-roupa. Tem aquela esperança que [o rio] vai baixar. Está dando certo, está tudo bem [no abrigo]. O restaurante está bem, a gente está comendo direitinho. A gente está bem. Não estamos mal aqui”, contou.
Maria Antonieta, de 74 anos, está com a filha e os netos no abrigo montado no Parque de Exposições
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Para Francisca de Oliveira, que está abrigada com uma filha no Parque de Exposições, a situação tem sido um pouco mais delicada. Ela tem um outro filho que tem Transtorno do Espectro Autista (TEA) e que está com a avó em outro local.
A alimentação no abrigo, segundo a mulher, não é satisfatória, e algumas crianças chegaram a ficar doentes.
“Alimentação todo dia é a mesma coisa. Tem criança aqui que está pegando infecção, a gente está com vários exames de criança com infecção, tem criança que vai se consultar, não é atendida. Tem gente que chega no consultório médico chorando de dor, eles não atendem”, alega.
Para a dona de casa Maria Antônia, as condições do abrigo e a alimentação servida no local também não são as ideais. Ela está com o filho de 11 anos no abrigo e diz que o menino já chegou a ter a ficha para alimentação negada.
Maria também reclama de alguns banheiros que foram improvisados para que os ocupantes do abrigo possam tomar banho e lavar roupa.
FOTOS: moradores de áreas alagadas em Rio Branco são abrigados no Parque de Exposições
“A situação [no abrigo] é o banheiro desse jeito, né? A comida, é uma fila horrível. Meu filho, outro dia, foi pegar uma ficha e o rapaz disse que não ia dar porque ele era muito pequeno. Ele, com 11 anos, era muito pequeno para pegar a ficha. Eu peguei a minha ficha, dei para ele e fiquei sem comer. Atendimento médico, às vezes você consegue, às vezes não”, relata.
A esperança, segundo Maria, é que o poder público ajude a ela e a outras famílias na mesma situação. Ela cita como exemplo a necessidade de inclusão no aluguel social, e que o valor seja ampliado, já que o pagamento atual, de R$ 300 reais, não é suficiente para a locação de uma moradia em áreas que não alagam.
Elias, de 11 anos, e a mãe, Maria Antônia, estão abrigados no Parque de Exposições
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“É só esperar por Deus, que comece a abaixar as águas, e que Deus toque no coração desse prefeito, desse governador. Que eles venham dar as coisas da gente, que ponham a gente no aluguel social, porque não tem como. A gente só consegue um aluguel de R$ 300 em lugares que alagam. Nos outros cantos, não tem como, que é mais caro. O ano passado eu tive de sair, como a minha casa era no quintal da minha irmã, a casa foi condenada pelos bombeiros”, conta.
O filho de Maria Antônia também tem uma esperança: voltar a estudar. Aos 11 anos, Elias ainda está na segunda série, e diz ainda que teve o material escolar furtado do guarda-volumes do abrigo. O menino diz que está com saudade de casa e da sala de aula.
“Tô com muita saudade de casa. Minha mãe foi me matricular, e disse que eu não ia começar no dia certo, porque eu não tinha material, mas aí o homem me deu. Como foi na alagação, nós tivemos que vir pra cá [para o abrigo]. Aí nós guardamos tudo, mas no guarda volume. Um dia, minha sandália quebrou, e minha mãe foi lá [ao guarda-volumes]. Ela não achou a sacola onde estavam nossas botas nem minha bolsa escolar. Fiquei muito triste, chorei muito. Eu queria muito meu material escolar de volta”, apela.
Para o aposentado José Souza da Costa, “ruim mesmo é lá onde tá [sic] a alagação”. Costa afirma que ficou surpreso com a situação de sua casa, onde a água já subiu bastante. Ele afirma que visitou o local nessa segunda-feira (4) e a água chegava em seus ombros. No abrigo, a única coisa que incomoda, segundo ele, é o calor. Agora, o aposentado espera retornar para casa e, futuramente, se mudar para outra região.
“Eu pensei que não ia ser tão grande assim [a enchente]. Eu fui na minha casa, me surpreendi. A água está alcançando no meu ombro. Eu não tive coragem de entrar lá. Para mim, eu não tenho o que falar [sobre o abrigo], só o calorzão. O calor é demais dentre esses quartinhos, mas é melhor que lá fora. Porque se eu estivesse lá, eu já não tenho nada, tinha risco até de perder o resto. Eu já estou avexado para voltar, baldear minha casa e esperar dias melhores. Já chega de sofrimento. Em nome do Senhor Jesus, eu vou sair [para outro bairro]”, declara.
O g1 não conseguiu contato com a prefeitura de Rio Branco sobre as reclamações feitas pelos abrigados até a última atualização desta reportagem.
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Porém, a administração municipal tem divulgado que, além da alimentação fornecida no abrigo, também fez a doação de kits com leite em pó, açúcar, massas para mingau, biscoitos e fraldas, entregues a cada dois dias a mães com filhos de zero a sete anos de idade. Ainda segundo a prefeitura, o abrigo tem monitoramento por meio de câmeras 24 horas.
O Ministério Público do Acre (MP-AC) também tem uma equipe instalada no abrigo para acompanhar o atendimento aos moradores desabrigados, e realiza reuniões com estado e município para propor melhorias.
Rio Acre
Na capital, o Rio Acre está acima dos 17 metros há uma semana e na última quarta (7), alcançou a maior cota do ano, de 17,89 metros. Essa já é a segunda maior cheia da história, desde que a medição começou a ser feita, em 1971. A maior cota histórica já registrada é de 18,40 metros em 2015.
Comitiva do Governo Federal visita as cidades mais atingidas no Acre pelas cheia dos rios
Poucos meses separam o ápice de uma seca severa e a chegada de enchentes devastadoras no Acre. Para entender as crises sucessivas que levaram emergência para o estado é preciso considerar ao menos três fatores:
a influência do El Niño
o atraso do “inverno amazônico”, como é conhecida a estação chuvosa na região
o impacto do aquecimento do Oceano Atlântico
Em 2024, já são 48 bairros e 23 comunidades rurais atingidas pela cheia em Rio Branco, e mais de 4 mil pessoas estão desabrigadas, segundo a prefeitura da capital, com dados desta quinta (7). Mais de 70 mil pessoas foram afetadas, direta ou indiretamente, pela cheia do manancial em Rio Branco.
De acordo com a Energisa, companhia responsável pela distribuição de energia elétrica no Acre, já são mais de sete mil imóveis com fornecimento suspenso.
Em todo o estado, pelo menos 28.855 pessoas estão fora de casa, dentre desabrigados e desalojados, segundo a última atualização feita pelo governo do estado nesta quinta (7). 19 das 22 cidades acreanas estão em situação de emergência por conta do transbordo de rios e igarapés.
Ao menos 23 comunidades indígenas no interior do Acre também sofrem com os efeitos das enchentes e cinco pessoas já morreram em decorrência da cheia. O número aumentou nesta quarta após um bebê de 1 ano e 8 meses morrer afogado no quintal de casa na Comunidade Tapiri, zona rural de Cruzeiro do Sul.
Na última segunda-feira (4), o governo federal liberou mais de R$ 20 milhões para as ações de assistência aos atingidos pelas enchentes no Acre, na capital e no interior do estado.
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